Gonçalo Waddington é um actor português justamente conhecido da suas múltiplas aparições no teatro, do cinema e da televisão. Menos conhecido é que ele é o autor de duas peças recentes de teatro de inspiração científica. A primeira, Albertine, o Continente Celeste, estreou a 16 de Setembro de 2014 no Teatro Nacional de S. João, no Porto, e a segunda, O Nosso Desporto Favorito, estreou a 9 de Junho de 2016 no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Os dois textos estão publicados (o segundo numa edição bilingue português-inglês) pela editora Abysmo, de João Paulo Cotrim, na colecção “Palco”, tendo saído respectivamente em 2015 e 2016. A primeira peça apoia-se no romance Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust, invocando as concepções científicas do tempo proporcionadas pela termodinâmica, pela teoria quântica e pela cosmologia, ao passo que o segundo, primeiro volume de uma anunciada tetralogia, é uma reflexão sobre a evolução artificial, isto é, a possibilidade de interferência do homem no seu destino como espécie biológica através da manipulação genética.
Falemos do livro mais recente, O Nosso Desporto Favorito, cuja acção se conta em poucas linhas, sem desvendar alguns aspectos surpreendentes, como a razão de ser do título. Um grupo de cinco cientistas conseguiu, num futuro distante, a proeza de preparar um sucessor da espécie humana, um feto que está a incubar na barriga de um membro do grupo. Não se sabe o que vai a ser esse neohumano, a não ser que se pretenda que tenha inteligência superior, uma constituição física que lhes permitirá resistir aos climas mais desfavoráveis, e reduzida necessidade de alimentação (“Bendito sistema digestivo do Novo-humano, maravilha/ da simplificação anatómica”). Como são apresentadas as figuras desses cientistas, aprendizes de feiticeiro? Em palco estão três homens, Michel (um nome inspirado no do escritor Michel Houellebecq, mas que evoca o de um fraudulento cozinheiro português), o Prudente (o nome denota a necessidade de precaução em manipulações científicas) e o o Viajante em Sonho (que é uma figura onírica, surrealista, capaz de metamorfoses). E há duas mulheres com o nome de deusas, Hera, a deusa do casamento e da fecundidade, que transporta o “homem novo” no seu ventre, e Afrodite, a deusa do amor e da sexualidade. Os homens e mulheres que querem mudar a espécie humana estão evidentemente a fazer de deuses, pelo que não admira que o simpósio entre eles faça lembrar um diálogo de deuses da Antiguidade Clássica. Mas há também uma estranha cadeira falante, que em palco aparece com voz humana e em movimento robotizado. A primeira cena da peça intitula-se De Rerum Natura, como o texto do poeta latino Tito Lucrécio Caro, do século I a.C., que fala da Natureza como um turbilhão de átomos em transformação permanente, entregues como estão a leis naturais. Usando versos ao estilo latino, diz Michel na cena inicial, muito excitado: ”Maravilhem-se com a nossa obra, suplico-vos! /Sintam orgulho nos traços distintivos do Novo-Humano/ Abstractizem a sua aparência! Embeveçam-se com as/ Características anatómicas e fisiológicas da nossa/ Descendência. O futuro da nossa espécie está naquela/ Barriga, fruto do nosso fruto, prodígio da ciência”, explicando pouco depois como a proeza tinha sido conseguida: “Não há genoma que tenha escapado à nossa desencriptação, / tal como, nos tempos primevos da nossa demanda, não houve / Animal que tenha escapado à nossa ajuizada investigação.”
Que imagem nos fica destes cientistas, construtores do “admirável mundo novo”? O teatro é bem mais antigo do que a ciência e, nos tempos da Grécia Antiga, a imagem dos sábios apareceu de duas maneiras, a do ser ambicioso e malvado, que roubou o fogo aos deuses para o dar aos homens, em Prometeu Acorrentado, atribuída a Ésquilo, e a dos também ambiciosos mas sem princípios e um pouco patetas, como os sofistas de As Nuvens, de Aristófanes. No fundo, é a divisão dual do teatro entre tragédia e comédia. No tempo da Revolução científica, quando emergiu a ciência moderna, a ciência apareceu logo em palco e podemos ainda falar deste dois estereotipos: o malvado é representado pelo médico-alquimista que vende a alma ao demónio na tragédia Doctor Faustus (1592), de Christopher Marlowe, ao passo que o pateta é representado pelo astrólogo aldrabão da comédia Albumazar (1615), de Thomas Tomkis. Como se situa a peça de teatro de Waddington? O Nosso Desporto Favorito é uma mistura, uma tragicomédia, pois os personagens oscilam entre o malvado e o pateta. Por muito avançada que seja a sua investigação, estão presos à sua inexorável condição humana. Na penúltima cena (intitulada Symposium - concórdia, indicando a restauração da tranquilidade), Hera já abortou, impedindo a distopia. Michel fala agora de um tempo futuro como um tempo passado, um tempo em que a Terra voltará a ser como dantes, e onde se dará uma ressurreição da vida humana, mas onde, diz ele, “seremos nós, outra vez e sempre”.
Nos últimos anos, em reflexo da crescente influência da ciência e tecnologia na sociedade, tem crescido em todo o mundo o número de peças de teatro que tratam de temas de ciência ou inspirados pela ciência. Não existem muitas peças em Portugal deste tipo e a última peça de Gonçalo Waddington faz-nos reflectir sobre as fantásticas mas também assustadoras possibilidades em aberto na biologia, num tempo em que o uso de técnicas de manipulação genómica, designadamente o CRISPR, está ao virar da esquina. A ciência está cada vez mais nas nossas vidas e o teatro sempre foi o espelho da vida.
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