sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

ACONSELHAMENTO FILOSÓFICO: A HOMEOPATIA DA FILOSOFIA?

Com a devida vénia, publico a seguir um artigo que nos foi enviado pela cientista social Lia Raquel Neves.


Em 2009, o Jornal Público publicou o artigo “Dão-se consultas de Filosofia” (aqui[1]) sobre o trabalho do Jorge Humberto Dias e, em 2014, o artigo: “Doutorando de Coimbra pretende ajudar pessoas a partir de consultas de filosofia” (aqui[2]) sobre o trabalho do Filipe Menezes. Ambos falam, de um modo pouco rigoroso, da atual posição que a filosofia ocupa no cenário político-científico português; do descrédito da área disciplinar e da subalternização da prática e desenvolvimento teórico-conceptual da filosofia às normas e valores economicistas e/ou neoliberais. Em nenhum momento exploraram questões como: i) a formação curricular dos cursos de filosofia nas universidades portuguesas; ii) oferta de cursos de pós-graduação em aconselhamento filosófico; iii) quem regulamenta e certifica a qualidade de um curso on-line constituído por três níveis[3]? iv) se a Associação Portuguesa de Filosofia reconhece a validade dos cursos do Gabinete Project@ - Consultoria Filosófica e dos de Philosophical Counseling realizados que são realizados pela Society for Philosophy in Practice (UK) [4]; etc.

Sobre o aconselhamento filosófico em Portugal, bem como a necessidade de reconhecimento social e profissional - li um texto (aqui[5]) do Filipe Menezes que não só reduz "as filosofias – à Filosofia", como circunscreve a «aplicação da Filosofia e do filosofar a sentimentos de insatisfação, de tristeza, melancolia e frustração». O Aconselhamento Filosófico diz entrecruzar as noções de "filosofia" e "ajuda", em vista a assinalar o carácter Científico da futura profissão: «um serviço em que um filósofo ajuda alguém a filosofar» (p.102). Mas como o caricato não é suficientemente "visível" perpetua-se mais um pouco a máxima socrática «conhece-te a ti mesmo» na esperança de um reconhecimento profissionalizante: «o Aconselhamento Filosófico ajuda o indivíduo a orientar-se com recurso a instrumentos de trabalho e conteúdos filosóficos» (p.103). Estarão esquecidos da hermenêutica transformativa do Alan Sokal em Transgressing the boundaries: toward a transformative hermeneutics of quantum gravity[6] e das consequências que teve o relativismo cognitivo?

Convém referir que em Portugal não temos um Philosophical Counseling da Society for Philosophy in Practice (UK) ou uma American Philosophical Practitioners Association (APPA)[7] - ainda que tenhamos uma Sociedade Portuguesa de Filosofia[8] (que não assume uma posição específica face ao aconselhamento filosófico) e uma Associação Portuguesa de Ética e Filosofia Prática (APEFP)[9] - a representar os profissionais, dado que a filosofia foi quase reduzida a docentes do ensino secundário e superior, e à dita “carreira académica”/ “investigação”.

Em Portugal temos cerca de 7 licenciaturas em filosofia nas várias universidades do país[10] com médias de acesso compreendidas no curto intervalo de 11-13 valores, sendo as estruturas curriculares destes cursos de cariz, maioritariamente, axiológica. Numa redução ao absurdo, posso deduzir que a minha capacidade de argumentar é equivalente, por si só, ao direito a ter uma licença para cobrar sessões de argumentação terapêutica? Não será a tentativa de implementar uma certa profissionalização assente em investigações semânticas pelo contexto "clínico", por si só, perversa?

Conclusão? O aconselhamento filosófico está para a filosofia, como a homeopatia está para a medicina.

Lia Raquel Neves (Cientista Social)



*Imagem de Quino http://www.quino.com.ar/.



[7] Podem também ver-se os portugueses que nela aparecem listados: https://www.appa.edu/counselors.htm#pg.
[8] Disponível em: http://www.spfil.pt .
[9] Disponível em: http://www.apefp.org .

10 comentários:

Anónimo disse...

Filosofia! Ah..... A sensação da sua leitura é como a de quem paga bilhete para ir ao circo ver palhaços. A gente entra, debruça-se da capa e fende o livro exatamente na página por onde espreita o sapato de um palhaceco. Coisa de porquê psicológico. E espreitando para dentro, é vê-lo ao contrário, na bicicleta de uma só roda, a espremer água pelas plásticas flores do chapéu, enquanto circula por todo o espaço do palco aos sibilantes riscos pretos pelo chão do metal que suporta a roda gasta. Às vezes, cruzo a perna para ler melhor e descubro, nas subtilezas do fato, remendos broncos esgaçados de linha, presos nas cores incompatíveis pela infinita possibilidade de haver sempre mais outras cores para além das básicas primárias, por onde perpassa o transversal alinhavo da colorida fealdade. Porque rir é feio. Escorre da borbulha medievalista da troça, da ignorância e do maldizer. Mas adiante... Passa a filosofia sustentada e insustentada no determinadamente indeterminado, na vacuidade da pedalada ritmada pelas palmas que nunca acertam nos insetos que sabem como se desviar de sons estalados. Porque é preciso uma pessoa distrair-se. E, logo após, procurar homeopatas que nos tratem das consequências das distrações que escolhemos e nos administrem estupefacientes raqueldiculamente estúpidos que nos façam esquecer os palhaços a quem se pagamos bilhete para conseguir rir.

Fernanda C.

Anónimo disse...

Estimada Fernanda C.,
Obrigada pelo tempo que dedicou a ler e a comentar este tema. Lamento se a minha resposta não corresponder ao seu exercício literário, lamento ainda mais se eu própria vejo um comentário non sequitur das questões que apresento. Estas questões merecem a atenção de todos e todas nós – a profissionalização de uma determinada atividade que derivada de uma esfera do conhecimento deve ter um procedimento de transparência. Dito isto, e para não ignorar a sua referência ao circo, deixo-a com uma passagem por Artaud: "A tragédia em cena já não me basta".

Lia Raquel Neves.

Anónimo disse...

O que diz é que hoje não há filósofos a filosofar, há professores de filosofia. Mas bom, tal como a homeopatia que referiu, talvez ela venha a interessar mais aos médicos do que você imagina!!!

marina disse...

para dizer que acha o aconselhamento filosófico uma treta ( uma tristeza , acho eu , que o filosófo pago venha substituir o amigo grátis , mas enfim , é coerente com lares e creches em substituição da família ) escusava era de se poerder num texto que parece um impresso burocrático :) e que elitismo , god : "com médias de acesso compreendidas no curto intervalo de 11-13 valores, sendo as estruturas cur.." . que é que isto quer dizer ? que qualquer um pode ir para filosofia ? e ? acho mais grave só marrões poderem ir para medicina , não quero ser tratada por um marrão sem imaginação nem intuição - diagnósticos errados e a conta gotas ultimamente são às paletes -, mas não me importo de conversar com qualquer um.

Albert Hoffmann disse...

"O aconselhamento filosófico está para a filosofia, como a homeopatia está para a medicina." Não! É como assim: O consultório filosófico está para o consultório dum médico, dum psicólogo, dum psicoterapeuta, como a clínica BDSM duma dominadora está para a clínica dum hospital: não ajuda, não cura, mas contamina o cliente com um desejo, com uma falta, com saudades da sabedoria, e provoca um prazer específico, o prazer incomparável de fazer filosofia! Albert Hoffman (www.sophonautik.ch)

Anónimo disse...

Marina, Anónimo e Albert

Obrigada pelos vossos comentários, bem como pelas leituras. Há várias questões que merecem ser discutidas para lá deste "impresso burocrático" e que terei todo o gosto, com o devido tempo, em contribuir com aquilo que me for possível e souber pensar (com). De facto, tenho de concordar que a média de acesso nada quer dizer (concordo com a crítica, bem como eu própria sou crítica de métricas) – mas este aspeto visava apontar para um outro de maior importância – a transdisciplinaridade de conteúdos necessários à prática de um Aconselhamento Filosófico. Este debate, a meu ver, deverá ser tido dentro e fora da academia, com transparência e incluindo a sociedade no direito à informação. Ao fim de contas (uso a expressão propositadamente), este "serviço" não é para a sociedade? Uma cidadã não pode questionar, por exemplo, como se chegou ao justo valor que lhe será pedido se recorrer a este "serviço"? 

Valia a pena, numa outra discussão, saber em que sentido se está, também, a recorrer à noção de terapia – é a que percorre o contexto helénico, ou a que é proveniente do contexto da ciência médica?

Concordo também com uma certa crítica de generalização ao afirmar que "o aconselhamento filosófico está para a filosofia, como a homeopatia está para a medicina" – poderá ser uma afirmação mais chamativa do que argumentativamente construída. Acontece que essa afirmação visava outras três questões: o Aconselhamento Filosófico não procura uma profissionalização que deriva de uma determinada esfera do conhecimento? Não procura, portanto, um carácter científico? Qual é o critério de demarcação para o AF entre o que é científico e não científico?

Por fim, e por comentários menos construídos que me chegam, chegámos ao ponto em que o meu direito a questionar um tema de relevância, ou por curiosidade de estudo, tem de ser validado (ou abafado) pela superioridade da linha ideológica de alguém?! Mias uma vez, o texto cumpriu o objetivo de dar a pensar questões (de modo não academizado) as quais, até ao momento, não se têm assumido como problemáticas.

Obrigada por me lerem e comentarem, Lia Raquel Neves.

gabinete-project disse...

Boa tarde. Dada a limitação de caracteres, a minha resposta pode ser encontrada aqui:
http://gabinete-project.blogspot.pt/2017/02/resposta-dra-lia-neves-artigo-publicado.html
Com os melhores cumprimentos, Jorge Humberto Dias.

Teresa Furtado Coelho disse...


“O aconselhamento filosófico está para a filosofia, como a homeopatia está para a medicina.”´É este o ponto de chegada do raciocínio. Para compreender acertadamente o que a Dra. Lia quis dizer com isto seria necessário saber qual a ideia que tem da homeopatia e como interpreta a relação desta com a medicina.
No primeiro parágrafo refere a entrevista e resume o seu conteúdo como insuficiente e pouco rigoroso, havendo uma série de questões que deviam (no seu entender) ser tratadas na entrevista e não o foram – o que é que, nos currículos dos cursos de filosofia, habilita alguns sujeitos a darem consultas. É uma questão pertinente, e inclusive muito curta: para que é que os currículos dos cursos de filosofia podem habilitar os sujeitos? Só depois, em segunda análise, viria a do AF (juntamente com outras especializações)
No segundo parágrafo afirma que o Filipe Menezes “circunscreve a «aplicação da Filosofia e do filosofar a sentimentos de insatisfação, de tristeza, melancolia e frustração», quando ele escreve explicitamente “Isto não significa que o significado do AF se esgote nesta aplicação à saúde e ao bem-estar, podendo assinalar-se outras possibilidades: a aplicação do AF ao ensino e à aprendizagem é uma das mais importantes, mas também é referida a sua aplicação em empresas, instituições políticas, centros de investigação científica, penitenciárias, etc.”Terá sido um lapso.

Teresa Furtado Coelho disse...

A Dra. Lia afirma ser caricata a pretensão do AF de “entrecruzar as noções de "filosofia" e "ajuda", em vista a assinalar o carácter científico da futura profissão: «um serviço em que um filósofo ajuda alguém a filosofar» . Uma vez mais não compreendo onde esteja o “caricato” porque não estou esclarecida dos pressupostos da autora: referir-se-á à pretensão de a Filosofia se chamar Ciencia? À tentativa de ir buscar essa qualificação introduzindo em si a noção de “ajuda”? Ou caricato será tentar fundamentar a classificação de Científica na relação entre filosofia e ajuda? Qualquer uma das três hipóteses daria um artigo só por si.
As Licenciaturas em Filosofia têm uma matriz essencialmente axiológica, segundo a autora, o que não é verdade e, caso fosse, não seria negativo, uma vez que a noção de valor é essencial, central, na ajuda que o AF pretende disponibilizar. Concordo, no entanto, que as médias de entrada são bastante baixas, o que não abona em termos de imagem da exigência na área de Filosofia. Mas é do conhecimento geral que os critérios de fixação das médias são fruto de todos os interesses menos dos devidos e são consequência de um desinvestimento muito mais básico e anterior na área.

Teresa Furtado Coelho disse...

“Posso deduzir que a minha capacidade de argumentar é equivalente, por si só, ao direito a ter uma licença para cobrar sessões de argumentação terapêutica?” A Dra. pode deduzir o que quiser, mas não fará jus a uma Licenciatura em Filosofia. “Argumentar” é uma competência, entre muitas outras, que a Filosofia ensina, mas que por si só é vazia. Também existe o espanto, a interrogação, a escuta, a análise, a interpretação, a síntese e, sobretudo, a busca da verdade.
Não compreendo o que seja “argumentação terapêutica”. De um ponto de vista não há terapeuta que não argumente (de modo mais ou menos falacioso), de outro ponto de vista a terapia consistirá nesse exercício – não vazio, mas fruto de um anterior e interior – de argumentar e contra-argumentar, como crivo de crenças falaciosas que subjazem a estados não-saudáveis. Fundamento-me no método gémeo da Filosofia, chamada a “Terapia Cognitivo-Comportamental”, que demonstra como e até que ponto a deformação dos processos cognitivos pode gerar estados patológicos no paciente. Inclusive, um dos principais tratamentos consiste em ensinar o paciente a argumentar consigo próprio…
Assim, se quiser reformular a questão deste modo ““Posso deduzir que a minha capacidade de escutar, interrogar, interpretar, analisar e buscar a verdade, é equivalente, por si só, ao direito a ter uma licença para cobrar sessões de argumentação terapêutica?” O meu impulso seria responder-lhe entusiasticamente “Sim! Por amor de Deus, sim!”

NO AUGE DA CRISE

Por A. Galopim de Carvalho Julgo ser evidente que Portugal atravessa uma deplorável crise, não do foro económico, financeiro ou social, mas...