sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Entrevista com o físico brasileiro José Goldemberg

Entrevista recebida de Hélio Dias, USP-Brasil:
Mais do que professor dedicado, pesquisador ousado ou gestor eficiente. O professor José Goldemberg, pode-se resumir, é uma autoridade acadêmica. A universidade brasileira tem poucos como ele: visão acurada para os detalhes e ampla para os horizontes. Suas posições, não raro, reverberam dos corredores aos gabinetes, conquistam adeptos e influenciam rumos.
Nesta entrevista, concedida a propósito da homenagem a ele como Professor Emérito da USP, Goldemberg fala sobre as áreas portadoras de futuro na física e na engenharia, da importância de se estar na vanguarda do conhecimento para melhorar os indicadores de qualidade na pesquisa, do valor da internacionalização, e o que precisa ser melhorado no sistema universitário. Também defende que o Ministério da Educação invista mais no ensino básico como forma de ajudar a população mais pobre a ingressar na universidade sem necessidade de cotas.
Como o senhor vê a física hoje? A física e seus conhecimentos têm um papel de peso no desenvolvimento tecnológico como teve no passado?
Temos áreas da ciência que se desenvolvem muito rapidamente e com muito sucesso, a tal ponto que posteriormente fica até difícil contribuir mais para esse desenvolvimento. Já em outras avançamos tão devagar que sempre têm novidades, cada vez mais importantes. Por exemplo, ainda temos um grande trabalho a fazer na elucidação do código genético e de como ele se reflete nas características das pessoas. Por isso, temos pesquisas sensacionais, como estudos focados em mudanças de código genético para evitar o desenvolvimento de doenças ou que buscam a cura para doenças como o câncer.
A física teve enorme sucesso na parte teórica, na década de 1920-1930, quando a mecânica quântica foi desenvolvida, e antes disso, com a Teoria da Relatividade. A primeira metade do século foi dominada por avanços teóricos na compreensão das leis do Universo, e depois acabou se estabelecendo. Em meados do século 20, houve um progresso tecnológico espantoso, que foram as explosões nucleares e o eventual uso da energia nuclear para fins pacíficos, para geração de eletricidade. Isso deu um novo impulso para a física. Ou seja, tivemos na primeira metade do século passado um grande avanço conceitual nesse campo do conhecimento e que a gente não presenciava desde os séculos 17-18, com Newton. E, na segunda metade do século 20, tivemos os avanços tecnológicos, como o uso da energia nuclear e os transístores, que permitiram a construção de computadores de grande porte.
Há um sentimento, adequado, de que essas duas etapas já passaram pelo pico das contribuições e agora as pessoas se dedicam às aplicações, que são menos desafiadoras. A internet, por exemplo, surgiu com os físicos fazendo transístores há 50 anos. Há 60-70 anos, as experiências em energia nuclear eram feitas em mesas do tamanho de mesas de escritório. Hoje, temos reatores imensos. Digamos que a vanguarda dos avanços mudou um pouco. Quem trabalha com física atualmente acredita que teremos grandes avanços nesse campo na área de construção de materiais. Aprendemos tanto que agora a ideia é, ao invés de viver com os materiais que existem na natureza, programarmos os materiais para terem as características que queremos. Sabemos que os fios produzidos pelas aranhas são os mais resistentes na natureza; agora temos pesquisadores em laboratório desenvolvendo fios tão ou mais resistentes do que os feitos pelas aranhas. A área de Física dos Materiais é a que está desenvolvendo muito. No último ano, detectamos as ondas gravitacionais. Isso abriu uma nova janela para entendermos melhor o Universo.
E a física brasileira? Estamos bem?
Nossa física tem um pé em todas essas áreas desse campo científico. Temos pesquisadores brasileiros trabalhando com ondas gravitacionais, com grafeno e outros novos materiais, com nanotecnologia. A física brasileira está bem, no sentido de que estamos participando da vanguarda, mas não conseguimos ainda promover descobertas originais de grande impacto. Esse é um problema não só da física, mas da ciência brasileira como um todo.
O Brasil tem alguma vocação em alguma área específica da física?
Não creio que devemos privilegiar áreas. Há uma cobertura bastante razoável de todas as áreas de física, mas, olhando as estatísticas recentes, é possível observar um fenômeno. Quando eu era estudante de pós-graduação, a energia nuclear era a coqueluche do momento. Hoje, apenas 6% dos físicos trabalham em física nuclear no País. Física dos Materiais e Cosmologia tomaram mais espaço. Isso mostra a evolução que houve no século 20.
Como o senhor saiu da pesquisa na área nuclear e chegou aos estudos sobre etanol, numa época que o etanol não era visto como uma solução para o meio ambiente, mas apenas como alternativa para enfrentar o alto preço do petróleo?
À época, em 1970, havia uma grande discussão se a energia nuclear era algo perigoso. Havia muitos testes nucleares e os próprios cientistas eram contra porque podiam causar um mal danado. Eu participava muito dessas discussões, como presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência). A ideia era a de que energia nuclear não era um bom caminho a seguir no Brasil. As pessoas então me confrontavam: se não é energia nuclear, o que seria? Carvão é muito poluente. Qual fonte de energia que não causaria esses problemas? Fiz, então, um trabalho sobre o etanol, no qual mostrei que ele é praticamente luz solar liquefeita. Eu não era contra o uso de energia nuclear, mas queria enfrentar esse desafio de buscar uma alternativa.
Mas o que fez o senhor pensar no etanol e não na energia solar ou outro tipo?
Na época, o preço do açúcar estava baixo e o Brasil estava produzindo muito etanol. Era um problema econômico. Essa ideia de que o etanol, de certa forma, era energia solar não existia, eu que apresentei. Escrevi um artigo na Science mais recentemente, atualizando o meu artigo anterior (publicado nessa revista no final dos anos 1970), e ele foi citado mil vezes. Esse artigo teve um impacto enorme.
O senhor foi professor da Escola Politécnica. Como vê a engenharia hoje?
Como ocorreu com a física, a engenharia teve um papel muito importante em meados do século passado, especialmente com a tecnologia do concreto armado. O Brasil é um dos países que efetivamente exerceram uma liderança grande nessa área, devido especialmente ao trabalho da Poli e do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas). É uma tecnologia estabelecida no mundo todo. A arquitetura brasileira se espalhou pelo mundo. O sucesso de (Oscar) Niemeyer é um reflexo disso. Ele combinou um senso artístico diferenciado com uma tecnologia que foi tornada viável pelos engenheiros da Politécnica. Isso funcionou muito bem e marcou a engenharia do Brasil como uma engenharia de vanguarda na ocasião.
Mais recentemente houve o grande sucesso das hidrelétricas. Nossas hidrelétricas são das mais interessantes do mundo e até recentemente Itaipu era a maior do mundo. Essa hidrelétrica é como uma catedral de concreto. A barragem é gigantesca e é oca, não é maciça como são normalmente as barragens, isso graças à engenharia nacional. É uma área que se desenvolveu e conquistou um lugar no mundo todo.
E temos outras áreas que tiveram dificuldades em se desenvolver. Por exemplo, na produção de computadores, muitos países tentaram ocupar o papel dos Estados Unidos, produzindo chips. O Brasil tentou entrar nessa área e não deu certo, mas se desenvolveu um grande conhecimento da tecnologia. O desenvolvimento tecnológico num país é importante não só para produção de coisas novas, mas para escolher adequadamente as tecnologias que existem. Conhecê-las, olhar para o mundo, ver o que os demais estão fazendo e escolher a melhor, isso é algo que a USP e a Poli têm feito, formado especialistas que podem acompanhar o que ocorre no mundo.
A engenharia brasileira está em crise?
Ela acompanha a crise brasileira. O fato de não termos projetos de infraestrutura no Brasil afeta tremendamente essa área. Na Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), estamos tentando fazer com que a Poli e o IPT se desenvolvam na área de impressão 3D. É uma área moderna, com muitas possibilidades de inovação. Não se pode comprar simplesmente uma máquina 3D e começar a produzir aqui porque os materiais são diferentes e é preciso adaptações. Uma outra área que a Fapesp está tentando encorajar é a introdução da eficiência energética nas construções, dentro do conceito de prédios e cidades inteligentes… Temos poucas empresas de engenharia fazendo prédios desse tipo. Estamos tentando encorajar a formação de consórcios entre a Poli e empresas de construção civil para estimular estudos nessa área. A Fapesp tem interesse e pode participar utilizando recursos disponíveis aqui.
O Brasil forma bons engenheiros?
Sim, e formamos bem nossos profissionais na área fundamental da engenharia. Com minha ida para a Poli, foram contratados pesquisadores para dar aulas nas disciplinas básicas, como a física. Com isso, modernizamos o conteúdo que era estudado. Os alunos achavam que as aulas eram piores do ponto de vista didático, mas melhores do ponto de vista do conteúdo científico. Eles se queixavam do primeiro ao último dia porque queriam entrar imediatamente nas aplicações. E eu dizia para eles terem calma porque estavam aprendendo os fundamentos do que seria útil. Encontro meus ex-alunos, hoje diretores de grandes empresas, e eles agradecem o fato de terem tido um bom ensino fundamental em engenharia. Eles conseguem entender o que se passa no mundo. A formação básica é importante por isso.

O senhor diria que era um professor muito bravo, muito exigente?
Não. Alguns dos meus colegas eram melhores na didática do que eu, mas eu compensava com o conteúdo. Eu conseguia explicar para eles, por exemplo, o que a Teoria da Relatividade tem a ver com nosso mundo. Um dos astronautas que ficaram um ano na Estação Espacial envelheceu menos do que a gente na Terra. E é preciso saber um pouco de Teoria da Relatividade para entender por que isso ocorreu. Ter um bom ensino básico em engenharia é fundamental para entender melhor o mundo. Essa afobação para ir para o prático precisa ser enfrentada. Os estudantes precisam entender que esses anos são insubstituíveis na vida da pessoa. Quando ele for um diretor importante numa grande empresa, ele não terá tempo para ler livros sobre a Teoria da Relatividade. É importante ele aproveitar esse tempo do início dos estudos para ter essa base que vai ajudá-lo a entender o mundo.
Passamos por um processo recente de aumento de investimentos em ciência e melhoria dos indicadores científicos. Mas esses aumentos quantitativos não se refletem na melhoria qualitativa da ciência…
Temos problemas na ciência brasileira e nas universidades, incluindo a USP. A produtividade medida pela quantidade de trabalhos publicados aumentou muito e as pessoas agora estão começando a se preocupar com a qualidade. Ela é medida pelo impacto. É difícil medir qualidade. No caso da ciência, podemos medir o impacto com base no número de citações de um trabalho. Quando olhamos os indicadores brasileiros, vemos que o impacto não está acompanhando a explosão quantitativa dos trabalhos publicados. É uma preocupação séria das universidades, da Fapesp. Temos de fazer um esforço para melhorar. E a única forma de fazer isso é estar na vanguarda, pois é aqui que aparecem os problemas novos.
Essa baixa citação dos nossos artigos está relacionada à publicação em revistas não tão reconhecidas ou é a qualidade da pesquisa brasileira, muito incremental?
É a qualidade da pesquisa. Naturalmente, como surgiram muitas revistas, as pessoas publicaram trabalhos que não são muito bons nas revistas que também não são muito boas. O impacto da ciência brasileira, nas revistas de boa qualidade, não está aumentando. É algo sério e que todos nós temos de enfrentar.
O senhor falou sobre problemas nas universidades. No caso da USP, sua casa de origem, ela está melhor hoje do que quando o senhor era docente?
A Universidade hoje está muito maior, então seria como comparar uma criança com um adulto. Nos primeiros tempos da USP, com aquele fluxo que houve de professores estrangeiros, tivemos um tratamento de choque. O nível local de competência subiu muito. Foi difícil de manter depois. Tanto que hoje a Fapesp tem um programa de internacionalização, de trazer cientistas de fora ou mandar cientistas brasileiros para estágios no exterior. Eu não diria que o nível da Universidade piorou. A USP ficou muito grande e os pedaços mais ‘fracos’, digamos assim, são mais visíveis. Mas é uma universidade muito relevante, é uma das 200 melhores universidades do mundo. E com justiça. Não é correto pensar que ser uma das 200 melhores universidades do mundo não é uma grande honra porque existem cerca de 10 mil universidades do mundo.
E o que devemos melhorar no sistema universitário?
Acho que os programas de mestrado e doutorado precisam introduzir regras mais exigentes na concessão desses títulos. Ficou um pouco banalizado. A USP é uma das universidades que concedem o maior número de títulos de doutor do mundo. Precisaria ‘apertar um pouco os parafusos’. É uma análise que vale para a USP e também para as demais universidades brasileiras.

Quando reitor da USP, o senhor teve um papel fundamental na conquista da autonomia universitária na gestão. Hoje, a USP passa por uma crise financeira. Como alguém que pensou e lutou por isso, como vê a situação hoje?
A autonomia de gestão foi introduzida em 1988 e o decreto que a estabeleceu prevê que 75% dos recursos poderiam ser gastos com pessoal. Essa cláusula foi cumprida por aproximadamente 20 anos. Só a partir de 2010 acabou sendo desobedecida porque foram atendidas demandas de uma maneira liberal e que não cabia dentro do orçamento. Tivemos a crise econômica somada a esse fato, já que, com a crise, caiu a arrecadação.
Quando se constrói um prédio, se realiza a despesa uma vez só. Quando se aumenta salário, se faz algo que é permanente. Isso levou a Universidade a gastar mais de 100% com salários. Essa situação precisa ser resolvida. Não é possível uma universidade funcionar sem liberdade, mas dessa forma, a autonomia acaba se esvaziando. No fundo, os recursos não foram usados seguindo as regras da responsabilidade fiscal. Pela lei, que vale para o Brasil todo, União, Estados e municípios, você não pode gastar mais do que certa fração com salários. Na Universidade essa regra foi abandonada.
Isso significa que a autonomia não deu certo?
Não, pelo contrário, ela deu extraordinariamente certo, mas para outras áreas. Você vê a explosão que houve em trabalhos publicados, para ver como a pesquisa evoluiu nesse contexto. É como se as universidades tivessem ressurgido das cinzas. Os reitores passaram a ter meios para, por exemplo, decidir que precisam expandir um laboratório de bioquímica porque a área é importante para entender a cura do câncer ou algo desse tipo. Agora, sem recursos, a Universidade precisa pedir dinheiro para agências como o CNPq, que têm limites sérios, do ponto de vista orçamentário e também do que podem realmente fazer. A Fapesp não pode financiar construção de prédios. Apesar de ajudarmos a USP de maneira significativa, há coisas que não podemos fazer. As universidades precisam guardar parte de seus recursos para exercerem sua autonomia. Isso deixou de ser obedecido a partir de 2010 e precisa ser corrigido.
E qual seria o caminho para essa correção?
O caminho fácil é aumentar a fração de ICMS, mas não tem espaço para isso. Há uma quantidade imensa de demandas sociais para serem atendidas, em áreas como saúde e educação. O que temos é a esperança mais sólida de recuperação da situação econômica do País e a opção de adotar medidas sérias de austeridade dentro das universidades. Os reitores estão tentando fazer isso, mas também há um limite para essa austeridade.
Falamos até agora da pesquisa e do ensino superior. Mas o Brasil tem um quadro muito complicado na educação básica. Como observa essa área hoje, o senhor, que já foi ministro da Educação? Vamos enfrentar um gargalo no ensino superior, de não ter bons alunos formados no ensino fundamental para cursá-lo?
O Ministério da Educação coloca praticamente todo seu dinheiro nas universidades. São recursos apreciáveis. Isso precisa mudar. É verdade que temos áreas de educação que são responsabilidade do município ou do Estado, mas a ênfase no ensino superior, dada nos últimos 15 anos, é incorreta. Foram criadas muitas universidades federais. Universidade custa caro. Um aluno numa universidade brasileira custa cerca de R$ 50 mil por ano, não muito diferente do custo numa universidade americana. Essa ênfase dada pelo governo federal ao ensino superior no Brasil devia ser dada para o ensino fundamental, de modo a preparar melhor os estudantes para competir pelas vagas do ensino superior. O governo federal precisaria efetivamente ajudar mais nessa área. Essa seria a maneira de ajudar a população mais pobre, e não criando cotas nos vestibulares. É elevando os mais pobres para poderem competir, efetivamente, pelos lugares das universidades públicas. Como o País não consegue, a maioria vai para universidades particulares.
Mas se já investimos um valor considerável, então temos outra questão que não é financeira…
Tem. É o uso não eficiente dos recursos. É uma questão de gerenciamento também.
A sociedade brasileira valoriza a educação? Ou é só discurso?
Estamos mais no plano do discurso, tanto que o governo abriu universidades federais em lugares que não precisavam desse tipo de instituição, precisavam de investimento no ensino fundamental.
O senhor teve atuação como gestor e em cargos políticos. O que o atrai para atuar nessas áreas?
Eu trabalhei na área de energia, minha área de especialização profissional, sou um pesquisador da área energética. Isso justificou eu trabalhar numa empresa de eletricidade. Fora isso, sempre atuei na área educacional e de pesquisa. Fui reitor, ministro, secretário de ciência e tecnologia. Estar hoje na Fapesp é coerente com a minha trajetória. Trabalhei para vários governos, com várias tendências. Tenho a tranquilidade de dizer que tenho conseguido me manter alheio a influências políticas, fiz um esforço grande para isso.
O senhor gosta mais de ser gestor, pesquisador ou professor?
Tentei conciliar isso a vida toda. Há um limite, claro, mas continuo publicando trabalhos em revistas especializadas. Minha atividade científica hoje é menor, mas eu a mantenho. Perdi um pouco o interesse no ensino, no trabalho em sala de aula, mas faço isso com colaboradores, orientando teses de doutorado e dando palestras.
Professor e Jornalista Helio Dias
Departamento de Física Experimental.
Instituto de Física da Universidade de São Paulo-SP-Brasil
Co-Autor dos livros Física para Universitários
Pagina Pública no Facebook Science Club
Meu Canal no Youtube DrHelioDias

1 comentário:

Cisfranco disse...

Gostei. Fiquei a saber o que é "afobação".
Francisco Correia

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