Em 2009, o Jornal Público publicou o artigo “Dão-se
consultas de Filosofia” (aqui[1]) sobre o trabalho
do Jorge Humberto Dias e, em 2014, o artigo: “Doutorando de Coimbra pretende ajudar pessoas a partir de consultas de
filosofia” (aqui[2]) sobre o trabalho do Filipe Menezes. Ambos falam, de um modo pouco
rigoroso, da atual posição que a filosofia ocupa no cenário político-científico
português; do descrédito da área disciplinar e da subalternização da prática e
desenvolvimento teórico-conceptual da filosofia às normas e valores
economicistas e/ou neoliberais. Em nenhum momento exploraram questões como: i) a formação curricular
dos cursos de filosofia nas universidades portuguesas; ii) oferta de cursos de
pós-graduação em aconselhamento filosófico; iii) quem regulamenta e certifica a
qualidade de um curso on-line constituído
por três níveis[3]? iv) se a Associação
Portuguesa de Filosofia reconhece a validade dos cursos do Gabinete Project@ -
Consultoria Filosófica e dos de Philosophical
Counseling realizados que são realizados pela Society for Philosophy in Practice (UK) [4]; etc.
Sobre o aconselhamento
filosófico em Portugal, bem como a necessidade de reconhecimento social e
profissional - li um texto (aqui[5])
do Filipe Menezes que não só reduz "as filosofias
– à Filosofia", como circunscreve a «aplicação da Filosofia e do filosofar
a sentimentos de insatisfação, de tristeza, melancolia e frustração». O Aconselhamento
Filosófico diz entrecruzar as noções de "filosofia" e
"ajuda", em vista a assinalar o carácter Científico da futura
profissão: «um serviço em que um filósofo ajuda alguém a filosofar» (p.102). Mas
como o caricato não é suficientemente "visível" perpetua-se mais um
pouco a máxima socrática «conhece-te a ti mesmo» na esperança de um
reconhecimento profissionalizante: «o Aconselhamento Filosófico ajuda o
indivíduo a orientar-se com recurso a instrumentos de trabalho e conteúdos
filosóficos» (p.103). Estarão
esquecidos da hermenêutica transformativa do Alan Sokal em Transgressing
the boundaries: toward a transformative hermeneutics of quantum gravity[6] e das consequências que teve o relativismo
cognitivo?
Convém referir que em
Portugal não temos um Philosophical
Counseling da Society for Philosophy
in Practice (UK) ou uma American Philosophical Practitioners Association
(APPA)[7] -
ainda que tenhamos uma Sociedade Portuguesa de Filosofia[8]
(que não assume uma posição específica face ao aconselhamento filosófico) e uma
Associação Portuguesa de Ética e Filosofia Prática (APEFP)[9] -
a representar os profissionais, dado que a filosofia foi quase reduzida a docentes do ensino secundário e superior, e
à dita “carreira académica”/ “investigação”.
Em Portugal temos cerca de
7 licenciaturas em filosofia nas várias universidades do país[10]
com médias de acesso compreendidas no curto intervalo de 11-13 valores, sendo
as estruturas curriculares destes cursos de cariz, maioritariamente,
axiológica. Numa redução ao absurdo, posso deduzir que a minha capacidade de
argumentar é equivalente, por si só, ao direito a ter uma licença para cobrar
sessões de argumentação terapêutica? Não será a tentativa de implementar uma certa
profissionalização assente em investigações semânticas pelo contexto
"clínico", por si só, perversa?
Conclusão? O aconselhamento filosófico está para a
filosofia, como a homeopatia está para a medicina.
Lia Raquel Neves (Cientista Social)
[3] Mais informações em: http://gabinete-project.blogspot.pt/2013/09/curso-de-nivel-1-aconselhamento.html.
[7] Podem também ver-se
os portugueses que nela aparecem listados: https://www.appa.edu/counselors.htm#pg.
10 comentários:
Filosofia! Ah..... A sensação da sua leitura é como a de quem paga bilhete para ir ao circo ver palhaços. A gente entra, debruça-se da capa e fende o livro exatamente na página por onde espreita o sapato de um palhaceco. Coisa de porquê psicológico. E espreitando para dentro, é vê-lo ao contrário, na bicicleta de uma só roda, a espremer água pelas plásticas flores do chapéu, enquanto circula por todo o espaço do palco aos sibilantes riscos pretos pelo chão do metal que suporta a roda gasta. Às vezes, cruzo a perna para ler melhor e descubro, nas subtilezas do fato, remendos broncos esgaçados de linha, presos nas cores incompatíveis pela infinita possibilidade de haver sempre mais outras cores para além das básicas primárias, por onde perpassa o transversal alinhavo da colorida fealdade. Porque rir é feio. Escorre da borbulha medievalista da troça, da ignorância e do maldizer. Mas adiante... Passa a filosofia sustentada e insustentada no determinadamente indeterminado, na vacuidade da pedalada ritmada pelas palmas que nunca acertam nos insetos que sabem como se desviar de sons estalados. Porque é preciso uma pessoa distrair-se. E, logo após, procurar homeopatas que nos tratem das consequências das distrações que escolhemos e nos administrem estupefacientes raqueldiculamente estúpidos que nos façam esquecer os palhaços a quem se pagamos bilhete para conseguir rir.
Fernanda C.
Estimada Fernanda C.,
Obrigada pelo tempo que dedicou a ler e a comentar este tema. Lamento se a minha resposta não corresponder ao seu exercício literário, lamento ainda mais se eu própria vejo um comentário non sequitur das questões que apresento. Estas questões merecem a atenção de todos e todas nós – a profissionalização de uma determinada atividade que derivada de uma esfera do conhecimento deve ter um procedimento de transparência. Dito isto, e para não ignorar a sua referência ao circo, deixo-a com uma passagem por Artaud: "A tragédia em cena já não me basta".
Lia Raquel Neves.
O que diz é que hoje não há filósofos a filosofar, há professores de filosofia. Mas bom, tal como a homeopatia que referiu, talvez ela venha a interessar mais aos médicos do que você imagina!!!
para dizer que acha o aconselhamento filosófico uma treta ( uma tristeza , acho eu , que o filosófo pago venha substituir o amigo grátis , mas enfim , é coerente com lares e creches em substituição da família ) escusava era de se poerder num texto que parece um impresso burocrático :) e que elitismo , god : "com médias de acesso compreendidas no curto intervalo de 11-13 valores, sendo as estruturas cur.." . que é que isto quer dizer ? que qualquer um pode ir para filosofia ? e ? acho mais grave só marrões poderem ir para medicina , não quero ser tratada por um marrão sem imaginação nem intuição - diagnósticos errados e a conta gotas ultimamente são às paletes -, mas não me importo de conversar com qualquer um.
"O aconselhamento filosófico está para a filosofia, como a homeopatia está para a medicina." Não! É como assim: O consultório filosófico está para o consultório dum médico, dum psicólogo, dum psicoterapeuta, como a clínica BDSM duma dominadora está para a clínica dum hospital: não ajuda, não cura, mas contamina o cliente com um desejo, com uma falta, com saudades da sabedoria, e provoca um prazer específico, o prazer incomparável de fazer filosofia! Albert Hoffman (www.sophonautik.ch)
Marina, Anónimo e Albert
Obrigada pelos vossos comentários, bem como pelas leituras. Há várias questões que merecem ser discutidas para lá deste "impresso burocrático" e que terei todo o gosto, com o devido tempo, em contribuir com aquilo que me for possível e souber pensar (com). De facto, tenho de concordar que a média de acesso nada quer dizer (concordo com a crítica, bem como eu própria sou crítica de métricas) – mas este aspeto visava apontar para um outro de maior importância – a transdisciplinaridade de conteúdos necessários à prática de um Aconselhamento Filosófico. Este debate, a meu ver, deverá ser tido dentro e fora da academia, com transparência e incluindo a sociedade no direito à informação. Ao fim de contas (uso a expressão propositadamente), este "serviço" não é para a sociedade? Uma cidadã não pode questionar, por exemplo, como se chegou ao justo valor que lhe será pedido se recorrer a este "serviço"?
Valia a pena, numa outra discussão, saber em que sentido se está, também, a recorrer à noção de terapia – é a que percorre o contexto helénico, ou a que é proveniente do contexto da ciência médica?
Concordo também com uma certa crítica de generalização ao afirmar que "o aconselhamento filosófico está para a filosofia, como a homeopatia está para a medicina" – poderá ser uma afirmação mais chamativa do que argumentativamente construída. Acontece que essa afirmação visava outras três questões: o Aconselhamento Filosófico não procura uma profissionalização que deriva de uma determinada esfera do conhecimento? Não procura, portanto, um carácter científico? Qual é o critério de demarcação para o AF entre o que é científico e não científico?
Por fim, e por comentários menos construídos que me chegam, chegámos ao ponto em que o meu direito a questionar um tema de relevância, ou por curiosidade de estudo, tem de ser validado (ou abafado) pela superioridade da linha ideológica de alguém?! Mias uma vez, o texto cumpriu o objetivo de dar a pensar questões (de modo não academizado) as quais, até ao momento, não se têm assumido como problemáticas.
Obrigada por me lerem e comentarem, Lia Raquel Neves.
Boa tarde. Dada a limitação de caracteres, a minha resposta pode ser encontrada aqui:
http://gabinete-project.blogspot.pt/2017/02/resposta-dra-lia-neves-artigo-publicado.html
Com os melhores cumprimentos, Jorge Humberto Dias.
“O aconselhamento filosófico está para a filosofia, como a homeopatia está para a medicina.”´É este o ponto de chegada do raciocínio. Para compreender acertadamente o que a Dra. Lia quis dizer com isto seria necessário saber qual a ideia que tem da homeopatia e como interpreta a relação desta com a medicina.
No primeiro parágrafo refere a entrevista e resume o seu conteúdo como insuficiente e pouco rigoroso, havendo uma série de questões que deviam (no seu entender) ser tratadas na entrevista e não o foram – o que é que, nos currículos dos cursos de filosofia, habilita alguns sujeitos a darem consultas. É uma questão pertinente, e inclusive muito curta: para que é que os currículos dos cursos de filosofia podem habilitar os sujeitos? Só depois, em segunda análise, viria a do AF (juntamente com outras especializações)
No segundo parágrafo afirma que o Filipe Menezes “circunscreve a «aplicação da Filosofia e do filosofar a sentimentos de insatisfação, de tristeza, melancolia e frustração», quando ele escreve explicitamente “Isto não significa que o significado do AF se esgote nesta aplicação à saúde e ao bem-estar, podendo assinalar-se outras possibilidades: a aplicação do AF ao ensino e à aprendizagem é uma das mais importantes, mas também é referida a sua aplicação em empresas, instituições políticas, centros de investigação científica, penitenciárias, etc.”Terá sido um lapso.
A Dra. Lia afirma ser caricata a pretensão do AF de “entrecruzar as noções de "filosofia" e "ajuda", em vista a assinalar o carácter científico da futura profissão: «um serviço em que um filósofo ajuda alguém a filosofar» . Uma vez mais não compreendo onde esteja o “caricato” porque não estou esclarecida dos pressupostos da autora: referir-se-á à pretensão de a Filosofia se chamar Ciencia? À tentativa de ir buscar essa qualificação introduzindo em si a noção de “ajuda”? Ou caricato será tentar fundamentar a classificação de Científica na relação entre filosofia e ajuda? Qualquer uma das três hipóteses daria um artigo só por si.
As Licenciaturas em Filosofia têm uma matriz essencialmente axiológica, segundo a autora, o que não é verdade e, caso fosse, não seria negativo, uma vez que a noção de valor é essencial, central, na ajuda que o AF pretende disponibilizar. Concordo, no entanto, que as médias de entrada são bastante baixas, o que não abona em termos de imagem da exigência na área de Filosofia. Mas é do conhecimento geral que os critérios de fixação das médias são fruto de todos os interesses menos dos devidos e são consequência de um desinvestimento muito mais básico e anterior na área.
“Posso deduzir que a minha capacidade de argumentar é equivalente, por si só, ao direito a ter uma licença para cobrar sessões de argumentação terapêutica?” A Dra. pode deduzir o que quiser, mas não fará jus a uma Licenciatura em Filosofia. “Argumentar” é uma competência, entre muitas outras, que a Filosofia ensina, mas que por si só é vazia. Também existe o espanto, a interrogação, a escuta, a análise, a interpretação, a síntese e, sobretudo, a busca da verdade.
Não compreendo o que seja “argumentação terapêutica”. De um ponto de vista não há terapeuta que não argumente (de modo mais ou menos falacioso), de outro ponto de vista a terapia consistirá nesse exercício – não vazio, mas fruto de um anterior e interior – de argumentar e contra-argumentar, como crivo de crenças falaciosas que subjazem a estados não-saudáveis. Fundamento-me no método gémeo da Filosofia, chamada a “Terapia Cognitivo-Comportamental”, que demonstra como e até que ponto a deformação dos processos cognitivos pode gerar estados patológicos no paciente. Inclusive, um dos principais tratamentos consiste em ensinar o paciente a argumentar consigo próprio…
Assim, se quiser reformular a questão deste modo ““Posso deduzir que a minha capacidade de escutar, interrogar, interpretar, analisar e buscar a verdade, é equivalente, por si só, ao direito a ter uma licença para cobrar sessões de argumentação terapêutica?” O meu impulso seria responder-lhe entusiasticamente “Sim! Por amor de Deus, sim!”
Enviar um comentário