terça-feira, 12 de julho de 2016

ENSINO SUPERIOR E DOUTORAMENTOS

Meu artigo de opinião saído ontem no jornal “Público”:

“A história é émula do tempo, repositório de factos, testemunho do passado, exemplo do presente, advertência do futuro” (Miguel Cervantes).

Durante anos, porfiei na procura da letra de uma lengalenga da minha meninice que se me negava na neblina da memória. Já  desesperançado, finalmente, deparei-me com ela numa crónica de António José Saraiva, “um dos espíritos mais fascinantes da cultura portuguesa contemporânea” (José Mattoso), intitulada “A lógica do macaco”: “Do meu rabo fiz navalha / Da navalha fiz camisa / Da camisa fiz farinha / Da farinha fiz menina / Da menina fiz viola / Trim tim tim que vou para Angola” (“Jornal de Letras”, 06/07/1982).

Mutatis mutandi, encontro analogia entre esta lengalenga de metamorfoses e o percurso feito pelo ensino superior politécnico que de um diploma de curta duração (dois anos) fez um bacharelato; de um bacharelato fez uma licenciatura; de uma licenciatura fez um mestrado; e de um mestrado pretendia fazer um doutoramento.

Aliás, nihil novi sub sole! Anos atrás, foi defendida por Rui Antunes, presidente do Instituto Politécnico de Coimbra, a  proposta: “A cidade de Coimbra só teria a ganhar se o Instituto Politécnico de Coimbra continuasse a fazer o mesmo que tem feito até aqui com o nome de Universidade Nova de Coimbra” (“Diário de Coimbra”, 10/11/2005). Quem sabe se por ter dado pelo plágio relativamente ao nome da Universidade  Nova de Lisboa, volta ele à carga propondo, agora, lato sensu, a crisma de ensino politécnico para “Universidade de Ciências Aplicadas” (“Diário as Beiras”, 05/08/2013).

Em oposição, e com o apoio do movimento associativo estudantil, António Cunha,  presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP), discorda com o fim do sistema binário de ensino superior: “Temos sempre defendido o aprofundamento do sistema binário e uma maior diferenciação entre os sistemas” (PÚBLICO, 08/07/2015).

No ano em  curso, sai reforçada esta posição reitoral com a notícia intitulada: “Universidades estão contra doutoramentos em politécnicos” (PÚBLICO, 17/06/2016). Dela relevo as seguintes passagens:

“Os reitores das universidades públicas não querem que os politécnicos passem a atribuir doutoramentos. A medida está a ser estudada pelo Governo e corresponde a uma a uma ambição antiga dos institutos superiores. Em comunicado, os responsáveis universitários defendem que essa solução vai criar uma maior confusão entre as missões dos dois subsectores e será prejudicial para o ensino superior”.

Em relação à semana anterior, era, também, aí referido que “o Governo está a estudar esta possibilidade e tem-na discutido com os responsáveis das instituições de ensino superior. O que está em cima da mesa não é a atribuição de doutoramentos académicos, o modelo clássico, que se mantém como um exclusivo do sector universitário”.

Em tentativa de quem procura saída para o beco em que se tinha metido, era esclarecido pelo Governo “que os politécnicos correspondem à fileira profissional dentro do ensino superior e, portanto, devem poder dar cursos de doutoramento com uma componente profissional ou tecnológica”.

Ao arrepio do “soberaníssimo bom senso”, de que nos falava Antero, a tutela da 5 de Outubro abre portas com a habilidade de as fechar quando as dobradiças começam a ceder. Assim, passados escassos dias, sai neste mesmo jornal uma outra notícia, desta feita, intitulada “Politécnicos não vão formar doutorados” (22/06/2016), esclarecendo que [em audição parlamentar], “o ministro da Ciência e Ensino Superior, Manuel Heitor, afirma que não pretende permitir que os institutos politécnicos  passem a oferecer doutoramentos”, reforçando ser necessário “aumentar as diferenciações entre as instituições de cada um do subsistemas”. Ou seja, descalçando botas  que lhe pudessem vir a criar joanetes justificava-se o ministro com  ”toda a sua abertura ao debate”.

Pelo poeta polaco Stanislaw Lec, foi levantada a seguinte interrogação: “Será progresso um canibal usar garfo e faca?” Analogamente, seria progresso o ensino politécnico passar a conceder doutoramentos ainda que mesmo sob a argumentação confusa da diferenciação entre doutoramentos universitários e doutoramentos politécnicos, numa espécie de classificação de doutoramentos de primeira e doutoramentos de segunda?

Num país em que, não poucas vezes, se protege o atrevimento, se enaltece a ignorância e se honra o demérito não seria ocasião soberana para se definirem, de uma vez por todas,  sem ser a reboque de pressões sindicais, politicas ou de qualquer outra natureza, as linhas orientadoras do sistema oficial de ensino superior? Me arreceio que, em procrastinação, tão ao jeito dos poderes decisórios nacionais, se deixe, uma vez mais, a solução definitiva desta magna questão  para as calendas gregas, em desacerto com o preconizado por Victor Hugo: “Saber exactamente qual a parte do futuro que pode ser introduzido no presente é o segredo de um bom governo”.

3 comentários:

Estátua disse...

Depois de ter deambulado pelo mundo académico, adormeci e, nos meus sonhos mais profundos, descobri que quem quer aprender, realmente, terá de o fazer sozinho, a altas horas da noite, no lado iluminado do candeeiro mais velho. Uma frustração de cada vez que gasto o meu dinheiro de férias em cursos académicos. Talvez por não ter irmãos, nem uma raça definida. Não voltarei a túmulos sem faraós, a castelos sem reis e ao Tibete sem monges.

Anónimo disse...

Não diria melhor!

Rui Baptista disse...

Estes dois comentários, com muita oportunidade, denunciam a importância da auto-educação na formação do indivíduo. Porém, também tem os seus perigos, denunciados por autodidactismo à Miguel Relvas, por exemplo: "Autodidacta, ignorante por conta própria". segundo Mário Quintela. Ou seja, toda a moedada tem o seu anverso e reverso. Obrigado por esta chamada de atenção do 1.º comentário, secundada, em total apoio, pelo comentário sequente.

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