Texto de Galopim de Carvalho lido na recente cerimónia de homenagem com que a Câmara de Lisboa o distinguiu:
Para a intervenção que fui convidado a fazer nesta ocasião, ocorreu-me aproveitar a oportunidade de, uma vez mais, chamar a atenção para o panorama da geologia na cultura científica dos portugueses, em geral, o do ensino desta disciplina nas nossas escolas, em particular.
Imenso e tido por inabarcável, ao tempo dos descobrimentos marítimos, o nosso Planeta é hoje assustadoramente pequeno face ao crescimento exponencial da população, além de que começa a dar preocupantes sinais de agressão já evidentes na poluição do ar que respiramos, na da água que bebemos e na dos solos onde, é bom não esquecer, radica a maior parte da cadeia alimentar que nos sustenta.
Apesar de ínfima no contexto da biodiversidade, esta criatura, que somos nós, a última de uma linhagem evolutiva de milhares de milhões de anos, a que foi dado o nome de Homo sapiens, só por si, nos últimos dois séculos, com a chamada Revolução Industrial, tem vindo a atentar, a ritmo crescente, contra o meio físico que a todos rodeia, atingindo, no presente, níveis alarmantes que justificaram, entre outras reuniões internacionais, a COP 21, que teve lugar no passado ano em Paris.
Na sociedade de desenvolvimento, tantas vezes descurando os bem conhecidos preceitos de sustentabilidade, privatizam-se os benefícios da produção e distribui-se pelos cidadãos a subsequente poluição.
À desenfreada procura de lucro por parte do desumano mundo dos cifrões que nos domina e explora, tem de opor-se a necessária cultura científica por parte dos cidadãos. E a Escola tem, forçosamente, que fornecer essa cultura em articulação harmoniosa e inteligente com os saberes de outras disciplinas. Não o “molho” de definições que (salvo honrosas excepções) tem sido a sua praxis no ensino da geologia.
Sendo certo que a capacidade de intervenção de cada indivíduo, como elemento consciente da Sociedade, está na razão directa das suas convenientes informação e formação científicas, importa, pois, incrementá-las. E incrementá-las é facultar-lhe correctamente o acesso aos conhecimentos que, constantemente, a ciência nos revela. E esta acção começa na Escola.
Para além do seu interesse utilitário na procura, exploração e gestão racional de matérias-primas minerais metálicas e não metálicas indispensáveis no mundo actual, a geologia ensina-nos, ainda, a encontrar águas subterrâneas e recursos energéticos, como são, entre outros, o carvão, o petróleo, o gás natural e os campos geotérmicos.
Essencial no estudo da natureza dos terrenos sobre os quais temos de implantar grandes obras de engenharia (pontes, barragens, aeroportos), a geologia dispõe também dos conhecimentos necessários à conveniente utilização do solo, à defesa do ambiente natural, numa política de desenvolvimento sustentado, e à preservação do nosso património mais antigo.
Esta mesma disciplina faculta-nos, ainda, os conhecimentos indispensáveis à convivência com catástrofes naturais como são as associadas ao vulcanismo e à sismicidade. Por enquanto, a geologia não sabe prever a ocorrência de sismos, mas permite-nos conhecer a sismicidade do local onde vivemos e, assim, podermos tomar as medidas mais adequadas, nomeadamente, na construção dos edifícios.
Para além destas potencialidades, a geologia dá resposta a muitas preocupações de carácter filosófico, como seja, por exemplo, a da origem de vida. Na história do pensamento científico, da Antiguidade aos dias de hoje, são muitos os exemplos de filósofos, alquimistas, naturalistas e geólogos que se destacaram nas referidas preocupações: Aristóteles, Tomás de Aquino, Galileu, Descartes, Sagan, Reeves, Allegre, Gould.
É pois fulcral que, ao nível da Escola, seja dada à geologia a importância que, realmente, tem.
Quem, a nível político nacional, tem decidido sobre o maior ou menor interesse das matérias curriculares referentes à disciplina de Geologia mostrou desconhecer a real importância deste domínio do conhecimento como pilar e motor de desenvolvimento e bem-estar, mas também como componente da formação cultural dos portugueses. Não se compreende, pois, a relativamente pouca importância desta disciplina nos nossos curricula de ensino.
Exceptuando aqueles que, por formação académica e profissional, possuem os indispensáveis conhecimentos deste interessante e útil ramo da ciência, a generalidade dos nossos concidadãos não conhece nem a natureza, nem a história do chão que pisa e no qual assentam as fundações da casa onde vive.
Por exemplo, a maioria dos habitantes da cidade que me acolheu há mais de seis décadas, desconhece que o lioz (a pedra calcária, repleta de história, usada na cantaria e na estatuária de Lisboa e arredores) nasceu há cerca de 92 a 96 milhões de anos, num mar muito pouco profundo e de águas mais quentes do que as que hoje banham as nossas praias no pino do verão. Desconhece que o basalto das velhas calçadas da cidade brotou, como lava incandescente, de vulcões que aqui existiram há uns 70 milhões de anos, nem imagina que o Tejo já desaguou mais a Sul, por uma série de canais entrançados, numa larga planura entre a Caparica e a Aldeia do Meco. Uns mais, outros menos, sabem algo do que aqui se passou, nesta nossa cidade, desde o tempo em que o pobre Martim Moniz morreu entalado (dizem alguns que foi empurrado) no portão do castelo de São Jorge, mas muitíssimo pouco ou nada sabem do que aqui aconteceu há milhões e milhões de anos. Os portugueses sabem dizer granito, basalto, mármore, calcário, xisto, barro, petróleo, gás natural, quartzo, feldspato e mica, mas ignoram a origem, a natureza e o significado destes materiais como documentos da longa história da Terra.
A vida profissional permitiu-me, ao longo de décadas, conviver, algumas vezes de muito perto, com as mais altas figuras nacionais, dos chefes de estado aos dos governos central e local, com ministros da educação e outros, com parlamentares e figuras gradas dos partidos políticos, com os mais prestigiados jornalistas e comentadores dos jornais, da rádio e da televisão (quase tudo tudo gente do direito, da economia e finanças e das humanidades), e pude, salvo uma ou outra excepção, constatar a falta de cultura geológica desta elite que, neste domínio, não difere do comum dos cidadãos.
Por exemplo, a maioria dos habitantes da cidade que me acolheu há mais de seis décadas, desconhece que o lioz (a pedra calcária, repleta de história, usada na cantaria e na estatuária de Lisboa e arredores) nasceu há cerca de 92 a 96 milhões de anos, num mar muito pouco profundo e de águas mais quentes do que as que hoje banham as nossas praias no pino do verão. Desconhece que o basalto das velhas calçadas da cidade brotou, como lava incandescente, de vulcões que aqui existiram há uns 70 milhões de anos, nem imagina que o Tejo já desaguou mais a Sul, por uma série de canais entrançados, numa larga planura entre a Caparica e a Aldeia do Meco. Uns mais, outros menos, sabem algo do que aqui se passou, nesta nossa cidade, desde o tempo em que o pobre Martim Moniz morreu entalado (dizem alguns que foi empurrado) no portão do castelo de São Jorge, mas muitíssimo pouco ou nada sabem do que aqui aconteceu há milhões e milhões de anos. Os portugueses sabem dizer granito, basalto, mármore, calcário, xisto, barro, petróleo, gás natural, quartzo, feldspato e mica, mas ignoram a origem, a natureza e o significado destes materiais como documentos da longa história da Terra.
A vida profissional permitiu-me, ao longo de décadas, conviver, algumas vezes de muito perto, com as mais altas figuras nacionais, dos chefes de estado aos dos governos central e local, com ministros da educação e outros, com parlamentares e figuras gradas dos partidos políticos, com os mais prestigiados jornalistas e comentadores dos jornais, da rádio e da televisão (quase tudo tudo gente do direito, da economia e finanças e das humanidades), e pude, salvo uma ou outra excepção, constatar a falta de cultura geológica desta elite que, neste domínio, não difere do comum dos cidadãos.
Como é público, insisto em afirmar que, no panorama das nossas escolas, e com as sempre necessárias e honrosas excepções, esta disciplina limita-se a um conjunto de matérias desarticuladas e desinseridas de um contexto unificador, tidas por desinteressantes e, até, fastidiosas.
São muitos os professores mal habilitados que as debitam sem entusiasmo, por dever de ofício. São muitos os que, sem capacidade crítica, seguem o estereotipado e igualmente acrítico manual adoptado, que o aluno decora por obrigação de um programa de mérito discutível, e que lança no caixote do esquecimento, passado que foi o exame final.
Tem sido este o quadro nas nossas escolas, onde a Geologia sempre foi subalternizada. Foi este o quadro em que cresceram e se formaram a imensa maioria das mulheres e dos homens que hoje temos na política, na administração, nas empresas, na cultura, na comunicação social, no cidadão comum.
É preciso e urgente olhar para esta realidade do nosso ensino. É preciso e urgente que o Ministério da Educação chame a si meia dúzia de professores desta disciplina capazes de proceder à necessária e profunda revisão de tudo o que se relacione com o ensino desta área curricular, a começar nos programas, passando pelos livros e outros manuais adoptados, pela formulação dos questionários nos chamados pontos de exame sem esquecer a necessária e conveniente formação dos respectivos professores.
Sempre disse e insisto em dizer que o professor, deve saber muitíssimo mais do que os alunos a quem se dirige. Não pode, de maneira nenhuma, ser um mero transmissor das noções, tantas vezes, torno a dizer, estereotipadas e acríticas dos manuais de ensino.
Se há matérias que têm características passíveis de serem ministradas numa política de regionalização do ensino e que muito conviria considerar, a maioria das incluídas na disciplina de Geologia satisfaz esta condição. Se há disciplinas científicas onde a regionalização faz sentido, a Geologia é, certamente, uma delas. Neste panorama estou cansado de propor aos responsáveis, directamente ou através do que digo e escrevo (infelizmente sem sucesso), uma reformulação dos programas de Geologia visando uma adequada informação sobre a geologia regional, a definir pelas escolas, em complemento de um bem pensado programa de base comum a todas elas.
Deveria dar-se às escolas e aos professores desta disciplina liberdade e tempo curricular para, em cada local e em cada oportunidade, escolherem a melhor via formativa, o que não exclui a obrigatoriedade de cumprir um programa mínimo, criteriosamente escolhido, por quem tenha realmente competência, não só pedagógica, mas também científica e cultural, para o fazer.
Assim e a título de exemplo, as escolas das regiões autónomas, aproveitando as condições especiais que a natureza lhes oferece, deveriam privilegiar o ensino da geologia própria do vulcanismo, incluindo a geomorfologia, a petrografia, a mineralogia, a geotermia e a sismologia (nos Açores).
Do mesmo modo, o citado vulcanismo extinto, entre Lisboa e Mafra, o maciço subvulcânico de Sintra, o mar tropical pouco profundo que aqui existiu, durante uma parte do período Cretácico, deveriam ser objecto de estudo dos alunos destas regiões.
Para além dos exemplos apontados, a orla mesocenozóica algarvia e a serra de Monchique, as pegadas de dinossáurios da Serra d’Aire, de Carenque (Sintra) de Vale de Meios (Alcanede) e do Cabo Espichel, o termalismo em Chaves, São Pedro do Sul e em muitas outras localidades, os vestígios de glaciações deixados nas serras da Estrela e do Gerês, o complexo metamórfico e os granitos da foz do Douro, os “grés de Silves”, os quartzitos das Portas do Ródão e da Livraria do Mondego (Penacova), o Pulo do Lobo, no Guadiana, e a discordância angular da Praia do Telheiro (em Vila do Bispo e hoje mundialmente conhecida), os mármores em Estremoz, as areias brancas de Coina e Rio Maior, as pirites de Neves Corvo e de Aljustrel, o volfrâmio da Panasqueira e o caulino da Senhora da Hora (Porto), os estuários do Tejo e do Sado, a restinga de Troia e as Rias de Aveiro e de Faro-Olhão deveriam constar dos programas das escolas das redondezas.
A Geologia, já o tenho afirmado e não é de mais repetir, não pode deixar de ter uma dimensão cultural ao dispor do cidadão comum. Os professores devem ter consciência desta realidade quando se dirigem aos seus alunos. Não estão só a fornecer bases para eventuais licenciados em Geologia (sempre raros ou inexistentes numa qualquer turma escolar), estão, sobretudo e na maioria dos casos, a formar cidadãos para quem essas bases são fundamentais em termos de preparação global. Assim, o ensino deveria ser tornado atraente com elementos culturais ligados ao quotidiano dos alunos. As amarras do programa oficial e o obediente e acrítico manual escolar contrariam qualquer acção dos bons professores, no que toca o ensino vivo da disciplina.
E, para terminar, porque não ligar estes conhecimentos às nossas origens, onde e em especial o sílex e o barro foram alvo de procura e utilização na Pré-história, e à sucessiva ocupação do território por outros povos e civilizações (fenícios, gregos, cartagineses, romanos e árabes), em busca do ouro, do cobre e do estanho?
Galopim de Carvalho
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