sexta-feira, 25 de julho de 2025

500 CARACTERES PARA COMENTAR O QUÊ?!

Estava, de facto, inoperacional o acesso aos formulários constantes no sítio da Direção-Geral da Educação para recolha de contribuições relativas aos novos documentos da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento no processo de consulta pública que abriu há poucos dias.

Tal como pensei (ver aqui), o espaço disponibilizado pela tutela é incompatível com a infindável tarefa que será comentar devidamente tais documentos. Se alguém a levar a sério e quiser explicar o que diz com base em conhecimento não é capaz. Eu não sou. E não é pelo número de páginas, é pelo seu conteúdo, que não faz qualquer sentido. Isto se se adoptar, como se deve, uma perspectiva realmente educativa, ou seja, não doutrinal nem pedagógica "de trazer por casa" (expressão usada por Gusdorf para se referir a um certo tipo de pseudo-pedagogia como a que está em causa). 

Comentar aqueles dois documentos em 500 caracteres é uma tarefa mesmo impossível. O título do artigo da jornalista Ana Margarida Alves está certo. Só não percebo que apenas os pais/encarregados de educação se queixem...

terça-feira, 22 de julho de 2025

DE VOLTA AO DESCONCERTO QUE É A "EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA"

O Ministério da Educação, tem em consulta pública, até ao dia 1 de Agosto, os novos documentos curriculares destinados à Educação para a Cidadania na escolaridade obrigatória, a saber:
 
 
Integrados os contributos dessa consulta, passam a ser os documentos oficiais para essa área curricular e, portanto, de cumprimento obrigatório. Além deles há os referenciais de várias "educações para...", que serão orientações, talvez... Gostaria de cruzar o que consta nestas "Aprendizagens essenciais" e nesses referenciais, produzidos em tempos diferentes, por stakeholders diferentes, mas isso seria um trabalho demorado, impossível de realizar neste momento pelo que o meu objectivo é bem mais modesto: reproduzir o que está no site da Direção-Geral da Educação (DGE), a que acrescento breves comentários.
 
Lê-se no texto-síntese aí apresentado:
 
O documento Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC) adota uma abordagem integrada e articulada, centrando-se na interdependência entre “Direitos Humanos”, “Democracia e Instituições Políticas”, “Desenvolvimento Sustentável”, e “Literacia Financeira e Empreendedorismo”, enquanto dimensões fulcrais para uma cidadania ativa e participativa num Estado de Direito e em sociedades justas e sustentáveis. 
 
Comentários, ou seja, perguntas, ou seja, perplexidades: O que será "uma abordagem integrada e articulada"? Não sei. Continuo a leitura... interdependência entre “Direitos Humanos” e “Literacia Financeira e Empreendedorismo”?! Entenda-se: esta área, agora do tipo "dois em um", tal como está, nega direitos humanos básicos. Sobre isto tenho escrito neste blogue.

A educação sexual desapareceu. Não dei conta, porém, de a Lei n.º 60/2009, de 6 de Agosto (regulamentada pela Portaria n.º 196-A/2010 de 9 de Abril de 2010) que tornou obrigatória esta "educação para..." ter sido revogada. Para uma lei deixar de ter efeito, não tem de ser revogada?

Critiquei essa "educação" e essa lei, nomeadamente pelo seu carácter doutrinal, mas, atenção, a educação financeira e para o empreendedorismo tem exactamente o mesmo carácter... O objecto de doutrinamento é diferente, mas o espírito doutrinal é o mesmo. O que pensar? Que há uma doutrina má (como a sexual) e uma doutrina boa (como a financeira e empreendedora)? Doutrina é doutrina. E a escola pública não pode ser doutrinal. Se quisermos invocar a lei, está na Constituição da República Portuguesa e na Lei de Bases do Sistema Educativo.

A ENEC integra, ainda, temáticas prioritárias, tais como a “Saúde”, o “Risco e Segurança Rodoviária”, os “Media” e o “Pluralismo e Diversidade Cultural”, de forma a adotar uma visão mais abrangente e completa do exercício pleno de cidadania.
 
Comentários, ou seja, perguntas, ou seja, perplexidades: Portanto, fazendo as contas, as áreas de cidadania passaram de dezassete para oito? Ou talvez nove, tendo em conta essa que é "dois em um". E que ligação se pode estabelecer entre "Direitos humanos"... que são evidentemente universais, e “Pluralismo e Diversidade Cultural”? Espreitei as Aprendizagens essenciais de ambas as áreas e o que vi foi a referência a "valores constitucionais" misturada com os estafados equívocos "culturais".
 
Por seu turno, as Aprendizagens Essenciais de Cidadania e Desenvolvimento, no que se refere a “Conhecimentos, Capacidades, Atitudes e Valores”, bem como às “Ações Estratégicas”, estão organizadas em oito dimensões de Educação para a Cidadania, as quais se dividem em dois grupos. 
 
Comentários, ou seja, perguntas, ou seja, perplexidades: Mantém-se o inexplicável quarteto ocedeísta (“Conhecimentos, Capacidades, Atitudes e Valores”). E ainda falta a palavra "competência"...

Passo ao documento actualizado da ENEC: a mesma narrativa, as mesmas frases, as mesmas expressões do anterior e do anterior ao anterior e de muitos outros paralelos... Não importa a ordem pela qual surgem as expressões e as frases, a retórica é circular. Parece que se entende, sendo incompreensível; parece evidente, sendo obscura.

Detenho-me apenas e só na participação dos chamados "agentes educativos":

- pais/encarregados de educação, que devem participar activamente no início do ano escolar, no plano de turma relativo à Educação para a Cidadania. O Plano deverá ser aprovado em reunião de conselho de turma, no qual também devem participar. Após aprovação do Plano, deverão ser informados de todas as actividades a desenvolver no âmbito da concretização dos projectos que envolvam Educação para a Cidadania. 

Terei lido bem?! Não há diferença entre a educação que a família deve proporcionar e aquela que deve ser proporcionada pela escola? Os pais são o que são, e, uma coisa é certa, fazem parte de uma sociedade que não é bonita de se ver... Insisto: a escola tem o dever de procurar mudar a sociedade para melhor, não de acolher todas as "sensibilidades", "tendências", "interesses", seja o que for. Por isso, tem de manter uma distância estratégica da sociedade, dos seus membros, dos pais.

- comunidade, com a qual as escolas podem estabelecer parcerias, em concreto, com entidades externas desde que em estreita colaboração com as famílias (pais e encarregados de educação). 

Estas entidades serão as empresas, fundações, instituições, organizações que há muito gravitam em redor da educação para a cidadania com o fito de chegar aos alunos e de os influenciar desta ou daquela maneira. O seu poder tem aumentado ao ponto de, em alguns casos, substituírem os professores e assumirem a sua formação. E os professores consentem, aderem... Mas parece que agora, para manterem o seu lugar, tais entidades têm de agradar às famílias. Como as irão convencer de que são bons parceiros? Não deve ser difícil com as estratégias que algumas foram aperfeiçoando.

- alunos declarados "autores", sendo que, em tal qualidade, participam também na elaboração e aprovação desse Plano.

Se o aluno é autor, tem autoridade. E desde o primeiro ciclo. É interessante perceber que ao professor não é conferido, no documento, semelhante estatuto e atributo. Por outro lado, se o aluno já sabe elaborar um plano para se educar a si mesmo, e tem discernimento para o aprovar, por que se insiste em educá-lo para a cidadania? Só quem já é educado é que pode saber o que é importante para educar, não é?

Pelas Aprendizagens essenciais, só passei os olhos. Um suplício! Primeira coluna "Organizador/dimensão": o que é isso?! Segunda coluna "Conhecimentos, capacidades e atitudes": onde ficou o último elemento do quarteto, os "valores"? Terceira coluna "Ações estratégicas de ensino orientadas para o perfil dos alunos": julgo que se quer dizer "métodos"... e que métodos!

Não, Senhor Ministro, não vou contribuir para a consulta pública.

Deveria? Sim, pois estudo há décadas o currículo escolar (com interesse pela educação para a cidadania) e ensino nessa área, incluindo na formação de professores, mas, a verdade, é que, parafraseando o físico Ernest Pauli, os documentos agora apresentados não apenas não estão certos como nem, ao menos, estão errados. São uma amálgama de pseudo-ideias, que nem a filosofia nem as ciências que se dedicam à educação podem corroborar. 

E mais do que isso, tentam responder a solicitações, conveniências, compromissos, pressões... de grupos, agentes, entidades... a quem o poder político tem dado, e continua a dar, acolhimento e expressão. Mantendo o essencial da dita retórica, governos mais à esquerda puxam para um lado e os mais à direita puxam para outro lado. Ora, a educação para a cidadania não pode ter orientação partidária. A neutralidade neste aspecto tem de ser escrupulosamente respeitada, porque isso é o correcto e porque está nas duas leis-mestras acima invocadas. 

Isto não significa, bem entendido, que a neutralidade deva abranger os valores éticos. Isso nunca pode acontecer. Educar para a cidadania é educar para os valores éticos, que são universais. E isso faz-se no quadro das disciplinas, na História, na Literatura, na Música, na Física, na Geografia, na Filosofia, na Economia... Fora das disciplinas, à margem do conhecimento que veiculam, a educação para a cidadania é vazia de conteúdo, resvala para a doutrina.

Enfim, comentar esses documentos, em sede de consulta pública, seria uma tarefa infinita e assaz difícil, tantos são os aspectos críticos a indicar e, pior, a explicar com base em argumentos reconhecidos como válidos, que não se podem confundir com declarações inconsequentes, as quais mesmo repetidas ad infinitum, não se tornam verdadeiras... Uma tarefa incompatível com o espaço limitado do formulário disponibilizado pela DGE para recolha de contributos (não consegui confirmar isto pois os links indicados no site não abrem). 

E de nada resultaria essa tarefa, não é? Por regra, os documentos curriculares de educação para a cidadania são publicados tal como se apresentam na versão provisória. Não falo de cor, tenho feito o exercício de comparação entre uns e outros.

Uma última nota: estes documentos são piores do que os de outros governos? Não. Nem piores nem melhores. São iguais, na  matriz, na retórica, na ligeireza, no desconcerto com que se encara a formação cidadã, ou seja, a formação ética dos nossos alunos.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

A CORAGEM DE EDUCAR CONTRA OS BRUTOS

Por Maria Helena Damião e Isaltina Martins


No jornal Público do passado dia 19 saiu um artigo do sociólogo José Pacheco Pereira com o título "O mundo é dos brutos: a ascensão da violência e a queda da empatia. Não é por optimismo superficial que  destacamos a frase final - se os justos não respondem aos brutos e à suas manifestações de violência ainda vai ser pior - mas porque queremos acreditar - é, reconhecemos, uma questão de crença - que os brutos não podem ter a última palavra, não podem ter a última acção.

É claro que, sob o ponto de vista racional, a nossa observação coincide com a de José Pacheco Pereira: o mundo - nos seus mais diversos lugares, nas suas mais diversas instâncias e instituições, incluindo a escola e a universidade - está a ser tomado de assalto pelos brutos. E quando não querem ou não lhes interessa dar a cara, arranjam uns quantos "flexíveis" para tanto.

Os educadores, os directores, os professores dignos destes nomes, não podem pactuar com brutos, têm de ficar do lado dos justos e, como noutros tempos perigosos, defender a justiça. Isso implica, naturalmente, coragem.

Foi nesta perspectiva que lemos o artigo em causa, de que nos permitimos reproduzir uma parte substancial e introduzir destaques:

"Qualquer pessoa que conheça história sabe que aquilo a que chamamos “civilização” é muito mais frágil do que a crueldade, a violência, a prepotência, a vingança, o poder absoluto e brutal. Não é preciso sequer escolher grandes períodos da história, a “civilização” é uma raridade, acontece por pequenos períodos, torna a vida dos que vivem nesses tempos melhor e depois esgota-se e acaba. 

Não me interessa fazer grandes exercícios analíticos sobre qualquer das palavras que estou a usar, seja civilização, seja barbárie, toda a gente sabe a diferença entre um mundo, imperfeito que seja, desigual, muitas vezes injusto, mas onde as pessoas são senhoras do seu destino pelo voto, vivem no primado da lei, têm liberdade religiosa, acedem a condições mínimas de existência. Para contrariar o meu argumento podem vir com mil exemplos de imperfeição, de injustiça, de exclusão, mas o que sobra é melhor do que um mundo com pena de morte, tortura, censura, ausência de direitos, em que todos são indefesos face aos mais fortes.

A “civilização” como a conhecemos no mundo democrático ocidental está a acabar, diante dos nossos olhos, pela ascensão da brutalidade, da educação dos jovens pela distracção, da ignorância e do valor da força, do individualismo agressivo, do culto da ignorância e do pseudo-igualitarismo das redes sociais. A violência torna-se a regra nas relações como “outro” (...).

Não adianta virem-me dar lições de que este catastrofismo civilizacional é recorrente em certos momentos da história cultural, o que é verdade. Mas também é verdade que a catástrofe já ocorreu várias vezes, uma das quais nos anos 20-30 do século passado. O mundo que filósofos como Comte entendiam ter entrado numa senda de “progresso”, com a revolução técnico-científica do final do século XIX, entrou na barbárie da I e da II Guerra com milhões de mortos e anos de brutalidade em vários países “civilizados” da Europa e na URSS. 

Há muitas explicações socioeconómicas para esta crise civilizacional, muito sérias, mas a guerra cultural dos nossos dias tem um papel fundamental. O culto imberbe pela modernidade, assente num deslumbramento tecnológico que oculta muita preguiça e manipulação, em que meia dúzia de gestos num telemóvel, explorando três ou quatro funções simples, passam por um saber semelhante ao falar português sem um erro ortográfico a cada palavra, a arrogância de dar opiniões sobre coisas que não se viram, ouviram e leram - tudo isto ajuda a erodir a frágil democracia porque “molda” a cabeça. É o que já cá está e o que vem aí.|

Basta ver o X para se perceber o impacto em quem vive dependurado nas redes do que lá encontra: cenas de violência em que velhos, mulheres e brancos são atacados por imigrantes, em que mulheres de burka reclamam a conversão da Europa ao Islão, cenas de pancadaria para “punir” um ladrão ou um molestador apanhado em flagrante por “cidadãos verdadeiros”, acidentes de automóvel com pancadaria, uma sucessão elogiosa de enormes explosões na Síria, no Líbano, em Gaza, com origem nos “amigos de Israel”, a generalização da palavra “traidor” para designar quem não participa da fúria anti-imigrante e não quer participar na chamada “remigração” (e porque não organizar uns pogroms?), etc., etc. No Instagram e no TikTok, um bom exemplo da platitude intelectual dos nossos dias é a classificação de “influenciadores”. Uma pequena multidão compete por essa “influência” nas redes sociais, alguns/algumas com alguma imaginação e esperteza, mas, por regra, com uma absoluta indigência intelectual, gigantesca ignorância, muito mau carácter, e truques de ganância que é, nos nossos dias, o principal motivador dinâmico do comportamento (...). Alguns/algumas já cometeram crimes (...), gabaram-se destes feitos, porque tudo é bom para terem os célebres 15 minutos de fama (...). O facto de terem feito estas violências sem qualquer hesitação moral significa que olharam para elas como olham milhares de pessoas cuja principal preocupação, quando assistem a uma qualquer violência sobre os mais fracos, é puxar do telemóvel e filmar, para terem “material” para colocar nas redes sociais, e não ajudar (...). 

Este submundo é hoje o mundo. Sem princípios, sem saber, sem mediação, com apologia da força, elogio da violência e hostilidade aos mais fracos. Já estão a ganhar e, se os justos não lhes respondem alto e bom som, ainda vai ser pior.

Tentemos pois tudo fazer para que a “civilização, como a conhecemos no mundo democrático ocidental", se mantenha, ainda que debilitada pelas suas muitas feridas.

domingo, 20 de julho de 2025

PARA EVITAR A CIÊNCIA E A TÉCNICA NÃO PODEMOS LER NEM EXISTIR

[Este texto tem cerca de um ano, mas por razões várias razões ficou inédito. Partilho-o agora.]

O que é que Colleen Hoover e Richard Powers têm em comum? São escritores que não pertencem à mesma divisão, claro, mas que não estão fora da realidade. Assim, as suas narrativas cruzam-se com a realidade e esta com a Ciência e a Técnica, as quais envolvem e moldam o nosso mundo. 

Os autores de ficção atuais em que tenho notado maior visibilidade da Ciência e da Técnica são Michel Houellebecq e Richard Powers. Do primeiro, em Partículas Elementares (Alfaguara, 2022), um cientista da área da Biologia Molecular é uma das personagens centrais, e, em Serotonina (Alfaguara, 2019), a personagem principal, graduada em Agronomia, discute vários assuntos científicos. De Richard Powers, parecem-me especialmente interessantes Eco da Memória (Casa das Letras, 2008) e Assombro (Presença, 2022), sendo que, neste último, a personagem principal é um cientista. Ambos os autores têm sido traduzidos para português, mas de Powers não foi ainda, que eu saiba, traduzido Gain, no qual uma personagem refere que a Química lhe deu muitas coisas e portanto não assina uma petição contra um produto químico. Bernadette Bensaude-Vincent e Jonathan Simon, em Chemistry: The Impure Science, referem que esta atitude é demasiado racional para ser plausível. Não é, no entanto, necessário que a ficção seja fiel à realidade, como é óbvio. Isso é até, segundo a formulação elegante de Azar Nafisi, em Ler Lolita em Teerão (Gótica, 2004), diminui-la, pois o que procuramos na literatura não é tanto a realidade mas a epifânia da verdade [entretanto foi feito deste livro um filme].

Vem isto a propósito da Ciência, e em particular a Química, que está presente na Literatura. Se aparecesse como um catálogo não seria provavelmente boa literatura, e nem tem de ser real ou plausível - o medicamento que a personagem principal de Serotonina toma não existe, por exemplo. É um espelho ou um ambiente envolvente que nos interroga e nos permite refletir sobre a realidade. 

Como defendi em Jardins de Cristais (Gradiva, 2014), a Ciência, e a Química em particular, está presente, direta ou indiretamente, em todas as obras literárias. E foi à conta da procura de novos exemplos que comecei a notar que os jovens “afinal liam”. A afirmação de os jovens não lerem é comum, e eu também acreditava nela. Bastava perguntar num grupo de jovens e o silêncio das respostas confirmava o meu preconceito. Mas com um estudo experimental acabei por mudar de ideias [Esse estudo foi, entretanto, publicado aqui (pp. 205-209)]. E, têm aparecido notícias sobre a vendas de livros em Portugal, que confirmam essa realidade.  

Mas, antes de mais, é preciso perceber o que se entende com a ideia de que os jovens “não leem”. Não leem o que achamos que poderá ser “boa literatura”, mas leem outras coisas. Com cerca de quatrocentos estudantes, de cinco escolas de todo o país, do Ensino Básico e Secundário, verifiquei isso na prática. Não porque os questionei de viva voz, mas porque lhes dei papéis para escreverem de forma anónima o que estavam a ler. E fiquei surpreso. Muitos dos livros que estes liam eu nem sequer conhecia. Muito do que liam era influenciado pelos colegas e pelo mercado; eram livros para jovens e com jovens personagens, mas também era influenciado pelos professores. Numa escola que visitei, por exemplo, vários alunos referiam o Diário de Anne Frank (Livros do Brasil, 2022). 

Ao contrário de Michel Houellebecq e Richard Powers, Colleen Hoover é uma autora muito lida pelos jovens. Que as narrativas desta autora sejam limitadas parece-me normal, pois esta tem pouca experiência de vida e objetivos curtos. Em, por exemplo, Isto acaba aqui (Topseller, 2017, de que foi feito um filme recentemente), ou Confesso (Topseller 2016), embora possa existir alguma complexidade nas narrativas, estas andam quase só à volta de amores românticos bastante vulgares, não envolvendo visões do mundo abrangentes nem desafiantes. São livros que não parecem interrogar-nos. Mas é aqui que encontro o paradoxo. Estes livros podem ser mais abrangentes ou podem interrogar-nos, não pelos seus conteúdos, mas pelas ramificações inesperadas que podem originar. Nomeadamente as referências a objetos que se relacionam com a Ciência e a Técnica.

Dou outros exemplos: A culpa é das estrelas (Asa, 2012) de John Green ou A distância entre nós (Presença, 2019) de Rachel Lippincott, Mikki Daughtry e Tobias Iaconis são também livros (de que foram feitos filmes) que nos levam a aspetos inesperados da contribuição da Ciência e da Técnica para o nosso mundo. São também “dramas” românticos como os livros de Colleen Hoover, mas podem ser mais do que isso. No primeiro livro, temos dois jovens apaixonados com cancro em que um acaba por morrer e, no outro, temos, de novo, dois jovens apaixonados, mas é ainda mais dramático. Têm ambos fibrose cística e não se podem aproximar. Mas, ao analisar a linha temporal destas doenças, verificamos que o final feliz não está na relação amorosa, mas nas possibilidades que oferece a narrativa. O cancro de que morreu a personagem do primeiro livro tem uma esperança de cura de quase 100%. E na doença do segundo livro, até aos anos 1940, a esperança de vida era mínima, mas atualmente os doentes têm esperanças de vida da ordem dos sessenta anos, devido à recente descoberta de medicamentos modeladores das proteínas e outros avanços. A tragédia continua a existir, mas pode não ser tão dramática.  

Além dos temas, gostaria também chamar a atenção para as experiências de vida dos autores e leitores. Em Lições de Química (Asa, 2022), de Bonnie Rosmus, acompanhamos as desventuras de uma jovem química que procura fazer doutoramento no mundo machista dos anos 1950. Por outro lado, A Hipótese do Amor (Desrotina, 2022) de Ali Hazelwood é uma história romântica muito menos complexa, mas que se passa nos dias de hoje, em que uma jovem a fazer doutoramento é normal. A autora, ela própria a fazer investigação, refere que este livro se baseia no seu mundo. Enquanto Rosmus, mais experiente, estudou o assunto e pediu a colaboração de cientistas, Hazelwood usa a sua biografia para compor a história. Em A Química do Amor (Quinta Essência, 2017, título original, How not to Fall) de Emily Foster, pseudónimo de uma investigadora que não é identificada, mas é doutorada e autora de um ensaio sobre sexo (diz a sinopse) parece ser também a experiência da vida que se conhece que condiciona a narrativa.   

Há jovens autores com uma profundidade inesperada como Lolita Pille, em Hell (não detetei que fosse lido pelos estudantes portugueses, nem que tenha sido editado em Portugal) que foi publicado quando esta tinha vinte anos. Mas, como é bem conhecido, toda a literatura é de certa forma autobiográfica e esta escreveu sobre as vidas de jovens parisienses, as quais conhecia bem. Podemos também lembrar Françoise Sagan que, com dezanove anos, publicou, em 1954, um livro de uma profundidade também inesperada: Bom dia, Tristeza (A Casa dos Ceifeiros, 2017). Mas, vejamos as entrevistas desta última: escreveu sobre o mundo que conhecia, melhorado pelas leituras de Proust, Dostoievski e Wilde, entre outros. Um mundo, ainda traumatizado pela segunda guerra mundial, que acabou quando Sagan tinha cerca de dez anos, em que começava a haver liberdade sexual, mas não havia pílula anticoncecional e o fantasma do aborto assombrava as mulheres.

E, finalmente, podemos relembrar Fernando Namora que, em 1938, com cerca de vinte anos, publicou As sete partidas do mundo (Europa-América, 1990), livro que mais tarde, em 1958, sentiu necessidade de alterar. Quando Namora escreveu a primeira versão do livro não havia antibióticos, mas, em 1958, já havia, e isso reflete-se na reescrita da obra. 

Na minha opinião, os contextos e os pormenores dão interesse acrescido às obras literárias, mesmo as consideradas menos interessantes. E, se estou agora mais convencido de que os jovens afinal leem, continuo com a convicção de que todos os livros se relacionam com a Ciência e a Técnica, as quais direta ou indiretamente envolvem e moldam o nosso mundo e nos fazem humanos.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

TERRAS RARAS EM PORTUGAL E O PARADOXO DA ABUNDÂNCIA

  Por A. Galopim de Carvalho

Já por diversas vezes falei das “terras raras” e, ao falar hoje sobre o que se sabe acerca deste problema, ocorreu-me, não sei porquê (ou talvez saiba) o chamado Paradoxo da Abundância, também conhecido como “maldição dos recursos naturais”, uma ideia desenvolvida em 1993, pelo economista britânico Richard Auty, Professor Emeritus de Economia e Geografia, da Lancaster University. 

Uma ideia segundo a qual, países ricos em recursos naturais (como petróleo, gás ou minérios) revelam, frequentemente, índices de pobreza, incompatíveis com uma tal riqueza. Uma realidade que anda de mãos dadas com um crescimento económico mais lento, instabilidade política, elevados níveis de corrupção e menor desenvolvimento institucional. Ao contrário do que seria de esperar, a abundância de recursos naturais prejudica o desenvolvimento sustentável de um país, em vez de o impulsionar.

A Nigéria, um exemplo entre vários (Venezuela, Angola, Iraque, Chade), um dos maiores produtores de petróleo da África, sofre de má gestão, vive uma gritante falta de infraestruturas básicas, enfrenta constantes conflitos armados e afunda-se numa corrupção endémica. Em contraste, países com poucos recursos, como Japão, prosperaram por meio de inovação e industrialização.

Portugal não tem nem sabe quando terá exploração comercial de “terras raras”, mas consta, com relativa certeza, que possui diversas áreas promissoras, que poderão vir a tornar-se estratégicas e fonte de desenvolvimento. Notícias que têm vindo a público, apontam como principais ocorrências: Vale de Cavalos (Portalegre) e Monfortinho (Castelo Branco) e quatro jazidas geologicamente confirmadas, no Alentejo, que, sabe-se, já têm quem “ande com o olho nelas”.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

AINDA AS TERRAS RARAS

 Por. A. Galopim de Carvalho

Em finais do século XVIII, quer para os químicos como para os mineralogistas, os óxidos da maioria dos metais constituíam um grupo então designado por “terras”, jorden, para os suecos, Erde, para os alemães, earth, para os ingleses, e terre, para os franceses. Face ao qualificativo raras, qualquer pessoa será levada a pensar que se trata de substâncias que ocorrem em quantidades ínfimas, mas não é o caso.

Por serem de difícil separação e por serem apenas conhecidos em minerais oriundos da Escandinávia, foram então (estamos a falar de finais do século XVIII, nos alvores da Química e da Mineralogia) considerados "raros", qualificação ainda hoje utilizada, apesar de alguns deles serem relativamente abundantes na crosta terreste. Todos eles são mais abundantes do que metais como a prata e o mercúrio, por exemplo. 

Os metais destas “terras”, ou seja, destes óxidos, são, de acordo com o que a Química nos ensina, um grupo de 17 elementos, da “Tabela Periódica dos Elementos Químicos”, dos quais, 15 pertencem ao grupo dos chamados lantanídeos, isto é, os que ali vão do lantânio ao lutécio, aos quais se juntam o escândio e o ítrio, todos eles elementos que ocorrem nos mesmos minérios e apresentam propriedades físico-químicas semelhantes. 

Os 15 lantanídeos são: lantânio, cério, praseodímio, neodímio, promécio, samário, európio, gadolínio, térbio, disprósio, hólmio, érbio, túlio, itérbio e lutécio. Cada elemento tem propriedades únicas que os tornam valiosos para diferentes aplicações nas tecnologias mais avançadas, “do futuro”, daí o seu grande interesse estratégico. 

Todos estes minerais são mais difíceis de explorar do que os minerais de metais como o ferro, o cobre, o chumbo, o zinco e muitos outros. Esta dificuldade torna os metais das “terras-raras” relativamente caros, pelo que o seu uso industrial foi limitado até serem desenvolvidas técnicas de separação de alto rendimento, em meados do século XX, tais como, cristalização fraccionada, troca iónica. As terras-raras têm aplicação em grande variedade de modernas tecnologias de ponta, de grande interesse estratégico e económico. 

Para os geólogos, as “terras-raras” ajudam a conhecer as fontes magmáticas de certas rochas, permitem datar alguns minerais, entre os quais, certas granadas, através da abundância relativa do par neodímio/samário. Mas o seu interesse científico não fica por aqui. Alarga-se a determinados campos da Física e da Química, da Biologia, da Medicina e outros.

Principais minerais com elementos da terras-raras:

Bastnaesite - (La, Ce, Y)CO₃F, fluorocarbonato de lantânio, cério e ítrio.
Eritrite (Co₃(AsO₄)₂·8H₂O, arsenato hidratado de cobalto.
Euxenite ((Y, Ca, Ce, U, Th)(Nb, Ta, Ti)₂O₆), óxido de titânio, tântalo e nióbio, com ítrio, cálcio, cério, urânio e tório.
Gadolinite ((Ce,La,Nd,Y)₂FeBe₂Si₂O₁₀), silicato de berílio e ferro, com cério, lantânio, neodímio e ítrio.
Loparite - (Na,Ce,Ca)(Ti,Nb)O₃, óxido de titânio e nióbio, com sódio, cálcio cério.
Monazite-cério - (Ce, La, Nd, Th, Y)PO4, fosfato de cério, lantânio, neodímio, tório e ítrio.
Monazite-lantânio - (La, Ce, Nd)PO4, fosfato de lantânio, cério e neodímio.
Monazite-neodímio - (Nd, La, Ce)PO4, fosfato de neodímio, lantânio e cério.
Monazite-samário - (Sm, Gd, Ce, Th)PO4, fosfato de samário, gadolínio, cério e tório.
Xenótima - YPO₄, fosfato de ítrio.

O de todos conhecido grande interesse estratégico das “terras raras” assenta, por um lado, na sua importância no que se refere às modernas tecnologias e indústrias de ponta, e, por outro, na concentração geográfica (na China) da sua produção, principal causa de vulnerabilidades geopolíticas e económicas.  

As “terras raras” são essenciais em tecnologia militar, nomeadamente na produção de mísseis teleguiados, radares, lasers, sistemas de comunicação, motores de aviões e submarinos nucleares. Estão na ordem do dia em equipamentos electrónicos de uso público, como smartphones, monitores de LEDs (Light Emitting Diodes), baterias recarregáveis, alto-falantes e auriculares. 

No que diz respeito às energias renováveis lembram-se os motores e baterias de veículos automóveis, os ímanes de neodímio nas turbinas eólicas. Em tecnologia médica, sobressaem os lasers cirúrgicos e os tomógrafos, como tomografia computorizada (TAC), ressonância magnética (RN) e outros. Têm, ainda, grande importância como catalisadores industriais na refinação do crude (petróleo bruto) e na redução da poluição automóvel.

A China domina mais de 60% da produção mundial de “terras raras” e lidera a respectiva refinação, o que lhe dá reconhecida hegemonia geopolítica, no que concerne a capacidade de restringir ou não as exportações com base em motivos políticos ou comerciais.  

Os países que dependem de “terras raras” importadas para as suas indústrias de defesa tornam-se vulneráveis. A corrida tecnológica de acesso garantido a esses minerais é crucial para liderar em inteligência artificial, energia limpa e armamentos avançados. A transição energética, com o crescimento da energia limpa e o número em crescimento de veículos elétricos aumenta exponencialmente a procura.

Resumidamente é este o cerne da situação.

sábado, 12 de julho de 2025

A DESVIRTUAÇÃO DA ESCOLA COMO PROBLEMA COLECTIVO

Rui Bebiano, historiador e professor na Universidade de Coimbra, publicou hoje no diário As Beiras um texto que devia ser lido por todos aqueles que têm responsabilidades em matéria de educação escolar pública, desde ministros da tutela, formadores de professores, directores, professores... E relido tantas vezes quantas as necessárias até ser devidamente compreendido, pois tenho a certeza de que, não obstante a clareza da redacção, o seu conteúdo se afigura estranho, anacrónico, pouco aceitável face às "exigências da sociedade" e aos "interesses e necessidades" que se dizem ser as dos clientes, ou seja dos alunos e das famílias.

A finalidade educativa da educação escolar não está, efectivamente, no nosso horizonte, o que queremos da escola é que produza "capital humano", "recursos humanos". Isto significa a médio e longo prazo condenar a humanidade à degradação.

O título do texto, O recuo das humanidades como problema coletivo, é verdadeiro, mas o que nele se diz para as humanidades pode ser dito para uma parte significativa das ciências e, sem dúvida, para as artes e, mesmo, para a expressão corporal. Todas as áreas do currículo foram, há muito capturadas pelas exigências neoliberais e tomadas de assalto pelos seus gurus, que, com uma inenarrável arrogância, conquistam a comunicação social e a academia, sem deixar a escola de fora.

É preciso que se percebam os efeitos devastadores deste caminho, legitimado politicamente, por partidos mais à esquerda e mais à direita: é a dignidade humana que, antes de mais, está em causa e, de modo bem visível, a democracia, mas também outros valores que devem ser estimados como a verdade e a liberdade.

Por isso, subscrevo inteiramente o último parágrafo do texto de Rui Bebiano: como educadores temos de tomar consciência profunda de várias coisas:
1) de que o problema é bem real e de enormes proporções, como diz Nussbaum, que cita;
2) da coragem que é precisa para o enfrentar, porquanto isso gera incompreensões, quando não antagonismos, que se fazem acompanhar de consequências;
3) da dificuldade de oferecer "conhecimento poderoso" às crianças e aos jovens, e estimular as suas capacidades num mundo que insiste em atrofiá-las;
4) da morosidade que isso implica e da paciência que é preciso ter para não desistir.
 
Eis o texto de que falo, com destaques que me permiti fazer:

"A partir dos anos noventa passou a falar-se bastante, sobretudo entre quem as tenha no eixo das suas vidas, do recuo, ou da crise, das humanidades. Isto é, de uma rápida e acentuada desconsideração pública dos saberes e das práticas que estudam e transmitem a experiência humana, incluindo-se neles a literatura, as ciências da linguagem, a história, a filosofia, os estudos culturais e as artes. 

Todos procuram compreender e partilhar as formas usadas pelos seres humanos para se expressarem, interagirem e criarem significados nos planos pessoal e coletivo, combinando diferentes modos de estar no mundo, de o entender, de o representar e de o transformar.

São-lhe muitas vezes associa das outras disciplinas, como a sociologia, a antropologia, a ciência política, o direito, a psicologia social ou a geografia humana, que se interessam também pela vida em sociedade.

Todavia, estas detêm junto do poder político e económico um referente de objetividade e de «utilidade» mais explícito, enquanto as humanidades são frequentes vezes relacionadas com formas de subjetividade e escolhas diletantes julgadas sem préstimo material.

Foi esta uma das razões pelas quais as políticas educativas do neoliberalismo passaram a encará-las como formas de despesismo, com um peso dispensável nas contas públicas. Salvo quando a sua presença possa servir para legitimar certas escolhas. Em particular a história local e a dos «grandes feitos» tem cumprido esta função, passando a ser olhada com desinteresse logo que revele um passado silenciado ou diverso das leituras dominantes.

Todavia, as humanidades têm sido essenciais para produzir sociedades melhores e para propagar sensibilidades que favoreçam a afirmação do humano.

O conhecimento que oferecem, as experiências que comunicam, a diversidade que mostram, os trajetos dos indivíduos e das sociedades que veiculam, têm sido, ao longo dos séculos, vitais para ampliar e transmitir a variedade do mundo, tornando-o melhor. E também para destacar, como exemplo e legado coletivo, os valores essenciais do progresso, da liberdade, do respeito pelo outro, da solidariedade, da cordialidade, da partilha, que tornam o humano mais humano e ajudam a melhorar a vida de todos. Ao mesmo tempo, elas alimentam os princípios fulcrais da democracia, bem como, palavras da filósofa Martha C. Nussbaum, «o valor da imaginação, da criatividade, da empatia e do pensamento crítico».

Daí não ser de estranhar o desinvestimento nas humanidades em escolhas de política educativa, a sua acentuada simplificação ou o seu apagamento nos curricula escolares, a sua subalternização na imprensa e na televisão generalistas, levados a cabo por todo o lado, mesmo sob regimes democráticos regulados pelo utilitarismo, insistindo nas competências técnicas em detrimento dos saberes substantivos, e provocando o referido recuo. 
 
Não pode, por isso, causar estranheza a atual afirmação em diferentes setores do espetro partidário de uma cultura política, segundo Teresa de Sousa, «sem alma e sem valores». Capaz de conviver, por falta de memória e de conhecimento, com um «novo normal» feito de ódio social, de deturpação da verdade, de menosprezo dos direitos humanos e de retrocesso das conquistas sociais.

Cego pela ignorância da experiência acumulada e dos erros do passado, ou por uma ligeireza «ultratecnicista» que o sistema educativo tem propagado, um número crescente de pessoas – em particular entre as mais jovens, como mostram inquéritos recentes – torna-se presa fácil de discursos sem fundamento, apresentados como novidade e capazes de devolver a história humana à estaca zero, dos quais se servem os populismos e a extrema-direita, empurrando sociedades razoavelmente equilibradas e pacíficas para um novo estado de barbárie
 
Por isso, por demorado e difícil que seja o caminho, é tão importante pôr no centro do combate político diário a recuperação das humanidades."

quinta-feira, 10 de julho de 2025

HIDROCARBONETOS

Por A. Galopim de Carvalho
 
A palavra "hidrocarboneto" surgiu como um termo descritivo da composição química de compostos formados apenas por átomos de carbono e de hidrogénio, podendo apresentar uma grande diversidade de estruturas, isto é, de arranjos entre os átomos de cada um destes dois elementos. Os átomos de carbono são relativamente grandes e tetravalentes negativos (C4-) e os de hidrogénio são pequenos e monovalentes positivos(H+). Assim, um átomo de carbono coordena à sua volta quatro átomos de hidrogénio, gerando a estrutura mais simples e menos pesada, que é a do gás metano (CH4). 
 
 
Acontece que, à semelhança do silício, o carbono tem capacidade para formar ligações com outros átomos de carbono, quer com apenas um (ligação simples), quer com dois (ligação dupla), quer com três (ligação tripla). Assim, podem edificar-se polímeros (moléculas compostas pela repetição do mesmo motivo) representados por longas cadeias lineares, ramificadas ou cíclicas (em anel), mais ou menos complexas. Tais características determinam uma grande diversidade de hidrocarbonetos. Os mais simples e leves são gasosos, os mais complexos e pesados são muito viscosos e aparentemente sólidos, situando-se os líquidos a meio termo. 
 
Asfalto

Também referido por betume, tem cor castanha a negra, com a aparência do alcatrão, essencialmente constituído por hidrocarbonetos de elevado peso molecular, é coeso, com a aparência de um sólido às temperaturas e pressões normais na superfície. Conhecido na Antiguidade como “betume da Judeia” é, em grande parte, resíduo resultante da volatilização natural de hidrocarbonetos líquidos e gasosos no seio de um depósito petrolífero. Contem, ainda, à mistura, compostos sulfurados, azotados e oxigenados em maior percentagem do que os petróleos brutos. Muitas vezes resulta da oxidação parcial de misturas de hidrocarbonetos líquidos empobrecidos nos componentes mais leves e, daí, ser considerado um oxibetume. Todavia, alguns asfaltos podem resultar directamente de matéria orgânica, sob certas condições de origem e de evolução. Deve acrescentar-se que os termos asfalto e betume são igual e vulgarmente usados como nomes dos produtos artificiais de composição semelhante e idêntico aspecto. Por asfaltito, termo petrográfico, entende-se um asfalto com ponto de fusão acima de 110ºC, e por gilsonito, uma variedade de asfalto muito dura.

O asfalto tem sido usado na: pavimentação de rodovias, ciclovias, arruamentos, pistas de aeroportos e outros pisos, como aglomerante em misturas com brita, gravilha e areia; impermeabilização de coberturas e lajes, em construções civis, barreiras contra humidade e fundos de reservatórios e canais; produção de tintas, vernizes e outros.

O petróleo bruto

crude oil ou crude (do latim crudus, “cru”, “bruto”, “não refinado”), para o qual também se conhecem a designação ramas de petróleo ou, simplesmente, ramas, é uma mistura de hidrocarbonetos líquidos à temperatura e pressão da superfície, com maiores ou menores percentagens de outros hidrocarbonetos, sólidos e gasosos, em solução. Pode incluir, ainda, ceras, resinas e compostos azotados, sulfurados e oxigenados. Em termos de composição química média, contêm 85% de hidrogénio, 13% de carbono, sendo a parte restante essencialmente constituída por enxofre, azoto e oxigénio. A densidade das ramas oscila entre 0,83 e 0,96. O conhecimento destes parâmetros tem grande interesse, pois a gama de produtos possíveis de extrair do petróleo bruto pode ser prevista a partir daqueles valores. A viscosidade (variável que depende, entre outras, da composição e da temperatura) é outro factor importante na avaliação da qualidade das ramas. O aspecto do petróleo bruto pode variar entre o de um líquido como o conhecido petróleo de iluminação, comercial, e o de um óleo negro e viscoso, tanto mais pastoso quanto mais deficiente for em componentes leves. Via de regra, os hidrocarbonetos líquidos são tanto mais escuros quanto mais elevado for o número de átomos de carbono nas respectivas moléculas.

Da mesma maneira que o carvão substituiu a lenha e alimentou a Revolução Industrial, o petróleo veio substituir, em grande parte, o carvão durante o século XX, estando o seu declínio já à vista, enquanto o gás natural tem ganho terreno entre os combustíveis tradicionais, e os xistos betuminosos foram e têm sido encarados como uma perspectiva futura. Uma visão que entra em confronto com a necessidade e urgência de estancar o aquecimento global.

O petróleo, em oposição aos óleos vegetais e animais, começou por substituí-los em muitos dos seus tradicionais usos, em especial a iluminação. Das candeias de azeite dos nossos avós passou-se aos candeeiros a petróleo iluminante (querosene) dos nossos pais e da nossa infância.

Uma outra utilidade do petróleo, da maior importância, é a sua aplicação como matéria-prima da Petroquímica, a indústria que criou e utiliza os derivados do petróleo e do gás natural como base na produção de uma vasta panóplia de materiais objectos e equipamentos que caracterizam o nosso viver individual e colectivo.

O gás natural é composto, essencialmente, por hidrocarbonetos gasosos às temperaturas e pressões normais à superfície do globo, dos quais o metano é o mais comum e abundante (e também o mais estável) com cerca de 85%. Entre os outros hidrocarbonetos, menos frequentes e geralmente subordinados, distinguem-se o etano, o propano e o butano. A estes componentes essenciais estão sempre associados, embora em pequena quantidade, outros gases, como azoto, dióxido de carbono e gás sulfídrico.

O gás natural pode ocorrer isoladamente ou em associações com concentrações de petróleo bruto e, neste caso, quer dissolvido no líquido (subsaturado), quer separado dele (saturado) e cativo acima da camada petrolífera.

terça-feira, 8 de julho de 2025

"TENHO ESPERANÇA NA RAZÃO E NA CONSCIÊNCIA HUMANA, NA DECÊNCIA"

Na continuação do texto Bárbaros à porta


Entendem dois políticos responsáveis pelos trabalhos na Assembleia da República e juristas e constitucionalistas que ler uma lista de nomes de crianças duma turma, em redes sociais e nessa Assembleia, não viola nenhuma regra jurídica nem constitucional; é "liberdade de expressão". 

Pode ser que assim seja, não sei e, portanto, não me pronuncio, mas sob o ponto de vista ético e, mesmo moral, é um acto bárbaro e, por isso mesmo, condenável. E sob o ponto de vista educativo, é absolutamente reprovável por referência aos valores (éticos) que definem a cidadania.

Assim, fez bem o Ministro da Educação em falar sobre o sucedido, distanciando-se dos seus dois colegas parlamentares (de outro partido). E também fez bem em estabelecer a ligação com a "disciplina" de cidadania, no respeito pelos valores da nossa Constituição (ver aqui). Nem outra coisa seria de esperar quando essa área está colocada nas prioridades das alterações curriculares em curso.
 
Entretanto:
- vários políticos de vários partidos rejeitaram o que consideram ser um comportamento populista, demagógico, instrumentalizador,  vergonhoso... tanto mais que se trata de crianças.
- sete associações de pais e encarregados de educação de escolas de Lisboa apresentaram uma “Carta Aberta de Repúdio às Declarações Xenófobas e à Exposição Indevida de Menores” dirigida ao Presidente da República, ao Presidente da Assembleia da República e partidos representados no parlamento e ao presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Além disso estão a ponderar apresentar queixa formal à Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) e à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) (ver aqui);
- um partido político diz estar a fazer a mesma ponderação; 
- a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) disse ter recebido dezenas de queixas e, depois de uma análise, decidirá se avança para averiguações oficiais (ver aqui).
 
Como Sygmund Bauman disse numa entrevista, já no fim da sua longa vida, “tenho esperança na razão e na consciência humana, na decência”. Também eu tenho!

Por muito que certas pessoas e grupos façam para espalhar o caos e a perfídia, por muito que gritem e esbracejem, não conseguem destruir os padrões civilizacionais que regulam a nossa vida em comum. No respeito pelas instituições democráticas que preza esses valores, podemos, de modo sereno, fazê-los valer.

Termino esta nota, recomendando vivamente a leitura de um excelente artigo saído ontem no Público e assinado por Marine Santos (ver aqui)
_________
Nota: Recortes recolhidos no jornal Expresso de 8/7/2025 em artigos de Liliana Coelho e de Isabel Leiria.

OS EXAMES COMO INDICADOR DO ESTADO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR

Não tenho prestado grande atenção aos exames nacionais, aos seus enunciados e critérios de correcção, mas no que ouvi e li destacam-se dois aspectos: 1) aumento do número de perguntas de escolha múltipla com diminuição do número de perguntas que implicam elaboração escrita e 2) digitalização da avaliação, tanto na realização de provas pelos alunos como na sua correcção pelos professores. 

Vejo os mesmos aspectos presentes no ensino superior, devidos, neste caso, à organização do ano escolar por semestres, às diversas épocas de avaliação que preveem e ao curto intervalo entre elas, ao controlo, feito por meio de plataformas, dos diversos passos dos processos avaliativos, mas também aos muitos alunos que, em geral, cabem a cada professor, à dificuldade de escrita que revelam e à falta de preparação para responder a solicitações mais complexas. Isto para não falar da evidente desvalorização do ensino em favor da investigação; a carreira depende dela, não do trabalho pedagógico, visto como uma perda irremediável de tempo e de esforço.

Assim, o artigo que António Carlos Cortez ontem publicou no Diário de Notícias é mais do que uma nota sobre os exames nacionais, é uma análise realista do sistema de ensino, no seu todo.

Dele destaco a passagem que se segue, ainda que valha a pena lê-lo do princípio ao fim (aqui):

"... o que se está a fazer na educação em Portugal é, por via de uma verdadeira política de terraplanagem das artes e das humanidades a preparar a sociedade futura portuguesa para um modo acrítico de ser e de estar neste país. O que vemos é mesmo uma política de terraplanagem em relação à língua portuguesa. 

Os exames digitais anunciam o óbvio: a dominação do Poder sobre as gerações desmemoriadas nascidas já no século XXI. Depois de 12 anos sem terem de ler nada de nada, nem de saber escrever seja o que for, é da mais leviana falsidade dizer-se que, pelo facto de serem exames digitais, os alunos estão a ser preparados para um mundo cada vez mais competitivo. 

O que acontece é justamente o contrário: as nossas crianças e adolescentes estão embrutecidas a um ponto tal que mais ecrãs só significa mais estupidez, mais banalidade e divórcio total com a cultura, o pensamento, a liberdade."

segunda-feira, 7 de julho de 2025

BÁRBAROS À PORTA

Roubo o título a Eugénio Lisboa. Ele haveria de compreender e de me desculpar.

Dois deputados eleitos, de um partido político reconhecido pelo Tribunal Constitucional e no qual os portugueses votaram generosamente nas última eleições, leram:
1) numa rede social os nomes próprios e apelidos, de crianças que estão numa sala de jardim-de-infância, notando que a maior parte era estrangeira;
2) em reunião plenária da Assembleia da República os mesmos nomes, ainda que não referindo os apelidos.
E porquê? Porque querem provar que as crianças estrangeiras tiram lugar nas escolas às crianças portuguesas.

Discutem agora os juristas se o acontecido é ou não crime, invocando sobretudo o Código Penal e o Regime Geral de Proteção de Dados (RGPD). Não tenho competência para me pronunciar nessa matéria, mas tenho competência para dizer que aquilo que esses deputados fizeram não é coisa de gente decente.

Talvez não entendam o que significa "dignidade humana", nem "protecção de menores", nem "reserva de dados pessoais"...
 
Talvez não saibam que há uma Declaração dos Direitos da Criança, onde se diz que:
"Todas as crianças, absolutamente sem qualquer exceção, serão credoras [dos] direitos [enunciados nesta Declaração], sem distinção ou discriminação por motivo de (...) origem nacional (...) nascimento ou qualquer outra condição, quer sua ou de sua família."
E um desses direitos é, como se sabe, a educação.
 
Talvez não saibam que na Constituição da República Portuguesa se diz que:
"As crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado (...) especialmente contra todas as formas de (...) discriminação e contra o exercício abusivo (...) de instituições"
e que
"A todos são reconhecidos os direitos (...) ao bom nome e reputação (...) à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação"
 
Talvez não saibam que, na sua Deliberação n.º 1495/2016, dirigida às escolas, a Comissão Nacional de Protecção de Dados, diz que:
"Há um vasto conjunto de informação pessoal dos alunos (...) que constitui não só uma intrusão na privacidade das crianças como também um sério risco para a sua segurança (...). É disso exemplo (,,,) a publicação de um quadro com a constituição das turmas, com a identificação do ano de escolaridade e da turma, o nome completo dos alunos, a sua idade (...)"
 
Por este tão triste quão lamentável acontecimento são igualmente responsáveis aqueles que, tendo tido acesso à "constituição da turma", a facultaram. Um dos elementos do partido diz terem sido pais...
 
Quem, além da descrição, viu as imagens de ambas as leituras pensará, por certo, que a barbárie está à porta, mas também deve pensar no que pode fazer para não a deixar entrar.

domingo, 6 de julho de 2025

OS "ESTUDOS" COMO CONDIÇÃO E FORÇA DE DECISÕES POLÍTICAS

"Temos de usar evidência (informação científica), temos de usar os estudos [...]
Depois da avaliação e com a evidência que se vai somando, também em outros países,
faremos essa avaliação e se houver evidência nesse sentido [de proibição],
não teremos problemas nenhuns [em fazê-la] [...].
É natural que no próximo possa haver uma alteração política".

Fernando Alexandre, Ministro da Educação, Lusa/Expresso, 2024.

O Conselho de Ministros do passado dia 3 aprovou um Decreto-Lei que regula a utilização, em contexto escolar, de equipamentos digitais com acesso à internet. Entre eles estão os telemóveis.

Nesse normativo, que há-de sair, o Governo proíbe, a partir do próximo ano lectivo, o uso dos mencionados equipamentos nos 1.º e 2.º ciclos do Ensino Básico. Na base da decisão estará um estudo encomendado, em setembro de 2024, pelo Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI), ao Centro de Planeamento e de Avaliação de Políticas Públicas (PLANAPP), com o objectivo de conhecer a utilização dos telemóveis nos recintos escolares. 

Não consegui encontrar o estudo (nem no sítio do mencionado Centro), mas presumo que seja sério. Reproduzo as principais conclusões (julgo que derivadas da auscultação de directores de escolas onde os telemóveis foram proibidos) que estão disponíveis online:

"... mais de metade das escolas que proibiram o uso de smartphones registaram uma diminuição do bullying e da indisciplina do 2.º ciclo para o ensino secundário, e a esmagadora maioria dos alunos passou a conviver mais nos intervalos, a fazer atividade física e a utilizar os espaços de recreio durante o recreio".

[Luís Afonso dedicou ao estudo um episódio d´A mosca]

Ora, estas conclusões coincidem com as de uma infinidade de outros estudos que têm sido amplamente divulgados, pelo que faz sentido perguntar: o MECI precisava deste para legitimar a proibição? Terá ele maior fiabilidade do que a muito conhecida e reconhecida revisão exaustiva de estudos que Desmurget realizou (ver, por exemplo, aqui ou aqui)? Não bastaria que alguém no MECI recolhesse e sintetizasse informação credível?

Além disso, apesar de os políticos poderem (e em alguns casos deverem) ter em conta estudos científicos para tomarem decisões, a verdade é que há outros factores nesse processo, tão ou mais importantes, que são omitidos. 

E porque é que isso acontece? Porque os políticos sabem que as suas decisões serão mais bem acolhidas se forem invocadas "evidências" para as mesmas, e isto apesar da desvalorização do conhecimento científico, que tende a grassar. Não invocam, por exemplo, fundamento filosófico ou ético (que precede sempre o científico) porque a este ninguém está disposto a dar crédito...

Os estudos passaram a ser os "tira-teimas" da política educativa. O raciocínio é algo como: não podemos apresentar uma decisão sem termos um estudo específico; encomenda-se e ele aparece feito; se indica tal, é tal que decidimos, e decidimos bem porque era o que o estudo indicava. Isto é a política a esconder-se atrás de estudos e, eventualmente, a desculpar-se com eles.

Acontece que em Educação (mas não só) há estudos para todos os gostos (e são várias as entidades, com as suas agendas, que os assinam): uns vão num sentido e outros no sentido contrário, pelo que todas as decisões que se tomem podem ser justificadas.

O filósofo espanhol Daniel Innerarity, numa entrevista a propósito do seu livro A sociedade do desconhecimento, nota que a política não deve limitar-se a transladar as verdades científicas para as decisões. Não é verdade que os políticos decidam melhor se derem ouvidos àquilo que especialistas lhes dizem, entre outras razões porque há muitos especialistas que se contradizem entre si.  

À margem desta reflexão, e na linha do que tenho dito neste blogue, entendo que a decisão de inibir o uso de telemóveis na escola, está certa. Mas isto se partirmos do princípio que os alunos vão à escola para desenvolverem as suas capacidades, para serem educados.

sábado, 5 de julho de 2025

VIOLINOS COM BÁRBAROS À PORTA

A voz de Eugénio Lisboa na poesia que nos deixou.

Quando uma orquestra toca Mozart,
enquanto o Titanic se afunda,
dá um grande exemplo da bela arte,
que dentro de nós se tornou fecunda.

Mas quando, distraídos, percutimos,
com os bárbaros mesmo já à porta,
os sons de um violino que fruímos,
somos o que o bom senso não suporta.

Ignorar fogo ou vento que nos mata,
brincando com soldadinhos de chumbo
ou comendo pastelinhos de nata,

é como enfrentarmos enorme Jumbo,
tentando matá-lo com alfinete,
enquanto fruímos um bom banquete!

Eugénio Lisboa

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Apontamentos — para reflexão

 Há um interesse global em estupidificar as pessoas

António Carlos Cortez, em entrevista recente ao Semanário Expresso (ler aqui) 

1.

No final do século passado, "foi êxito estrondoso na Alemanha" o livro do professor de literatura Dietrich Schwanitz intitulado Cultura — tudo o que é preciso saber, tradução portuguesa de 2004, edições D. Quixote. Logo a abrir, numa "Introdução sobre o estado das escolas", o autor, lembrando o naufrágio de Robinson Crusoe, escreve:

"No que à cultura diz respeito, encontramo-nos na situação de Robinson. Naufragámos. Isto é grave, mas não é uma catástrofe, desde que não percamos o moral, não entremos em pânico, sejamos capazes de aprender e tenhamos determinação e persistência suficientes para nos reorganizarmos."

E continua:

"O ensino transformou-se num reino das trevas. No seu interior evaporaram-se as ideias sobre o que devemos, afinal, aprender. Uma reflexão séria, apoiada numa base científica sólida, sobre os objetivos do ensino, é algo que não se vislumbra acontecer em parte alguma."

2.

O escritor Afonso Cruz, no seu mais recente livro, sugestivamente intitulado O vício dos Livros II (Companhia das Letras, Maio de 2025), reflecte, em textos curtos, sobre os problemas inerentes à relação entre os livros e os leitores, na procura de resposta a questões: como tornar a leitura apelativa? como levar os jovens a ler? como levar os adultos a ler? O escritor deve escrever para o leitor?

São questões de sempre que estão intimamente ligadas a outras — literacia, conhecimento, educação e cultura. É na escola que tudo começa...

Num desses capítulos, o autor, cita John Carey, professor emérito de Literatura Inglesa, que num livro publicado em 1992, no qual analisa a relação entre a literatura e as massas entre 1880-1939, escreveu:

"Os intelectuais não poderiam, evidentemente, impedir a alfabetização das massas. Mas podiam impedi-las de ler literatura, tornando-a extremamente difícil de ser compreendida — e foi isso que fizeram. O início do século XX assistiu a um esforço deliberado, por parte da intelectualidade europeia, de excluir as massas da cultura. Em Inglaterra, o movimento ficou conhecido como modernismo. Noutros países europeus, recebeu nomes diferentes, mas os ingredientes eram essencialmente os mesmos, revolucionando as artes visuais e também a literatura. O realismo do tipo que se supunha que as massas apreciavam foi abandonado. O mesmo aconteceu com a coerência lógica. A irracionalidade e a obscuridade foram cultivadas."

Os escritores não estavam sozinhos... Este elitismo faz parte das políticas culturais da época e de uma determinada definição de cultura, defendida e apoiada pelas determinações oficiais, em termos de educação, de divulgação do livro. Cultura era, então, a alta cultura... Havia, assim, os intelectuais cultos e o povo inculto.

3.

Lembremos:

— Entre nós, o Estado Novo, criou, em 1936, o Instituto Alta Cultura, designado Instituto para a Alta Cultura a partir de 1952, com o fim de apoiar a investigação científica e a divulgação da cultura portuguesa. 

— Este Instituto só foi extinto em 1976. Deixou de ter funções na área da Investigação Científica, funções que passaram para o Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC), agora Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), um I.P. que iniciou a sua actividade em 1997.

Perdeu-se, entretanto, o termo "Cultura", ficando apenas "Investigação"...

Mas os Programas de Governo iam manifestando a sua preocupação com as questões culturais:

— no primeiro governo após o 25 de Abril de 74, havia o Ministério da Educação e Cultura

— em 1983, surge, pela 1.ª vez, um Ministério da Cultura.

E a CULTURA foi passando de Secretaria de Estado a Ministério, e vice-versa.

Significativamente, ou não, no actual governo a designação passou a ser "Ministério da Cultura, Juventude e Desporto".

Isaltina Martins

quinta-feira, 3 de julho de 2025

DE "SABEMOS QUE NÃO SABÍAMOS" AO DECIDIR O QUE TEMOS DE FAZER

Não sei se entendi bem: há poucos dias, o Ministro da Educação, Ciência e Inovação, reconheceu a impossibilidade de saber quantos alunos, quantas turmas não tiveram aulas, na escolaridade obrigatória, por falta de professores nos últimos dois anos lectivos. Isto depois de, antes, ter apresentado números que validavam o sucesso de medidas tomadas pela sua equipa, números que se viu não corresponderem à verdade. A verdade, tão óbvia que é, parece querer esconder-se...
Com tantos departamentos e serviços que o Ministério integra, com tantas solicitações de dados que, em contínuo, faz às escolas e que são colocados em plataformas digitais para o que for preciso, com uma Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, para tratar esses dados, e uma Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares, que terá uma ligação privilegiada às escolas, com tantos parceiros educativos sempre dispostos a colaborar para o bem do sistema, é compreensível essa impossibilidade?
 
O Governo, pela voz deste Ministro, reconheceu que “não sabia que não sabia”. E talvez não soubesse exactamente a quantos alunos, a quantas turmas faltaram professores... Demos-lhe o benefício da dúvida...
 
E continua: “agora sabemos que não sabíamos, mas vamos passar a saber”. Esta terá sido a conclusão resultante de uma auditoria que solicitou a uma certa empresa, na sequência da polémica causada por 
 
“... lacunas e insuficiências que põem em causa a solidez dos dados reportados pela Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares, referente ao número de alunos sem aulas a uma disciplina, bem como a possibilidade de verificação desse mesmo número para os anos letivos de 2023-2024 e 2024-2025″.
 
A mesma empresa reconhece que "o sistema actual não é suficientemente robusto para que se tirem conclusões sobre o número de alunos sem aulas", não permite apurar esse número “com exactidão” e sugere como modo mais fiável a "recolha e compilação dos sumários das aulas (...) diretamente das escolas”. Ratificada a sugestão pelo Ministério, transforma-se em medida a partir do próximo ano letivo para “monitorizar com rigor, credibilidade e transparência” o problema “em diferentes momentos e ao longo do ano letivo” (ver aqui e aqui).
 
Ficam três questões que se me afiguram primordiais:
 
Essa monitorização será mais uma tarefa para as escolas quando o Ministro veio reconhecer em carta recente dirigida aos professores a sua sobrecarga burocrático-administrativa e pedir-lhes ajuda para a superar (ver aqui)?
 
Não terá o Ministro conhecimento de estudos realizados no país sobre o problema em causa, a pedido do próprio Ministério e amplamente noticiados, com destaque para o de Nunes et al. (2021), cujo título é suficientemente ilustrativo (Estudo de diagnóstico de necessidades docentes de 2021 a 2030)? 
 
Que importância terá "monitorizar com rigor, credibilidade e transparência" a falta de professores, se nada se fizer de relevante para seleccionar e formar devidamente os que são necessários no sistema?

No respeitante a este último aspecto, que me diz particular respeito, deixo duas notas.
 
Não vejo que esta equipa ministerial nem a anterior tenham prestado a devida atenção aos dados do mencionado estudo, solicitado pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência. E são muito objectivos e claros os que expõe relativamente à falta de professores, bem como as projeções e recomendações que apresenta.

Também não vejo que tenham prestado a devida atenção ao relatório Formação profissional de docentes que, na sequência desse estudo e da discussão que desencadeou, nomeadamente no Conselho Nacional de Educação, o Ministro da Educação e o Secretário de Estado do Ensino Superior encomendou a um grupo de trabalho que foi criado com a missão de apresentar propostas de alteração ao regime jurídico de formação inicial de professores.
 
O que tenho percebido é uma evidente falta de ensejo e de mobilização, em primeiro lugar, por parte da tutela para que a escola pública tenha professores que realmente o sejam. Não basta atribuir a alguém a designação de professor para que esse alguém passe a ser professor, nem basta fazer retoques cosméticos nos cursos de formação (mestrados em ensino) para que eles passem a ser contextos efectivos de formação.
 
Em suma, o problema da falta de professores, passará pelo inventário em causa, mas está muito, mesmo muito, para além disso; está em encarar o ensino como uma profissão de elevadíssima competência, autonomia e responsabilidade.

"O PODER DA LITERATURA". UMA HISTÓRIA, UM LIVRO

Talvez haja quem se recorde de, nos anos oitenta do passado século, certa professora, chamada Maria do Carmo Vieira, e os seus alunos do 11.º ano da Escola Secundária Marquês de Pombal, em Lisboa, terem redigido uma carta aberta em defesa do café Martinho da Arcada, frequentado por Fernando Pessoa e que, à altura, estava destinado a "mudar de ramo". A carta deu origem à Associação Pessoana dos Amigos do Martinho da Arcada (APAMA), cujas solicitações tiveram acolhimento político e governamental (ver aqui e aqui). 

A história é mais complexa do que isto, mas o que me interessa aqui sublinhar, porque toca o cerne, a alma, da educação escolar, é a possibilidade de se construir na escola, na relação entre professores e alunos, por via do conhecimento, algo de novo, capaz de tornar o mundo um pouco melhor. Não é certo que sempre assim aconteça, não é certo que, no caso, a literatura tenha sempre o poder de mobilizar o que de melhor há nas pessoas em prol do bem-comum, mas por vezes pode... A educação cidadã é isto mesmo, não aquilo que o Ministério da Educação, desde há longa data, quer que seja.

Perceber-se-à melhor o que digo com a leitura do livro que Maria do Carmo Vieira publicou recentemente, descrito no texto de apresentação como "um manifesto apaixonado sobre o poder de a literatura inspirar novos interesses e paixões e desencadear mudanças na sociedade" e sobre "o papel fundamental do professor de Português como transmissor de um legado cultural, que desafia imposições e métodos, evidenciando o contraste entre o sentido da literatura, arte da palavra, e o utilitarismo de um texto funcional."
 
Na feira do livro de Lisboa encontrou-se a professora e dois desses seus alunos numa maravilhosa conversa que pode ver abaixo.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

"NESTE CAMINHO DO DIGITAL"

Há escassos dias, o actual Ministro da Educação Ciência e Inovação dirigiu uma carta (ver aqui) aos Professores e Diretores para lhes agradecer o "empenho e mobilização" nas provas finais do 9.º ano em formato digital, agradecendo também ao pessoal não docente e da tutela que trabalharam nas ditas provas. Iniciada a carta por um singelo "Caro/a sr./a Professor/a", presume-se que tenha querido dar destaque aos Professores. 
 
O texto não é longo, mas toca aspectos essenciais do sistema de ensino. De entre eles, destaco três.

1. Começo pela frase abaixo reproduzida que revela um dos sentidos que se tem visto atribuído à escola pública: 
 
"desenvolver competências que serão cada vez mais relevantes para a empregabilidade."
 
Tornar os alunos potenciais empregados (de alguém) será, segundo o Ministro, e muitos concordarão, o fim último da escolaridade, o qual, com alguma facilidade, se traduz em competências avaliáveis por via digital. Permite obter "evidências" que constarão em relatórios e estudos vários, a que a comunicação social dará destaque.
 
Porém, aqui surge uma dúvida: que lugar é reservado ao empreendedorismo, que já teve (ou ainda tem) igual estatuto? Um fim substitui o outro? É que este leva cada sujeito a desenvolver competências para ser empresário de si próprio, não é um emprego que há-de procurar, mas um negócio.
 
2. O que se destaca na carta é a "transição digital", designada no Programa de Governo por "Estratégia para o Digital na Educação":
 
"apoiar e preparar alunos e famílias para lidar com um mundo cada vez mais digital"
"
preparação dos nossos alunos para um mundo cada vez mais digital"
 
Uma consideração a fazer é que o Estado pode determinar que a escola apoie e prepare alunos para um mundo cada vez mais digital (ainda que isso seja contestável), mas não o pode fazer em relação às famílias. Esta opção, além de fantasiosa, é ilegítima: as famílias já não estão ao obrigo da escolaridade obrigatória e o Estado não tem mandato para as "educar" seja para o que for.

Outra consideração a fazer é que a escola continua a seguir as "exigências" que certos sectores da sociedade impõem. Ainda que não se perceba bem o alcance da "
preparação... para um mundo cada vez mais digital", presume-se que ela não consista numa reflexão profunda sobre esse mundo, mas sim no uso de ferramentas digitais, mesmo que em nada beneficiem a aprendizagem.

3. Não entro na discrepância entre os vários problemas que os jornais relataram sobre a aplicação da mencionada prova, alguns deles reconhecidos pelo Ministério (ver aqui) e o tom optimista, ainda que moderado, do Ministro, reafirmando que:
 
"a avaliação externa da aprendizagem em contexto digital é parte fundamental do sistema educativo, sendo este um dos compromissos assumidos pelo MECI".
 
É, portanto inabalável "neste caminho do digital" e, para o trilhar, conta com todos nós, directores, professores, formadores...
 
Uma nota final: na assinatura da carta consta o nome do Ministro, sendo dispensada a menção ao cargo. Presumo que se trate de uma estratégia de igualização àqueles a quem se dirige. Acontece que, no sistema, a diferentes tarefas e responsabilidades correspondem diferentes cargos, logo espera-se que um Ministro se assine como tal, sem subterfúgios.

500 CARACTERES PARA COMENTAR O QUÊ?!

Estava, de facto, inoperacional o acesso aos formulários constantes no sítio da Direção-Geral da Educação para recolha de contribuições rel...