domingo, 17 de agosto de 2025

O FERRO

Por A. Galopim de Carvalho

(in "Nós e as Pedras", em preparação)

O ferro (Fe), do latim "ferrum", com o mesmo significado, é um elemento químico metálico bem representado na Terra, abundante no núcleo, menos abundante no manto, menos ainda, mas suficientemente significativo (5%), na crosta. Tido por um dos pilares das sociedades envolvidas na Revolução Industrial, iniciada em Inglaterra, no século XVIII é um dos metais mais utilizados na sociedade humana, desde a Pré-história, tendo dado nome (Idade do Ferro) aos últimos tempos deste longo período da história do Homem, com início há cerca de 1200 a. C.

De cor cinzenta-prateada, em superfície acabada de cortar, oxida facilmente, na presença do oxigénio do ar e, sobretudo, em ambiente húmido, formando ferrugem. É maleável e dúctil e tem boa condutividade térmica e elétrica.
 
É o principal componente do aço (liga de ferro com carbono) e o seu uso está em toda a parte, do mais simples e minúsculo prego, à mais importante viga em uso na construção civil. Está nos mais variados tipos e tamanho de motores, carrocerias e múltiplos equipamentos industriais e domésticos, entre agulhas de costurar, tesouras, grelhas do fogão e outras. Está nos carris dos muitos milhares de ferrovias que atravessam países de todo mundo, em máquinas e ferramentas de todas as indústrias e, até, em nós, como componente fundamental da hemoglobina, a proteína do sangue que transporta oxigénio, dando vida a todos os recantos do corpo. Fundamental à nossa existência, encontramo-lo, sobretudo, nas carnes vermelhas, fígado, leguminosas (feijão, lentilha), vegetais verde-escuros, com destaque para os espinafres.

O ferro, na Natureza, está presente em três óxidos (hematite, magnetite e goethite), num carbonato (siderite), dois sulfuretos (pirite e calcopirite) e diversos silicatos, entre biotite, anfíbolas, piroxenas e olivinas, apelidados, em conjunto, por ferromagnesianos. Hematite (Fe₂O₃), um dos mais importantes dos seus minérios. A palavra vem do grego "haimatités", que significa "pedra de sangue", com raiz no termo "haima", que significa sangue. Utilizada como pigmento natural, conhecida como ocre vermelho. A variedade com brilho metálico tem o nome de especularite, do latim "speculum", que signific espelho.

Magnetite (Fe₃O₄), igualmente importante, foi um dos primeiros minerais observados com propriedades magnéticas naturais. Os gregos notaram esse comportamento nas "magnetis lithos" ou pedras da Magnésia, uma área da Grécia antiga (na Tessália), conhecida pela existência de pedras com propriedade de atraírem objectos de ferro.

Goethite (FeO(OH)) é um hidróxido e um dos minerais de ferro mais comuns à superfície Terra, geralmente formado por meteorização de outros minerais ricos em ferro. Ocorre geralmente em solos e crostas ferruginosas, sendo de destacar o chamado (ferro dos pântanos) de origem sedimentar, bem exemplificado em "la minette" (diminutivo de "mine", em francês) o minério de ferro da Lorena, no noroeste da França, de baixo teor. Utilizada como pigmento natural, conhecida como “ocre castanho” e tem interesse científico em áreas como paleoclimatologia e ciência do solo, por fornecer pistas sobre o ambiente de formação. O nome goethite é uma homenagem ao escritor e pensador alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1833), um importante autodidacta em mineralogia.

Limonite não é um mineral, é um termo genérico usado para designar uma mistura de hidróxidos de ferro, como goetite e lepidocrocite e, por vezes, argila, de cor amarelada a acastanhada. O nome radica no grego "leimon", que significa pântano. Isto porque a limonite é própria deste tipo ambientes húmidos, onde se forma como produto de alteração de minerais ricos em ferro.

Siderite (FeCO₃), o carbonato de ferro natural, é uma importante fonte de ferro, embora não tão tanto quanto a hematite ou a magnetite. Ocorre em filões hidrotermais de baixa temperatura e em depósito sedimentares, sendo comum nas formações ferríferas bandadas (Banded Iron Formations, BIFs). O nome vem do grego "sideros", que significa ferro.

Minerais ferromagnesianos são silicatos que contêm quantidades significativas de ferro (Fe) e magnésio (Mg). São, em geral, escuros, densos e têm elevada importância geológica, pois fazem parte da composição de muitas rochas ígneas e metamórficas, sendo essenciais para a compreensão da evolução magmática e da classificação das respectivas rochas.

Entre os principais silicatos ferromagnesianos destacam-se: olivina, comum em rochas máficas e ultramáficas; piroxenas (como a augite), importantes em rochas basálticas e gabros; anfíbolas (como a hornblenda), presentes em rochas como o anfibolito e o diorito; Biotite, mica preta, comum em granitos e gnaisses

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

ÚLTIMO I


 Tenho saudades do I, agora que já não se publica. Durante mais de um ano fiz longas críticas de livros (duas páginas) para esse jornal. Dei algumas entrevistas longas ou curtos depoimentos. A última entrevista foi sobre ciência e religião  dada a Diana Gomes (transcrevo em baixo, com receio que morra o arquivo digital do I). Paz à alma do I, que parece vai ter uma reencarnação como revista do Sol.


O físico Carlos Fiolhais diz que sim. Nesta entrevista exploramos as fronteiras entre ciência e religião, a figura histórica de Jesus Cristo e o lugar da fé no século XXI. 

DG-  É possível ser simultaneamente um cientista e um crente? 

CF- Sim, são inúmeros os exemplos de cientistas crentes. Há até cientistas que são padres ou pastores. Por exemplo, o padre belga George Lemaître foi não apenas um físico amigo de Einstein, mas também o autor da teoria do Big Bang. Lemaître era um sacerdote católico, mas, na Igreja Anglicana, John Polkinghorne, também já falecido, era não só físico teórico, como pastor e teólogo. Em Portugal, o professor de Física do Técnico João Resina era um padre com uma paróquia a seu cargo. E o padre jesuíta Luís Archer foi o introdutor da moderna genética entre nós. Na história da ciência há uma longa lista de jesuítas ativos na ciência: em Portugal foram jesuítas que introduziram o microscópio, inventado por Galileu em 1609, e que o transferiram para o Oriente, em particular para a China, onde dirigiram um observatório astronómico. Ainda hoje o Vaticano tem um Observatório Astronómico, com um bom telescópio, no Arizona, EUA, dirigido por um jesuíta. O Papa Francisco, que é jesuíta, tem formação na área da Química, tendo trabalhado num laboratório de análises. É o autor de uma encíclica (Laudatio Se) bem informada pela ciência. De facto, a ciência baseia-se em factos, mas também aí podemos falar de crenças, crenças justificadas com base no método científico, ao passo que a fé assenta em crenças que não são abonadas pelo esse método. O Padre Lemaître escreveu: “Os meios de investigação de um cientista crente são os mesmos que os do seu colega não-crente. Num certo sentido, o investigador abstrai-se da sua fé na sua investigação. Ele faz isso não porque a sua fé lhe poderia causar dificuldades, mas sim porque ela não tem diretamente nada a ver com a sua atividade científica. Afinal, um cristão não age de forma diferente do que qualquer não-crente, quando se trata de caminhar ou de correr”. 

DG-  Como vê a relação entre fé e ciência no século XXI? Ainda há um conflito irreconciliável? 

CF- Fé e ciência podem coexistir. Sendo diferentes dimensões do ser humano, no meu entender, podem e devem coexistir pacificamente. Podem até colaborar, desde que cada uma não se queira substituir à outra, dominando-a ou excluindo-a. Há questões que a ciência pode responder com o método que lhe é próprio, outras que não pode. Por exemplo, sobre o próprio fenómeno da crença religiosa a ciência pode dizer umas coisas – é o que fazem as neurociências, a biologia evolutiva, etc.– , mas ficam aquém da compreensão da religiosidade do homem. O homem é um animal religioso. Mais de 80% dos habitantes da Terra reconhecem-se como crentes e mesmo entre os outros podemos falar de espiritualidade, ainda que esta possa ser difusa e difícil de definir. A fama do conflito talvez venha do caso Galileu, mas ocorreu em 1633 e a Igreja Católica, embora tardiamente e com palavras cuidadas, já reconheceu o seu erro. 

DG-  Na Páscoa celebra-se a ressurreição, que é, por definição, um milagre – algo que contraria as leis naturais. 

CF- A ciência deve tentar explicar o inexplicável ou aceitar que há territórios que lhe são vedados? A ciência pode e deve tentar o inexplicável que está ao seu alcance. Mas não pode – e por isso também não deve – responder a todas as questões. Para alguns crentes, milagres são interrupções locais e transitórias das leis naturais. Nesse sentido, os cientistas dizem que não há milagres. Há coisas na Natureza por explicar, mas os cientistas partem do princípio que poderão vir a ser explicadas com base nas leis conhecidas ou com base em novas leis. A teologia católica liga os milagres a sinais de Deus. Trata-se de uma interpretação, que parte de uma crença num Ser omnipotente. Há muitas subtilezas no assunto. Mas julgo que a Igreja já não lê a Bíblia literalmente. A Bíblia é um livro de fé e não de ciência. O objetivo da ciência não é procurar Deus: Deus não se encontra com um telescópio, um microscópio ou um acelerador de partículas. Não existem provas científicas da existência ou da não existência de Deus. O conteúdo de livros como um recente, de dois leigos franceses (tanto em ciência como em religião), intitulado “Deus. A ciência e as provas”, é um completo equívoco. As convicções da fé seriam até muito fracas se pudessem ser abaladas por uma qualquer observação ou experiência científicas. A força da ciência reside bastante na sua universalidade: ela une pessoas de diferentes credos religiosos. 

DG-  Como cientista, como encara os relatos de milagres atribuídos a Jesus? 

CF- Da mesma maneira que encaro quaisquer outros milagres. As narrativas de milagres são bem anteriores a Jesus Cristo e continuaram, depois dele, até aos nossos dias. Com todo o respeito pelos crentes que acreditam em milagres, eu, que fui educado e vivo numa cultura católica, não acredito em milagres. Não acredito num Deus omnipotente que fala connosco por meio desses ou doutros sinais, mas, com certeza, Jesus Cristo foi uma figura histórica bem real, que deixou uma marca relevantíssima no mundo, da qual somos herdeiros. Herdeiro ele próprio do judaísmo, é o autor de uma revolução moral. As frases que lhe são atribuídas são para mim mais extraordinárias do que os milagres. Por exemplo, a frase que encontramos no Evangelho de São João: ‘Amai-vos uns aos outros’, que está na base da referida ‘revolução moral’. Ou a frase, que encontramos em São Mateus: ‘Bem-aventurados os pobres em espírito, porque é deles o Reino dos Céus’. É curioso o que Einstein – o físico de origem judaica mas não crente (nunca entrou numa sinagoga para rezar) – disse sobre a figura histórica de Jesus Cristo: ‘Ninguém pode ler os Evangelhos sem sentir a presença real de Jesus. A sua personalidade pulsa em cada palavra. Nenhum mito está preenchido com tanta vida’.

DG- Qual é o papel da historiografia crítica – como a do Jesus Seminar, por exemplo– na nossa perceção atual de Jesus?

CF-  Não é fácil fazer esse tipo de historiografia. O Jesus Seminar, fundado pelo estudioso norte-americano Robert Funk, é um dos grupos que se abalança a essa tarefa. A história de Jesus, como qualquer outro trabalho histórico, nunca estará terminada. Pode sempre haver novos dados ou novas interpretações com base nos dados existentes. 

DG- Qual é o papel do ensino da ciência na construção de um pensamento crítico sobre religião? 

CF- O ensino da ciência é parte essencial da moderna cidadania. Transmite-nos não apenas um conjunto de factos, conceitos articulados em teoria, mas sobretudo um método que nos permite obter um certo conhecimento do mundo e, portanto, também de nós próprios. A escola está muito habituada a transmitir “conteúdos” e nem sempre transmite bem o método – o ceticismo, o espírito crítico, o rigor metodológico – que nos permite descartar erros e chegar ao que podemos chamar verdades provisórias. Os cientistas exercem o espírito crítico ao mais alto grau, mas essa sua atitude pode ser útil na vida quotidiana. A ciência está longe de ser tudo na vida. Mas o espírito critico que a ciência usa pode usar-se também fora da ciência, incluindo no estudo da religião. Os estudos teológicos devem não só estar informados pela ciência como usar a racionalidade na medida do possível. Sei que hoje vivemos num mundo largamente dominado pela irracionalidade, mas penso que a racionalidade continua a ser a maior marca da nossa espécie: o Homo Sapiens

DG- . Se Jesus Cristo vivesse hoje, como reagiria à ciência moderna, à física quântica, à inteligência artificial ou à genética? 

CF- Não sei, francamente. Isso é história virtual. Mas Jesus Cristo foi revolucionário no seu tempo. Seria revolucionário em qualquer tempo. 

DG-  Podemos pensar em Jesus Cristo como um “cientista” do seu tempo, no sentido em que desafiava o conhecimento estabelecido?

CF-  Não. Chamar cientista a Jesus Cristo é um abuso de linguagem. A ciência moderna não existia no seu tempo. E os seus ensinamentos, como o ‘Amai-vos uns aos outros’, não são do domínio da ciência, mas da moral. De resto, os cientistas não são os únicos a desafiar o pensamento estabelecido. Podem ser também historiadores, políticos, filósofos, teólogos, etc. Algumas seitas religiosas invocam o nome da ciência, mas de um modo vazio. Por exemplo, um japonês criou em 1986 uma seita chamada ‘Happy Science’, que antes de ser um movimento religioso chamava-se Instituto de Investigação da Felicidade Humana. Acho que é um meio de enganar as pessoas. Basta dizer que o dito líder reclama ser uma reincarnação de uma divindade de Vénus. Em Vénus faz demasiado calor para poder ter lá antepassados…

ENTREVISTA QUE O DAVID MARÇAL E EU DEMOS A «NOVOS LIVROS» (J. A. NUNES CARNEIRO) SOBRE O NOSSO LIVRO «PIPOCAS COM TELEMOVEL«

 


P-Qual a ideia que esteve na origem deste vosso livro "Pipocas com Telemóvel e outras histórias de falsa ciência"?

    R-A ideia foi falar de falsa ciência. Discutir ideias, produtos e serviços que dizem basear-se no conhecimento científico, não sendo isso verdade. A ciência tem credibilidade e muita gente usa-a para vender  banha da cobra. As estratégias mais comuns da falsa ciência são as figuras de autoridade e a linguagem aparentemente científica. Ou seja, alguém que se apresenta como uma pessoa muito importante e sábia e que usa palavras do léxico científico, como "quântica", "campos", "energia", etc. Só que essas são no contexto palavras vazias, sem qualquer significado, ditas só para impressionar. E a ciência não depende da palavra de gurus, mas sim de provas. No nosso livro falamos de ciência: não se pode dizer que algo não é ciência sem discutirmos as características da ciência. 

 NL-O livro vai na sua 9ª edição: a que se deve este tão grande êxito editorial?

R- Provavelmente porque escolhemos exemplos próximos do quotidiano das pessoas. Falamos de falsa ciência na internet, no supermercado, nos jornais, na saúde e até mesmo nas universidades (caso das fraudes científicas). E também porque tentamos ter alguma graça. Nós pelo menos achamos piada a algumas coisas que escrevemos, embora não saibamos se a maioria dos leitores concorda!

NL-O estilo e a abordagem de contadores de histórias que utilizam pode ser uma das razões para o sucesso dos vossos livros?

R- O livro é um conjunto de histórias encadeadas, mas cada uma delas tem uma certa autonomia. Nessas histórias fazemos ligações a muitas coisas para além da ciência. Isso torna a leitura do livro fácil. Por exemplo, pode-se ler numa ordem diferente daquela que resulta da sucessão de páginas, consoante os temas que mais interessam ao leitor.

     NL-Na era das poluídas redes sociais, que espaço pode a ciência reivindicar junto dos leitores jovens (e menos jovens)?

R- O espaço próprio dos livros, que é do pensamento aprofundado, não é possível noutros meios como as redes sociais. Certamente que um livro não chega a tanta gente como um vídeo viral de 30 segundos, mas o seu impacto em quem o lê é certamente superior. Seria desejável que o número de leitores, do nosso e de outros livros, fosse maior. Há que promover a leitura, procurando chegar a mais gente..


    NL-Pergunta prática: como podemos proteger-nos da falsa ciência que se propaga pela Internet (e não só nas redes sociais)?

R-A resposta é simples de enunciar: tendo mais cultura científica. Sabendo distinguir melhor a ciência da falsa ciência. E isso significa saber o que é a ciência: como acrescentamos novo conhecimento ao que já temos. Claro que promover a cultura científica é um grande desafio. Mas tal não é razão para desistirmos!

     NL-Nos dias de hoje, o interesse pela ciência estará a crescer?

R-O interesse pela ciência existe. Todos os grandes desafios do nosso tempo precisam da ciência. Desde o combate às alterações climáticas até à compreensão do fenómeno das redes sociais. Para vivermos mais e  melhor precisamos de ciência e tecnologia. A curiosidade é uma característica humana que decerto continuará a manifestar-se. Cada resposta que obtemos levanta novas perguntas!

 

ENTREVISTA QUE DEI COM O JOÃO PAULO ANDRÈ À UNIVERSIDADE DO MINHO (UM) SOBRE O NOSSO LIVRO «A HARMONIA DAS ESFERAS»

 


UM-    Como surgiu a ideia de escrever A Harmonia das Esferas?

JPA e CF- Para amantes da música como nós, reconhecendo as suas bases científicas – tanto por se tratar de um fenómeno físico, o som, como pelo facto de, desde a Antiguidade, ritmos, escalas, harmonia e estruturas musicais terem sido descritos por proporções matemáticas –, era quase inevitável que, um dia, nos lançássemos num projeto deste tipo. De resto, um de nós (JPA) teve um livro bem-sucedido sobre química e ópera («Poções e Paixões», também na Gradiva) e o outro (CF) tem-se servido da música diversas vezes para passar mensagens de divulgação de ciência.

 UM- Porquê a escolha deste título?

JPA E CF- «A Harmonia das esferas» ou «Música das esferas» é uma ideia da Antiguidade Clássica, que o astrónomo alemão Johannes Kepler retomou no século XVII. Desde os tempos dos pitagóricos, na Grécia antiga, que se acreditava que os astros, ao moverem-se nas esferas celestes, produziam uma música harmoniosa – inaudível para os ouvidos humanos (exceto os de Pitágoras), que era regida por proporções matemáticas. Essa música, que simboliza a ordem e a beleza do cosmos, é um conceito adequado para expressar a ligação íntima entre música e ciência que exploramos neste livro.

 UM- E como surgiu a possibilidade de colaboração entre os dois autores?

JPA e CF- Já nos conhecíamos há bastante tempo, mas foi há cerca de dois anos que, impulsionados pela paixão comum pela música e pela ciência, e pelo desejo de um de nós de expandir a ideia antes explorada – as relações entre química e ópera –, passando a abranger, por um lado, todas as ciências exatas e naturais, assim como a medicina, e, por outro lado, todos os tipos de música, decidimos unir os nossos interesses e competências para dar forma a este projeto.

 UM- Qual é a principal temática abordada na obra?

JPA e CF- O livro explora as múltiplas e férteis relações entre a música e a ciência, seja esta matemática, astronomia, física, química, biologia, geologia ou medicina. Como a ciência ainda não oferece respostas definitivas a algumas questões, por exemplo no que diz respeito à extraordinária capacidade humana de criar e apreciar música, optámos por incluir no subtítulo para além de «música e ciência» a expressão «mistérios do Universo». Estamos em crer que a biologia e as neurociências ainda terão muito a revelar sobre as ligações entre o som, o cérebro e as emoções humanas.

 JPA e CF- Qual é o público alvo? Um público generalista, ou mais académico?

Um público generalista. Tentámos escrever uma obra ao alcance de todos os que se interessem minimamente por música e/ou por ciência.

 UM- Qual a importância de associar o lançamento aos 50 anos da ECUM?

JPA e CF- O facto de este livro abordar uma temática transversal a um leque de ciências – é um livro multidisciplinar - terá certamente contribuído para a sua escolha como parte das celebrações dos 50 anos da ECUM.  A obra reflete o espírito multidisciplinar e criativo que a ECUM tem promovido ao longo do seu meio século de existência. Além disso, o livro junta as ciências com uma as artes, não só a música como artes plásticas e outras, numa tentativa de juntar as chamadas «duas culturas».  Queremos reforçar a ideia de que as ciências são parte da vasta cultura humana.

 UM- Se tivesse que escolher uma imagem, metáfora ou ideia para representar esta obra, qual seria?

JPA e CF- A metáfora está no título, «A harmonia das esferas». Tal como a antiga ideia da “harmonia das esferas”, o livro procura mostrar a ordem oculta que estrutura o Universo – não só nas relações físicas entre os corpos celestes, mas também nos processos químicos, nas funções cerebrais e nas respostas emocionais. Einstein, cuja imagem está na capa, dizia que obtinha o maior prazer da sua vida quando tocava violino.

 UM- Quantas páginas tem a obra?

JPA e CF- 368, incluindo figuras a cores extratexto.

 UM-  Quando começou a ser escrita

JPA e CF- Há cerca de dois anos.

UM- Onde pode ser adquirida?

 JPA e CF- Em todas as livrarias e nas plataformas «on-line» de venda de livros. Pode-se comprar diretamente na Gradiva. Façam-nos chegar a Vossa opinião.

ENTREVISTA QUE DEI AO COLÈGIO VALSASSINA (CV)

  CV (Colégio Valsassina, Simão Pignatelli): Quando se apercebeu da sua paixão pelas Ciências?

CF- Quando estava mais ou menos no 5.º ano do liceu (hoje 9.º ano do ensino básico), quando escolhi a área de ciências para a continuação de estudos. Nessa altura fui motivado não apenas pelas aulas de ciências, em particular de Física, mas também pelas leituras que fiz de livros de divulgação da ciência. Foi nesse tipo de livros que encontrei a aventura da ciência, a evolução do conhecimento humano sobre o cosmos. É talvez por isso que, muito mais tarde, também passei a escrever esse tipo de livros..

CV- Licenciou-se em Física na Universidade de Coimbra e doutorou-se em Física Teórica pela Universidade de Goethe, em Frankfurt, na Alemanha. O que o motivou a seguir esta área? Quais eram as suas perspetivas para o futuro?

CF- A Física é a mais geral das ciências naturais: seduziu-me a sua universalidade uma vez que tanto se aplica a objectos na Terra como no vasto céu. Sempre me interessou mais a teoria do quer a experiência. Nunca pensei em utilidades nem em empregos. O emprego como professor e investigador veio a acontecer naturalmente. Aos jovens de hoje só posso recomendar que, tal como eu, vão atrás dos seus sonhos.

CV- Qual o projeto em que participou que destaca ou que considera mais desafiante?

CF- O artigo mais citado sobre a «cola electrónica» entre os átomos, que comecei a realizar nos EUA, foi referido mais de 20 000 vezes, um recorde em Portugal. Mas, falando de projectos científicos, foi entusiasmante a constituição do Centro de Física Computacional da Universidade de Coimbra, e a montagem dos primeiros supercomputadores portugueses. E também tenho tido vários projectos científicos, pedagógicos e culturais. O mais recente é a formação de uma biblioteca com o meu nome num parque em Coimbra, onde ficarão os meus livros.

CV- Para comemorar o centenário da Mecânica Quântica, a Organização das Nações Unidas (ONU) proclamou oficialmente que 2025 fosse o Ano Internacional da Ciência e Tecnologia Quânticas. A Física Clássica é diferente da Física Quântica? Como define a Física Quântica para quem não está dentro do assunto?

CF- Sim, a física clássica aplica-se no mundo de todos os dias, é-nos familiar. A física quântica aplica-se no mundo microscópico, parecendo-nos bastante estranha. Mas a física clássica é um certo limite da física quântica. A física quântica descreve sistemas como os átomos em que os electrões dão saltos de energia, ao  absorver ou emitir luz. A luz de um certo comprimento de onda só é absorvida ou emitida em certas quantidades, ou «quanta» ou «pacotes».

CV- Quais as aplicações no nosso dia a dia do conhecimento acumulado pela Física Quântica?

CF- Os mais conhecidos que estão por todo o lado são os transístores e os lasers. Não poderíamos ter os computadores nem as comunicações modernas sem os saltos quânticos. Seria impossível a nossa vida actual se não explorássemos efeitos quânticos. E para o futuro está prometida a exploração de novos efeitos.

CV- Quais as principais aplicações para a sociedade e humanidade da Física Quântica?

CF- Para além das aplicações já referidas, gostaria de referir as lâmpadas LED e os dispositivos médicos como os raios X e a ressonância magnética. Mas o maior ganho que obtivemos com a física quântica foi a compreensão da estrutura e funcionamento do mundo.

CV- Como olha para o futuro daqui a 50 anos?

CF- Com optimismo nas possibilidades da ciência. Hoje estamos a experimentar no laboratório novas tecnologias como a computação quântica e a criptografia quântica, que prometem mudar a sociedade ainda mais.

CV- O tema do plano anual de atividades do Colégio para este ano letivo é “Despertar o Espanto”. Entendemos que a aprendizagem requer curiosidade, motivação e também surpresa e espanto. Como podemos ter o Espanto como ponto de partida para o processo de aprendizagem, provocando a admiração pelo mundo, e surpresa pelas descobertas?

CF- Einstein é um bom exemplo: ele ficou espantado com a teoria quântica, apesar de ter sido um dos seus autores. Como nela entravam probabilidades, reagiu dizendo que «Deus não joga aos dados». Parece que Einstein não tinha razão: os físicos invalidaram algumas das suas hipóteses contrárias  às probabilidades. O Universo é, de facto, um sítio espantoso, permitindo sempre sucessivas descobertas. Não pára de nos surpreender. Devemos estar permanentemente abertos a surpresas.

CV- Qual pensa que deve ser o papel da Escola e dos professores na promoção do pensamento crítico e científico?

CF- A Escola é essencial:  é uma das maiores  «invenções humanas». Permite transmitir às novas gerações os conhecimentos das antigas.

CV- Sabemos da sua paixão pela literatura, pelos livros. Se tivesse de escolher 2 livros que considera de referência, quais escolheria?

CF- Escolho na divulgação de ciência o «Cosmos», de Carl Sagan, sobre o Universo em geral, e «O Código Cósmico», de Heinz Pagels,  sobre a física quântica. Os dois estão publicados pela Gradiva, na colecção «Ciência Aberta», que dirijo.

CV- Tem vários livros publicados sobre Ciência e divulgação da Ciência. Como seleciona os temas dos livros? Como descreve o seu processo de escrita?

CF- Escrevo sobre os assuntos que conheço, portanto principalmente sobre temas de Física. Mas os métodos da Física são os da ciência em geral, pelo que tenho escrito sobre outros temas. Muitas vezes aproveito palestras que dei, que depois desenvolvo. Foi o caso do meu best-seller «Física Divertida», que agora saiu incluído em «Toda a Física Divertida».

CV- Considera que escrever para o público em geral é mais difícil ou mais gratificante do que fazer investigação?

CF- As duas actividades têm o seu encanto e podem coexistir. Coexistem em mim. É relevante que os cientistas levem a ciência ao público em geral: eles são afinal os portadores da curiosidade que é de todos.

CV- Vários dos seus livros são sobre a pseudociência ou a falsa ciência. Considera que a ciência está a perder espaço para as pseudociências e para as teorias da conspiração?

CF- A ciência goza de muito prestígio. As pseudociências procuram imitá-la, ou melhor «macaqueá-la», aproveitando-se desse prestígio. O facto de haver comunicações globais, proporcionadas pela ciência, permitiu a proliferação das pseudociências. Não tendo a ilusão de as conseguir  banir,  a ciência deve continuar a procurar o apoio da sociedade. Na divulgação da ciência é preciso marcar bem a distinção entre o original e uma cópia defeituosa.

CV- Qual deve ser o papel da comunicação científica na luta contra a desinformação?

CF- A ciência usa no seu método um conceito que é mais vasto do que a ciência: a racionalidade. A desinformação está ligada à irracionalidade, mas por vezes há uma certa racionalidade na desinformação: não falta quem procure dinheiro ou fama à custa da verdade. Admito que também haja alguma desinformação feita de boa fé. Não é nada fácil combater a desinformação mas não podemos desistir.

CV- Como vê o impacto das redes sociais na divulgação e na perceção da Ciência?

CF- Podem e devem ser usadas, isto é, mais usadas. Todos os meios de comunicação são úteis. Hoje a Internet alcança mais do que a televisão, que no passado foi o maior meio de comunicação de massas. Encontramos lá, no meio de muito lixo, muito bons materiais de divulgação da ciência.

CV. Como podemos aproximar a Ciência dos cidadãos e torná-la mais participativa?

CF- Pela minha parte faço o que posso. Vou a muitos lados, por exemplo a escolas como o Colégio Valsassina. Escrevo livros. Estou na imprensa, na rádio e na televisão. Faço podcasts. Estou nas redes sociais. Mas é claro que se pode sempre fazer mais e melhor.

CV- Portugal assinalou, em 2024, 50 anos de Liberdade e Democracia. O que significa para si a Liberdade?

A ciência precisa de liberdade como de pão para a boca. Em geral, nos regimes autoritários a ciência dá-se mal, porque ela exige livre circulação de pessoas, ideias e materiais. A ciência pode ser cultivada em regimes autoritários, mas o mais certo é surgirem problemas e contradições.

CV- Qual o papel da cultura científica e tecnológica na democracia portuguesa?

CF- Foi entrando na democracia portuguesa à medida que a ciência aumentava. Mas o governo está a fazer muito pouco nessa área. É preciso estar mais ligado e sociedade e inovar para conseguir mais confiança social! Os cidadãos portugueses ainda não têm suficiente consciência da ciência. Hoje em dia o conhecimento científico é a maior fonte de riqueza e os portugueses, mais ou menos novos, deveriam
 perceber que não poderão ser mais ricos se não investirmos mais na ciência e tecnologia. Nesse processo, deveríamos dar mais oportunidades aos jovens, pois é neles que há mais criatividade.

CV- Que mensagem deixa aos nossos alunos e às nossas alunas, que nasceram e viveram sempre em liberdade e em democracia?

CF- Que usem a liberdade e a democracia para expandirem os seus horizontes. Hoje em dia, no mundo global, é fácil saber mais, na escola e fora da escola. Nunca desperdicem uma oportunidade de saber mais!

CV- Muito obrigado pelo seu tempo e dedicação,

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

"EDUCAR É CULTIVAR, NÃO APENAS MEDIR DESEMPENHO"

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião

O texto que transcrevemos será de uma professora brasileira do, entre nós, designado primeiro ciclo, que acaba de se reformar. Mas poderia ser de uma professora – ou de um professor – português de qualquer nível de ensino, incluindo o superior; poderia ser de outro país... O desligamento de que fala pouco tem a ver com lugares, com contextos e com esta ou aquela profissão; tem muito a ver com a "cultura" de desligamento da realidade, de insensibilidade face ao outro, de brutalização do mundo, que se nos impõe e para a qual, de uma maneira ou de outra, contribuímos.

Hoje, um menino de 7 anos me disse que eu não servia para nada.” Assim começou meu último dia como professora primária em uma escola pública. Sem ironia. Sem raiva. Apenas uma voz indiferente, como se estivesse comentando sobre o tempo.
Você não sabe fazer TikToks. Minha mãe diz que pessoas velhas como você já deveriam se aposentar.

Eu sorri. Aprendi a não levar para o lado pessoal. Mas mesmo assim... algo dentro de mim quebrou um pouco mais.

Meu nome é professora Helena. Ensinei o 1.º ano em uma cidadezinha nos arredores de Belo Horizonte por 36 anos. Hoje, arrumei minha sala pela última vez. Quando comecei, no fim dos anos 80, ensinar era um chamado. Um laço sagrado. As pessoas confiavam em nós. Até nos admiravam. Não ganhávamos muito, mas havia respeito. E isso valia mais do que qualquer salário. Os pais levavam bolo de fubá nas reuniões. As crianças faziam cartões de aniversário cheios de erros de português e corações tortos. E quando alguém lia sua primeira frase em voz alta... Era uma alegria que nenhum dinheiro podia pagar.

Mas alguma coisa mudou. Devagar. Silenciosamente. Ano após ano. Até que um dia, olhei para minha sala e não reconheci mais o trabalho que tanto amei. Não é só por causa de tablets e lousas digitais – embora também seja. É o cansaço. A falta de respeito. A solidão. Antes, eu passava as tardes recortando maçãs de papel para enfeitar as paredes. Agora, passo preenchendo relatórios em um aplicativo de comportamento, caso algum pai resolva me processar.

Já gritaram comigo na frente de toda a turma. Não alunos  pais. Um deles me disse:
A senhora não sabe lidar com criança. Vi um vídeo no celular do meu filho.
Ele tinha me filmado enquanto eu tentava acalmar outro aluno em crise. Ninguém perguntou como eu estava. Ninguém quis saber que eu estava funcionando à base de chiclete, café e pura força de vontade.

As crianças também mudaram. E a culpa não é delas. Vivem num mundo acelerado, barulhento, desconectado. Chegam à escola sem dormir, viciadas em telas e emocionalmente despreparadas. Algumas vêm com raiva. Outros, com medo. Muitos não sabem segurar um lápis, esperar a vez ou dizer “por favor”. E esperam que a gente dê conta de tudo. Seis horas por dia. Sem assistentes. Com 28 alunos. E um orçamento que não dá nem pra bolo de aniversário.

Lembro de quando minha sala era um abrigo. Tínhamos um cantinho da leitura com almofadas coloridas. Cantávamos toda manhã. Aprendíamos a ser gentis antes de aprender a somar. E agora?
Agora me pedem para focar em “metas de aprendizagem”, “métricas”, “resultados mensuráveis”. Meu valor se mede pela forma como uma criança de 6 anos preenche bolinhas em uma prova padronizada de março.

Uma vez, um supervisor me disse:
–  Você é muito “afetiva”. Nosso município quer resultados.
Como se conectar com crianças fosse um defeito. Mas eu continuei. Porque sempre existiram momentos. Pequenos. Sagrados. Uma criança que cochichou pra mim:
–  Você parece minha vó. Queria morar com você.
Outra que deixou um bilhete na minha mesa:
–  Aqui me sinto seguro.
Ou aquele menino tímido que finalmente me olhou nos olhos e disse:
–  Li sozinho.

Agarrei esses momentos como se fossem boias salva-vidas. Porque eles me lembravam que, mesmo quando o mundo gritava o contrário, eu ainda estava fazendo algo que importava. Mas este último ano... me quebrou. A violência aumentou. Um aluno jogou uma cadeira pela sala. Outro me ameaçou:
Vou levar uma coisa de casa amanhã.
E tudo porque pedi para ele sentar.

O telefone da escola virou linha direta de emergência. A coordenadora pediu demissão em outubro. Em novembro, não havia mais professores substitutos. A exaustão virou uma névoa densa e constante. E eu? Comecei a me sentir invisível. Substituível. Como uma máquina velha em um mundo digital que já não acredita no toque humano.

Arrumei minha sala hoje. Arranquei desenhos desbotados das paredes – alguns de décadas atrás. Encontrei uma caixa de cartinhas de uma turma de 1995. Uma delas dizia:
Obrigado por gostar de mim mesmo quando fui bagunceiro.

Chorei ao ler. Porque, naquela época, ser professora significava alguma coisa. Hoje, parece uma profissão pela qual a gente precisa pedir desculpa. Não houve festa. Nem discurso. Só um aperto de mão do novo diretor, que me chamou de “senhora” e checou o celular no meio da despedida.

Esqueci minha caixa de adesivos. Minha cadeira de balanço. Minha paciência. Mas levei comigo a lembrança de cada criança que um dia me olhou com encanto, com confiança ou com alívio. Isso é meu. Ninguém pode me tirar.

Não sei o que vem agora. Talvez eu seja voluntária na biblioteca da cidade. Talvez eu aprenda a fazer pão caseiro. Ou talvez eu apenas me sente na varanda com um chá quente, lembrando de um tempo que era mais gentil. Porque sinto falta.

Sinto falta de quando ser professora era ser aliada, não alvo. Quando escola e família caminhavam juntas. Quando educar era cultivar, não apenas medir desempenho. Se você já foi professor ou professora, você entende.

(...) Fizemos [isso] pelo menino que aprendeu a amarrar os cadarços. Pela menina que finalmente sorriu depois de semanas em silêncio. Pelos que precisavam de nós de um jeito que nenhuma prova consegue mensurar. Fizemos por amor. Por esperança. Por acreditar que ainda dava para mudar o mundo.

Então, se um dia você encontrar uma professora – de ontem ou de hoje – agradeça (...). Com sua voz. Seus olhos. Seu respeito. Porque num mundo que corre depressa demais, elas ficaram. Num sistema que desmoronou, elas resistiram. E numa sociedade que as esqueceu, elas se lembraram de cada criança. Que as professoras do passado saibam que não estão esquecidas. Que as de hoje saibam que não estão sozinhas.

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

OBRIGADO, JL e JCV!

 Minha última crónica no JL:

Sou leitor fiel do JL- Jornal de Letras, Artes e Ideias desde o primeiro número, que já saiu há 44 anos. Recebi esse número por correio aéreo, pois estava a fazer o doutoramento na Alemanha. Lembro-me das extraordinárias capas dos primeiros números, da autoria de João Abel Manta (guardo esses números na minha biblioteca, embora já não tenha a colecção completa, dado o prodigioso volume do papel que foi impresso). E lembro-me do extraordinário leque de colaboradores, para além do artista gráfico. Se durante tantos anos foi publicado este jornal, único em Portugal, com a qualidade que é reconhecida por todos, isso deve-.se, sem qualquer dúvida, ao seu director desde o primeiro número, o jornalista e escritor José Carlos Vasconcelos (JCV), à frente de uma pequena, mas muito competente equipa. A ele devo também ter participado na escrita desta publicação, de início com crónicas ocasionais (lembro-me, em particular, de uma em 1996, não sei se foi a primeira, sobre António Gedeão, a quem chamei «o alquimista»). Mas, a partir de certa altura, e por um convite irrecusável do JCV, feito por via telefónica, passei a escrever regularmente na secção do jornal dedicada às ideias.

Não sei quantas minhas crónicas saíram. Mas sei que havia sempre um lembrete amável do director para evitar que eu faltasse com o costumado texto, coisa que, julgo, nunca aconteceu. Os temas tratados sempre foram de minha livre escolha, tendo eu estabelecido como linha de rumo unir as ciências com as letras e as artes. A ciência faz parte da vasta cultura humana e, no meu entender, seria bom que  a tradicional dicotomia entre ciências e humanidades se dissipasse, ou, pelo menos, que fosse um pouco aliviada. É o velho problema das «duas culturas», que o  cientista e romancista inglês Charles P. Snow abordou no final dos anos de 1950, talvez não da melhor forma. A ciência é, afinal, uma forma de humanismo, conforme fez notar Rómulo de Carvalho, o professor de Ciências Físico-Químicas que usava o pseudónimo de António Gedeão na sua produção literária e artística (sim, ele também desenhava para além de escrever).

Tenho acompanhado com mágoa as vicissitudes do grupo de publicações em que o JL se integra, da empresa Trust in New, não só devido à minha antiga relação com este jornal, mas também pela minha condição de leitor da revista Visão, um magazine que se seguiu ao  O Jornal,  semanário que acompanhei noa anos em que existiu. Estou bem ciente que os tempos são difíceis para a imprensa, dada a inexistência de um modelo de negócios que permita compatibilizar a edição tradicional com os modernos meios digitais que as ciências e tecnologias proporcionaram. O digital está por todo o lado e muitos ainda têm a ilusão que podem ter serviços noticiosos gratuitos. De facto, a concorrência que as redes sociais e a Internet em geral fazem ao jornalismo profissional é difícil de contrariar, mas há bons exemplos, pelo mundo, da complementaridade entre o papel e o digital, aproveitando as vantagens de cada um.

 Estou certo de que não sou só eu que desejo a continuação do JL. Mas dizem-me que parece não haver maneira, dada a situação do grupo e a necessidade de um grande investimento que salvaguarde o futuro da publicação com pelo menos a mesma qualidade que até agora.

O JCV comunicou-me que o JL que o leitor tem em mãos será possivelmente o último número do título. As coisas são como são e não com nós gostaríamos que fosse. Sinto uma amarga sensação de impotência. E, assim, pouco mais posso fazer agora do que agradecer. Agradecer ao JL tudo o que me deu e agradecer ao JCV por mo ter dado. Foram muitos anos, em que a leitura do JL me alimentava a mente. Sem ele, a cultura portuguesa, espalhada pelo mundo fora graças à difusão da língua portuguesa, fica mais pobre. Também eu, como outros, fiz, de vez em quando, críticas ao JL, pois julgava que aqui e ali podia ser melhor, que podia prestar mais atencão a este ou aquele autor ou  a este ou aquele assunto. Mas lembro-me de uma frase do meu amigo Onésimo Teotónio Almeida, que escreveu no JL durante bastante mais tempo do que eu: «Quando não houver mais Jl, então é que iremos ver a falta que ele nos fará». Por mim, dispensava perfeitamente esta verificação experimental. Imagino já a falta que me vai fazer pela falta que me fazia quando chegava atrasado pelo correio (nos últimos tempos demasiadas vezes, o que eu compensava com a compra no quiosque logo que lá via uma nova edição).

Foi o mesmo Onésimo que comparou o JL com o norte-americano New York Review of Books (NYRB). Leio os dois. Sei, por isso. que há grandes semelhanças e grandes diferenças entre os dois. Nas semelhanças destaco o facto de ambos tratarem a  cultura de um modo livre, abrangente e qualificado. Além disso, nos dois, as ciências são tratadas a par com as letras, artes e outras ideias (a ciência assenta obviamente em ideias, mas apenas as ideias para as quais hã um critério de validação, que é a correspondência com a realidade). Nas diferenças está o facto de o NYRB, escrito em inglês, ser mais internacional e constar maioritariamente de extensas recensões de livros, dedicando menos espaço às artes plásticas e às artes performativas. Cada vez que receber uma nova edição do NYRB (durante anos recebi-o em papel, mas agora contento-me com o digital, dada a enorme acumulação de papel), vou-me lembrar do Jl . Ainda não saiu o último número e já sinto saudades. Em todo o mundo lusófono vai haver saudades do JL!

DIÁLOGOS CRUZADOS: QUE EDUCAÇÂO PARA O SÈCULO XXI?


 Meu contributo para o livro com o título acima que saiu na Edições Esgotadaa, cvom coord. Luísa Paolinelli e Mário Santos, em 2024.  Documento um diáloigo on-line intitulado «Contra a Indiferença" no tempo da Covid, com a coordenadora e com José Eduardo Franco:

O que é que a educação permite – ou pode permitir – hoje? 

 A educação sempre se apropriou da tecnologia existente em cada tempo, não é só hoje que o faz. Isso é uma coisa maravilhosa se permite melhorar a educação. É possível, agora, por exemplo, que professores e alunos estejam próximos mesmo quando distantes. A intervenção do José Eduardo Franco foi tão inspiradora, que retomo a questão básica do dever da educação: porque é que devemos educar, porque é que temos a responsabilidade de educar, porque é que não podemos passar sem educar? Há também a questão dos conteúdos e dos dilemas de escolha, de que falarei a seguir. 

Seja-me permitido reafirmar o básico. Como cientista, gosto sempre de começar por aí. A educação existe desde que a humanidade existe. A humanidade inventou a educação e a educação trouxe-nos até aqui. Sem educação a humanidade regride, definha. A educação é um elemento essencial da humanidade. Num certo momento da nossa história, quando Luísa Antunes Paolinelli e Mário Fortes108 o conhecimento construído pela humanidade, em virtude da educação, começou a ser extenso e complexo, já não podia ser todo transmitido pela comunidade. Então, algum desse conhecimento passou a ser transmitido por aqueles que o dominavam, formando progressivamente uma nova organização social, que veio a designar-se por “escola”. Na Grécia Antiga, a escola – não tendo uma única concretização, mas diversas –, já apresentava, no essencial, a configuração que lhe reconhecemos hoje. Por exemplo, a relação mestre-discípulo, que entendo ser o fundamental da escola, ocupa aí um lugar central, o mesmo acontece na Idade Média, ainda que com características diferentes, e no Renascimento, quando se deu a recuperação de alguns dos valores da Antiguidade Clássica. No Iluminismo, no séc. XVIII, há uma afirmação muito forte do valor de educação. Devemo-la a um dos maiores filósofos de sempre, Immanuel Kant. Num pequeno livro intitulado Sobre a Pedagogia, que continua atualíssimo neste tempo global, Kant, disse, de forma lapidar, o que deveria ser a educação moderna. Todos saberão que o filósofo foi um homem global sem nunca ter saído da sua cidade, Königsberg, quer dizer, ele tinha o mundo dentro da sua cabeça sem nunca o ter visitado. Considero que não podemos pensar o mundo sem o pensamento que ele nos deu dele. Ele escreveu o que passo a ler: “O homem só consegue ser homem através da educação [quer dizer, não há homem sem educação]. Não é mais do que aquilo que a educação faz dele [repito porque tem de soar aos ouvidos de hoje: o homem não é mais do que aquilo que a educação faz dele]. É importante sublinhar que o homem é sempre educado por outros homens, os quais por sua vez também foram educados.” Por outras palavras, e estou agora a comentar Kant, a educação é uma prática continuada: a essência humana está lá, sempre esteve, mas a educação acrescenta, modifica. Continua Kant: “A educação é uma arte cuja prática deve ser aperfeiçoada ao longo das gerações”. É isso que, com pontos altos e baixos, umas vezes bem e outras vezes mal, tem sido feito; o resultado é o estado civilizacional em que nos encontramos. Educar é fácil? Não é. Kant disse, na mesma obra: “a educação é o problema maior e mais difícil que se pode colocar ao homem. Com efeito, as luzes dependem da educação e a educação depende das luzes.” Quer dizer, há aqui uma dupla implicação: nós não podemos ter certos conhecimentos sem a educação e não podemos ter educação sem ter certos conhecimentos. A educação escolar é a condição mais importante do conhecimento a que damos valor. Sobretudo a partir do tempo das Luzes, nunca mais deixámos de poder abdicar desta implicação básica entre a educação e o conhecimento. A humanidade nunca mais deixou de ter a questão da educação. É uma questão do nosso destino humano. 

Vou saltar por cima do séc. XIX e mencionar dois filósofos do séc. XX, que uma pedagoga minha amiga me recomendou, também alemães, e que têm para o tema aqui em debate especial importância. Os dois viveram a experiência trágica da Segunda Guerra Mundial. Uma é Hannah Arendt, que passou por Portugal a caminho dos Estados Unidos, onde produziu boa parte da sua obra. Num dos seus grandes livros – A Condição Humana – consta o texto A crise da educação, onde, desassombradamente, diz: “A educação é o ponto em que decidimos se amamos suficientemente o mundo para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fossem a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é também onde decidimos se amamos as nossas crianças o bastante para não as expular de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as, em vez disso, com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum.” Por outras palavras, a educação é a maneira – a única maneira – que temos de levar cada ser humano a integrar a herança da humanidade e, assim, poder expressar-se de modo único no mundo e, também, de manter e melhorar o mundo. O mundo já existia antes de as crianças nascerem, mas, para elas, o mundo é sempre novo, e é no mundo que elas descobrem que devem ser desafiadas a pensar. O imperativo de Kant que marcou a era iluminista era “atreve-te a pensar”. A educação deve propiciar esse atrevimento que é colocar questões sobre o mundo, que incluem também questões sobre nós, porque somos parte do mundo, sempre numa perspetiva de gradual autonomia de pensamento dos educandos. É muito claro que Arendt estudou Kant, bem como outro grande mestre muito anterior: Santo Agostinho

 Um outro filósofo alemão do tempo da Segunda Grande Guerra, que era judeu como Arendt e que, como ela, fugiu do nazismo, foi Hans Jonas. Jonas publicou em 1979 (na altura em que eu fui para Alemanha fazer o doutoramento, o que explica o meu lado da cultura alemã), o livro O Princípio da Responsabilidade. Ele diz aí que a educação, para ser consequente, tem de levar à ação. Repare-se que a expressão de Arendt “se amamos suficientemente o mundo” vai no sentido de amor mundi, de “amar o mundo”, de Santo Agostinho. Este doutor da Igreja declarou a necessidade de estarmos numa boa relação com a Terra, que é a parte do Universo que habitamos. Por sua vez, Jonas falou da necessidade de agirmos de forma responsável nela; inspirando-se no imperativo moral de Kant, afirmou o seguinte: “Age de tal maneira que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a preservação da vida humana genuína.” Quer dizer, nós temos a responsabilidade da continuação da espécie, porque somos, que saibamos, os únicos no mundo que conseguem pensá-lo: se, por qualquer razão, desaparecêssemos, deixaria de haver consciência do mundo, isto é, o mundo não teria quem o pensasse. Temos, portanto, a obrigação de sobrevivência não apenas perante nós próprios, como seres individuais e coletivos, mas perante a própria vida, que inclui a vida animal e vegetal. É uma questão muito atual educar para respeitar o mundo: ao contrário do que se passou outrora, neste tempo em que o mundo está a sofrer o impacto das nossas ações, temos de pensar empenhadamente como podemos não comprometer as condições para que a vida continue sobre a Terra. Este é um problema que não podemos adiar, um problema que temos de resolver a breve trecho. 

Quanto à questão que me foi colocada sobre a eventual oposição ciência-humanidades, não considero que seja muito pertinente. Tal como está expressa, é uma falsa questão, porque dá a entender que as ciências não são parte das humanidades. Ora a ciência é um empreendimento humano. É tão humano como outra atividade humana qualquer. Não há nada de desumano em fazer matemática e ciência. Já os antigos gregos, os mesmos que faziam filosofia, cultivavam a ciência – Aristóteles não se sentiria menos humano quando escreveu a sua Física do quando escreveu a sua Poética; e o mesmo se pode dizer de qualquer autor renascentista com uma vasta mundivisão, como Leonardo da Vinci;  ou Voltaire, o filósofo do Iluminismo que levou a física de Newton da Inglaterra para França. A pergunta não faz muito sentido. Fernando Savater, o filósofo espanhol, que está vivo felizmente (para não falar só de filósofos mortos), salientou que o grego e o latim são importantes já que permitem uma agilidade de pensamento, mas acrescento que a matemática e a física também o são. O que têm o latim e o grego que possam excluir a matemática e a física? Pelo contrário, a matemática usa caracteres gregos e a nomenclatura da física recorre a raízes gregas e latinas… 

Por outras palavras, a educação tem de ser completa no sentido de que tem de incluir as ciências físicas e naturais  e as ciências humanas, sem esquecer as artes e a expressão física. Percebo, porém, a origem da pretensa dicotomia. Vivemos numa sociedade que faz a apologia do utilitarismo, orientada para a produção e consumo, pelo que as questões da vida prática são tratadas por uma “filha” da ciência, a tecnologia. Então, confunde-se ciência com tecnologia. De facto, atualmente, não se pode fazer tecnologia sem ciência, mas as duas não se identificam. A confusão entre as duas deve ser evitada. Eu posso produzir pensamento sobre o Universo, por exemplo sobre a matéria escura e a energia escura (dois dos maiores enigmas atuais), sem nenhuma intenção – nem sequer possibilidade – de ter qualquer tipo de intervenção técnica. Todavia, numa sociedade dominada pelo fazer, numa economia que se baseia na produção e no comércio, identifica-se muito apressadamente ciência com tecnologia. Ora, os grandes espíritos, quer os antigos, quer os atuais, sabem que ciência e tecnologia se tocam – não estou a dizer que não se tocam – mas tocam-se de uma maneira que não é essencial. Quando se diz que a tecnologia está a prejudicar as humanidades, tenho alguma dificuldade em concordar, pois isso significaria uma grande debilidade das humanidades. Acho que as humanidades permanecem e permanecerão, aproveitando para seu benefício o que a tecnologia lhes oferece. Se vemos no mundo contemporâneo sinais de que o latim ou o grego, a filosofia e a história, etc. estão a ser preteridas, deve também reparar-se que a minha disciplina – a física teórica – não o está menos. Eu, físico teórico, estou do lado das humanidades, estou do lado do saber abstrato, do saber inútil. E também me junto àqueles que cultivam o saber pelo saber, o saber desinteressado, o saber que é capaz de avançar questões sem pensar em aplicações. 

Para abreviar, o que é que a educação permite – ou pode permitir – hoje? A educação permite dar às pessoas que povoam o mundo o melhor do nosso passado, o melhor da tradição, o melhor da nossa herança para que haja um futuro melhor. Só podemos dar o passado para ter esse futuro. Vamos ter futuro, mas este terá de ser construído por nós. E não poderemos ter futuro se não conhecermos o passado, se não tivermos munidos do melhor do nosso passado. Temos de saber quem foi Galileu e temos de saber quem foi Montaigne. E temos de saber também quem foi Descartes, que estava com os pés nos dois lados, tanto era matemático e físico, como filósofo e teólogo. Portanto, a escola onde se estudam esses e muitos outros génios da humanidade, continua a ser essencial, como sempre foi. Diria até que é cada vez mais relevante, porque cada vez há mais questões para resolver, algumas das quais muito complexas, em particular nesta altura a questão da sustentabilidade do planeta. O que temos de fazer? Temos de dar o melhor de nós na educação, dar o melhor de nós no dia-a-dia da escola, porque a escola é o modo que a sociedade instituiu para  implementar a educação do que é sofisticado e difícil. A escola continua imprescindível, porque continua a ser a instituição por excelência da humanidade para fazer humanidade.


O futuro das sociedades modernas 

 Quando me pedem para comentar as possibilidades que podem acontecer, sei que corro sempre alguns riscos. Aliás, qualquer pessoa que fala do futuro arrisca-se a errar, quer dizer, adivinhar o futuro é impossível. Nós não sabemos o que vai acontecer. Quem diria, no final do ano passado, que este ano estaríamos a viver a situação de pandemia? As pessoas, com base na pandemia, estão agora já a projetar cenários. Esses cenários são, em geral, desejos das próprias pessoas. Essa atitude é bastante natural. Nós projetamos aquilo por que ansiamos, mas o certo é que ninguém sabe como será o mundo daqui a um ou dois anos e muito menos daqui a dez ou vinte anos. Não fazemos ideia nenhuma. Apesar dessa incerteza ou mesmo por causa dessa incerteza, a educação escolar continua a ter um papel. E é um papel muito forte. 

Permitam-me que seja crítico de algum rumo deste mundo cuja economia, com a ajuda da técnica, se globalizou muito rapidamente. O dinheiro circula muito mais rapidamente do que as pessoas. Ganha-se, aliás, dinheiro só com a circulação de dinheiro, por vezes sem acrescentar nada, sem prestar quaisquer serviços: ganha-se dinheiro simplesmente ao movê-lo de um lado para o outro. A economia do mundo decorre sem grande controlo. Ora, a economia está relacionada com a educação e nem sempre da melhor maneira. Não é por acaso que o Banco Mundial, por exemplo, trata de problemas de educação e estabelece objetivos para a educação. Não é por acaso que as métricas (a Luísa falou  da questão das classificações) comparativas da educação dos vários países sejam criadas pela OCDE – a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico – que anda a par com o Banco Mundial. Isto significa que, de uma maneira ou de outra, por vezes de maneiras muito subtis, a educação escolar pública – noto o carácter “público” – é colocada ao serviço da economia, podendo nós ter dúvidas acerca dos princípios de justiça social subjacentes. E podendo nós ter dúvidas se o desenvolvimento de que se fala é apenas para uns e não para todos. Vivemos num mundo ferido por profundas desigualdades. Daí que apareçam esses sentimentos da falta de consciência e moral.

Curioso, nesse processo de domínio da educação pela economia,  é que os professores tenham perdido boa parte da autoridade que tinham. Uso aqui a expressão “autoridade” no sentido que Arendt lhe deu: ser “autor”, por ter dado uma interpretação única ao conhecimento de que beneficiou, e que oferece aos mais jovens para que eles construam a sua “autoridade”. Os professores, dizia eu, têm de cumprir objetivos, que são embrulhados em frases bonitas, onde consta destacada, por exemplo, a palavra “humanismo”. Por vezes não há nada de humanista nos objetivos que são determinados e que parecem estar afinados para excluir o pensamento abstrato, aquele pensamento que nos conduz ao que de melhor há na condição humana. Esses objetivos, a que agora se chamam “competências transformadoras”, estão por todo o lado do mundo, incluindo em Portugal.

A estrutura pretensamente teórica que é invocada desvaloriza o conhecimento, o que interessa já não é o saber, mas o fazer. Nessas competências – definidas de uma forma muito equívoca, de modo que ficamos sem saber o que realmente são –, os conhecimentos estão lá, mas como ingredientes práticos para resolver problemas do quotidiano, tendo perdido a dignidade que tinham. Incluem ou remetem para as emoções, os afetos, o trabalho de grupo, a aprendizagem ativa... coisas que fazem um belo ramalhete, mas julgo que não serão relevantes sem um conhecimento sólido das ciências, das humanidades, das artes, da motricidade. Quando se fala, por exemplo, de passarinhos da Primavera, temos de ter uma ideia sobre aves e sobre estações do ano, o que não nos deve impedir de gozarmos os chilreios. E não estou apenas  a falar de conhecimento científico. Por vezes, fala-se em passarinhos na Primavera sem conhecer o que a grande literatura já disse sobre isso. Por outras palavras, há um apagamento do saber em nome de outras coisas que não conseguimos perceber bem o que são, mas do que percebemos podemos conjeturar que não contribuem nem apara o  bem dos mais jovens, nem do mundo. Um responsável do PISA – Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes –, da OCDE, disse em Portugal, como diz noutros países, que não é necessário dar conhecimento aos alunos, pois lhes bastará usar o Google, que tem respostas para tudo. A ideia é que agora está tudo nos telemóveis, está tudo nos computadores e, portanto, só temos de os consultar. Ora o Google é um grande “burro”, não sabe nada, quer dizer, se eu quiser saber alguma coisa o Google poder-me-á ajudar, mas tenho primeiro de saber alguma coisa. Se eu não souber nada, o Google será absolutamente inútil. O Google não pode levantar as questões por mim, não pode antecipar nenhuma das minhas questões… 

As orientações da OCDE estão cheias de metas, uma noção que tem muito a ver com a economia, à qual está subjacente a questão da produtividade. Trata-se, no fundo, de fazer uma escola – ou algo parecido com ela – que não pense nem leve a pensar. Os professores não são chamados a pensar e os alunos muito menos. Como é que os alunos vão, com essa escola, conseguir pensar? 

Portanto, estamos perante perigos vários, e alguns deles estão relacionados com a globalização económica. Há aspetos positivos na globalização – partilho dos ideais do José Eduardo Franco sobre um melhor mundo global -, mas temos de encontrar, entre os diversos conceitos de globalização, o que está de acordo com os princípios éticos que assistem à educação. Agora a questão é como vamos afirmar esses ideais na vida, em particular, como  vamos incorporá-los na escola? Voltando a Hannah Arendt – cuja vida, como a nossa, teve as suas contradições: sendo judia perseguida pelo nazismo teve um caso amoroso com Martin Heidegger, um reputado nazi (mas atenção, não deixou de ser um grande filósofo por ser nazi) – no ensaio que referi – A Crise da Educação – escreveu: “O papel da escola consiste em ensinar às crianças o que é o mundo e não lhes inculcar a arte de viver. Dado que o mundo é velho, sempre mais velho do que eles, o facto de aprender  está inevitavelmente voltado para o passado, sem ter em consideração a proporção da nossa vida que se dedicará ao presente.” O que quer isto dizer? Nós falamos de futuro – é essa a tónica da educação – quando não sabemos nada do futuro. Isto não quer dizer que a escola negue a preparação para o futuro, efetivamente tem de a assegurar, e sabemos que, nesse futuro, seja ele o que for, precisamos de pessoas razoáveis, sensatas, dialogantes, que não tenham uma atitude rígida, dogmática, mas isso não significa que as tornemos mão-de-obra servil, não pensante. A escola devia ter o propósito iluminista, kantiano, de “ter o atrevimento de pensar”. Temos de ter o atrevimento de pensar a escola, a escola nos seus fundamentos e propósitos. A escola está, neste momento de globalização, ameaçada pelo grande perigo de afastar o pensamento; compete-nos evitar as suas consequências mais funestas. 

A escola ideal 

A escola, a educação que desde há milénios lhe está confiada, é um problema que temos de enfrentar. Não há uma solução para ele que seja imediata e definitiva. Há um princípio da escola, um propósito da escola, que eu considero intemporal, que é a garantia do humano. Os seres humanos constroem-se com a ajuda da escola. Os seres humanos não seriam os mesmos, não serão os mesmos sem a escola – eu, em particular, não seria o que sou se não tivesse andado na escola. Eu sou eu, claro, mas isso resulta em primeiro lugar dos meus pais (que me deram os genes), em segundo lugar dos meus professores (que me deram o conhecimento do mundo, que não estava nos genes) e só em terceiro lugar de mim próprio (que procurei o conhecimento do mundo). Em cada momento histórico, temos de construir a escola que é melhor para construir o ser humano e para a odisseia da humanidade. Não consigo imaginar como será a escola de amanhã. E o que eu critico é o facto de algumas pessoas hoje quererem alinhar a escola por um projeto de sociedade a que chamam “Quarta Revolução Industrial”, um conceito que é mais ou menos quimérico. Não digo que o mundo de amanhã não vai ser diferente. Claro que vai. Mas eu não sei quais vão ser as diferenças e a escola tem de ter guardiã da tradição que permite enfrentar o futuro. A escola tem de ser, eu vou arriscar dizer – espero que esta seleta audiência não me crucifique por dizer isso –, conservadora. Arendt disse isto e não foi bem vista nos Estados Unidos há seis décadas. Se a escola deixar de ser conservadora, deixará de cumprir a sua função essencial. A escola tem de dar o melhor do passado para termos um futuro melhor. Na escola ideal vamos sempre colocar a questão de melhorar a escola. Daqui a dez anos vão-me colocar de novo essa questão e não haverá ainda uma solução, mas os princípios que estou agora a enunciar, os princípios de uma escola que seja uma garantia da história humana, poderão ser repetidos. 




TRANSIÇÃO DE FASE

Meu contributo para o volume «O que se passa na infância fica na infância", João Paulo Gaspar e Paulo Guerra (coords.), Editora d'Ideias,  2025:

Os físicos chamam «transição de fase» às mudanças de propriedades de um sistema, graças ao rearranjo da estrutura, quando muda a temperatura (ou a pressão). Por exemplo, a água passa da fase sólida para a líquida a zero graus Celsius à pressão normal e da fase líquida para a gasosa a cem graus. No primeiro caso, o gelo funde e. no segundo, a água ferve. Uso a metáfora das transições de fase – há quem lhes chame mudanças de estado – para, na minha descrição biográfica, designar a minha entrada na escola primária, aos seis anos, e a saída da escolaridade aos 26 anos, com a conclusão do doutoramento em Física Teórica na Alemanha. Foram, no total, vinte anos de escola, quase um terço da minha vida até agora. Concentro-me, neste apontamento, no primeiro dos referidos momentos, talvez o mais decisivo na minha infância.

Nascido onde nascem muitos portugueses a maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, vivi os meus primeiros cinco anos bem acomodado no conforto do lar. O meu pai trabalhava no Quartel da GNR, na Ajuda, enquanto a minha mãe, doméstica como se dizia na altura, tomava conta de mim e do meu irmão, dois anos mais novo, num modesto apartamento de um segundo andar da Calçada do Galvão. Dada a proximidade, não admira que o meu baptismo tenha sido no Mosteiro dos Jerónimos e que  sítios de brincadeira fossem os jardins a Praça do Império, frente ao Mosteiro, e o então chamado Jardim Agrícola do Ultramar, mesmo ao lado. Lembro-me de experimentar a emocionante experiência do eco no túnel que faz a ligação ao Padrão dos Descobrimentos e de correr por cima da grande Roda dos Ventos, fronteira ao monumento. Não andei no jardim de infância, pela simples razão de essa instituição rarear na época. Tinha alguma habilidade para o desenho: lembro-me, ainda que vagamente, de desenhar o casario de Lisboa sobranceiro ao Tejo que se via da minha janela. E lembro-me de me ter sido oferecida uma caderneta de cromos, acho que da Bela Adormecida, que foi talvez o meu primeiro livro (ou terá sido a Cartilha Maternal de João de Deus, que havia lá em casa?). Foi uma infância feliz, sem acontecimentos de maior. Como incidente, que não foi felizmente acidente, disseram-me mais tarde os meus pais, de ter por iniciativa própria administrado uma sobredose de um medicamento ao meu irmão que estava doente. Valeu-me a mim e a ele uma confissão pronta.

A memória, quando existe, é uma grande enganadora. E eu nunca tive tendência para a exercitar, olhando muito para o retrovisor da vida. Mas um acontecimento da infância que me ficou marcado na mente foi a entrada na Escola Primária da Voz do Operário, que ficava na Ajuda (não confundir com a escola homónima, que ficava na Graça). O meu pai levou-me pela mão, confiando-me a uma senhora professora, já com uma certa idade. Naturalmente que chorei baba e ranho, porque o meu progenitor me estava a deixar num lugar que me era estranho, entregue a pessoas que eu não conhecia. Mas, se de início estranhei, depois entranhei. Com a facilidade de quem já sabia ler e escrever (ajuda do meu pai, que na altura só tinha a quarta classe), integrei-me rapidamente no meu novo ambiente, de modo a que, passado um ano, recebi um diploma da primeira classe que ainda hoje conservo. Precisei desse documento porque, passado um ano da minha entrada na escola, o meu pai recebeu ordem de marcha para Coimbra, pelo que tive de ser transferido para a Escola dos Olivais, nessa cidade, onde fiz no tempo certo a quarta classe, logo seguida do exame de admissão aos liceus e da matrícula no Liceu Normal D. João III.

Passar de casa para a escola foi, para mim, uma verdadeira descontinuidade, uma transição de fase. Nem o meu pai nem a minha mãe (que tinha só a terceira classe) sabiam quem eram Albert Einstein ou Leonardo da Vinci, tendo sido os meus professores do liceu que me apresentaram esses geniais personagens. Mas, antes do ensino secundário, foi preciso perfazer o primário. Os meus pais deram-me os genes e a primeira educação. Depois confiaram-me aos professores: confiar é a palavra exacta, pois o meu pai se ufanava de nunca ter falado com os professores por minha causa. Como eles confiavam, eu também confiei. Foram os meus professores, a começar logo na escola primária, que me apresentaram o melhor do mundo e da humanidade. Estou-lhes extraordinariamente grato: não seria nada do que sou – ou melhor, não seria nada – sem eles. A tristeza do primeiro dia de escola rapidamente foi ultrapassado pela alegria da aprendizagem sob a exigente tutela da minha professora e do convívio pleno de traquinices com os meus colegas. Cada dia em que voltava a casa tinha o cérebro mais crescido. Tal como as moléculas de água, quando a temperatura aumenta, eu estava cada vez mais desenvolto, quer dizer, mais livre.


Carlos Fiolhais, 68 anos

Nota biográfica

Sou professor de Física emérito da Universidade de Coimbra, com o doutoramento concluído em 1982 na Universidade de Frankfurt/Main, na Alemanha.  Dirigi a Biblioteca da Universidade de Coimbra. Tenho divulgado a ciência por diversos meios: livros (o último é Toda a Física Divertida, na Gradiva), imprensa, rádio, TV e Internet.


CIÊNCIAS E ARTES NA ESCOLA



 Meu capítulo do livro Artes e Educação,. Antologia de autores portugueses saído na Imprensa Nacional em 2024 com coord. António Carlos Cortez: 

A dicotomia entre ciência e artes foi discutida na famosa polémica que se seguiu à conferência que o físico-químico e romancista inglês Charles P. Snow proferiu em 1959 em Cambridge, no Reino Unido, sob o título As Duas Culturas [1]. No mundo do pós-guerra, claramente dominado pela ciência e pela tecnologia, Snow tinha chamado a atenção para a separação cada vez mais arreigada entre a ciência e a tecnologia, por um lado, e as humanidades, incluindo as artes, por outro, protestando talvez de um modo exagerado contra os “intelectuais literários” que ignoravam a ciência e tecnologia.

 Pese embora todas as numerosas e por vezes bem sucedidas tentativas de aproximação, tal dicotomia permanece tão entranhada nos dias de hoje que alguns alunos não podem deixar de ser vítimas dela. Há casos de conflitos interiores quando são obrigados a fazer uma escolha, no ensino secundário em Portugal, entre “ciências” e “letras”. Nesse nível de ensino, é assaz reduzido o trabalho interdisciplinar e, no nível do ensino superior, as escolas continuam a dificultar a interacção entre as várias disciplinas, aprofundando cada vez mais a especialização disciplinar. Deste modo, poucos alunos se poderão aperceber das fecundas intersecções e confluências entre ciências e artes.

 Acontece, porém, ao contrário do que muitos julgam, a ciência é uma forma de humanismo, pois é parte integrante da vasta e diversificada cultura humana. De facto, vendo bem, não há “duas culturas”, mas uma só, embora plural nas suas dimensões. Essas duas dimensões do espírito humano, embora servindo-se de métodos diferentes, tentam estabelecer relações, juntar o que está separado numa visão o mais coerente possível. As duas procuram sentido, encontrando-o, mesmo onde e quando ele não parecia presente. Esta comum busca de sentido é, como veremos, ajudada pela estética. As ciências, orientadas para a realidade física, na qual o ser humano evidentemente se inclui, dispõem de um método próprio para observar as regularidades que a Natureza exibe e as tecnologias, idealmente ao serviço da vida humana, permitem melhorá-la com base no conhecimento científico disponível. Por seu lado, as humanidades, não estando sujeitas a esse espartilho, não deixam por isso de estar ligadas à realidade, até pelo simples facto de serem produto do cérebro humano, que é um lugar da Natureza. As duas usam a imaginação para conceber mundos [2], sendo a diferença que os cientistas têm de imaginar como é o mundo real – começam por colocar hipóteses a respeito do funcionamento do mundo, cuja veracidade vão depois averiguar – ao passo que os artistas podem, mais livremente, ser criadores de mundos – embora a sua liberdade não seja total, porque eles vivem e pensam “neste” mundo. O facto de as ciências e as humanidades serem amiúde guiadas por critérios estéticos é um aspecto unificador deveras relevante que costuma ficar esquecido. Com efeito, não são só os artistas que buscam o belo, os cientistas tentam também descobrir a harmonia ou beleza do mundo, que pode ser entendido como a coerência das partes entre si e destas com o todo [3]. O poeta romântico inglês John Keats escreveu os seguintes versos no final de “Ode a uma Urna Grega” (1819): “Verdade é beleza, beleza é verdade/ –  e isso é tudo que conhecemos na Terra, e tudo o que precisamos de saber” [4]. É curioso que essa identificação entre verdade e beleza tenha sido proclamada em pleno romantismo, quando a ciência e tecnologia (esta última pujante com o advento da Revolução Industrial) e as humanidades estavam ou pareciam estar em colisão. Mas é muito anterior o lema latino Pulchritudo splendor veritatis, “A beleza é o esplendor da verdade”. O homem de ciências e o homem das artes são, afinal, hoje, tal como na Antiguidade Clássica, quando a racionalidade nasceu, e no Renascimento, quando a ciência moderna emergiu, o mesmo homem.

 Pouco antes da palestra de Snow, o matemático e poeta britânico de origem polaca Jacob Bronowski (que foi também histo­riador e divulgador de ciência, dramaturgo e crítico literário) enfatizou, numa palestra proferida no MIT em Boston, nos Estados Unidos, em 1953 e publicada três anos mais tarde no livro Ciência e Valores Humanos [5], a profunda unidade entre ciência e arte, por partilharem uma ânsia de unidade num mundo plural e aparentemente díspar. Bronowski ilustrou a unidade da cultura citando o poeta, crítico e ensaísta inglês Samuel Coleridge, contemporâneo de Keats:

Quando Coleridge tenta definir a beleza, regressava sempre a um único pensamento profundo: a beleza, disse, é a «unidade na variedade». A ciên­cia não é nada mais do que a procura da descoberta da unidade na desorde­nada variedade da natureza – ou, mais exactamente, na variedade da nossa experiência. A poesia, a pintura, as artes, são a mesma procura, na frase de Coleridge, da unidade na variedade. Cada um, à sua própria maneira, procura as semelhanças sob a variedade da experiência humana.”

Não se pode dizer que essa mensagem tenha na altura sido interiorizada em círculos maiores do que que a elite mais atenta às questões culturais. Mas, em obras como A Ascensão do Homem [6], uma história popular da civilização humana, Bronowski esforçou-se no sentido da sua propagação.

 

Rómulo de Carvalho

 Bronowski teve contemporâneos em Portugal que, estando ou não conscientes da discussão cultural no mundo anglo-saxónico, partilharam da sua ideia da profunda unidade entre ciências e artes. Havendo outros, um dos nomes maiores nesta junção entre nós das “duas culturas” foi o professor de Física e Química do ensino secundário e escritor Rómulo de Carvalho (poeta, contista e dramaturgo sob o nome de António Gedeão). A sua obra poética ilustra de um modo exemplar as possíveis relações entre arte e ciência [7], as quais muito dificilmente ele poderia pôr em prática nas escolas onde foi professor, dadas as limitações que eram os programas oficiais, as metodologias impostas e os livros únicos. Prudentemente, como revela a própria criação de um pseudónimo (surgido em 1956), ele próprio separou os dois mundos que coabitavam dentro de si. No entanto, no artigo “Ciência e Arte”, publicado na revista Palestra no Liceu Pedro Nunes em Lisboa, em 1958 [8], Rómulo de Carvalho, que nessa altura ensinava nesse liceu, escreveu:

“No nosso sentimento (e o tema é para discussão) o artista e o cientista são dois destinos paralelos embora em fases dispares da sua evolução. Ambos desempenham na sociedade o mesmo papel de construtores, de descobridores, de definidores: um, do mundo de dentro; outro, do mundo de fora. Precisemos melhor a questão. Não estamos apenas a afirmar (o que certamente teria o aplauso geral) que o artista e o cientista são pessoas igualmente estimáveis, merecedoras do mesmo respeito e ambos imprescindíveis na sociedade. Estamos a querer exprimir mais do que isso, que um e outro ocupam lugares de igual necessidade, que aqueles mundos de dentro e de fora são de transcendência equivalente, que ambos esses mundos exigem a permanente busca, a orientada investigação que, em nossos dias, é considerada apenas apanágio da Ciência.”

 

A unidade entre ciência e poesia voltou a ser salientada por Rómulo de Carvalho, numa entrevista que deu, em 1991, terminada a sua carreira escolar e já perto do final da sua vida [9]. Quando interrogado sobre a referida dicotomia entre ciência e poesia respondeu:

“Há alguma dicotomia? Não há nenhuma! A pessoa encara a poesia como encara a ciência como encara a arte, como encara qualquer coisa, não há incompatibilidade. [...] Quer dizer, há uma base de onde parte tudo o que é um certo entendimento do que nos rodeia, na busca da melhor maneira de expressar aquilo que se sente. Tanto pode ser num campo como noutro. [...] É que na poesia estou a falar comigo. Enquanto na minha actividade profissional, estou a falar com os outros. “

 E, mais à frente na mesma entrevista, acrescentou:

“Bem, [] repudio até essa dicotomia. Nós estamos muito viciados, nós ocidentais, [...] nós estamos todos muito viciados pela cultura greco-latina... todos... e continuamos a ver na poesia aquela coisa extraordinária, mítica e mística, aquele valor extraordinário que os gregos e os romanos atribuíram aos poetas. É claro que era uma época em que a ciência não tinha peso nenhum. Embora hoje nós saibamos que eles tecnicamente tinham coisas muito valiosas – muito interessantes, muito valiosas, muito bem imaginadas. Mas, naturalmente, não havia ninguém que pensasse pôr uma coroa de louros na cabeça dum técnico. Isso ficava reservado para os poetas.”

 

Como estamos hoje nas escolas portuguesas num tempo pós Gedeão? Parece claro que, apesar de todas as citações a esse e outros autores que souberam conciliar ciências e humanidades (a começar logo pelo nosso maior poeta, Luís de Camões, cujos primeiros versos impressos surgiram num livro de ciência, os Colóquios dos Simples, de Garcia de Orta [10], e cuja obra maior, Os Lusíadas, é um repositório de conhecimentos de astronomia, meteorologia, química e botânica [11]), a actual formação de professores não ajuda a que uma ligação fértil entre ciência e artes se concretize no plano pedagógico. Continuam a existir sérios entraves como a organização e práticas escolares. Por isso, que muitos jovens têm de descobrir, fora da escola, as conexões da cultura humana que a escola lhe esconde. Para as pessoas formadas nas ciências – e, em geral com uma preparação nas artes reduzida – será mais viável fazer um percurso auto-didacta em áreas das artes: por exemplo Jorge de Sena, autor do prefácio para a Poesia Completa de Gedeão, que ajudou na afirmação deste autor no mundo literário, formou-se em engenharia civil (curiosamente tinha aluno de Rómulo de Carvalho). Só para dar alguns exemplos avulsos, alguns poetas como Sena têm formação científica, como Ruy Cynatti, que era antropólogo, José Blanc de Portugal, que era meteorologista, e Eugénio Lisboa, que é engenheiro electrotécnico. para já não falar dos numerosos poetas médicos, como Miguel Torga, Fernando Namora, Bernardo Santareno, António Lobo Antunes, Jorge de Sousa Braga, João Luís Barreto Guimarães e António Oliveira [12]. Em contraste, será mais difícil às pessoas formadas nas humanidades, com mais reduzida preparação matemática, a entrada no mundo da ciência.    

O exemplo de Werner Heisenberg

Outras escolas que não a nossa têm sabido comunicar uma formação humanista integral, a qual, partindo das nossas raízes greco-latinas, e passando pelo Renascimento, transmite aos estudantes o que tem sido a “ascensão do homem.” Um bom exemplo dessa formação é aquela que os liceus do espaço germânico proporcionavam no século XX, como tão bem revelam as biografias e obras dos autores da teoria maior do século XX que foi a teoria quântica, a teoria que, numa grande visão unificadora, explica tanto os átomos como as estrelas. Após os passos iniciais dados por uma plêiade de físicos como Max Planck, Albert Einstein, Niels Bohr e Louis de Broglie, essa teoria ficou completa, na forma que hoje conhecemos e aplicamos, em 1926, com os notáveis trabalhos, independentes mas complementares, do físico alemão Werner Heisenberg, Prémio Nobel da Física de 1932, e do físico austríaco Erwin Schrödinger, Prémio Nobel da Física de 1933, o primeiro autor de uma “mecânica de matrizes” e o segundo de uma “mecânica de ondas”, que são apenas duas maneiras diferentes de formular a mesma doutrina.

Uma vez que o humanismo de Schrödinger já foi valorizado noutro lado [13], valerá a pena deixar aqui algumas notas sobre Heisenberg. Bom apreciador de música clássica (também pianista) e profundo conhecedor da filosofia, a começar desde logo nos clássicos greco-latinos, Heisenberg conhecia o dito Pulchritudo splendor veritatis, para a qual chamou a atenção no seu livro Across the Frontiers [14]:

“O significado da beleza para a descoberta da verdade tem sido reconhecido e enfatizado em todos os tempos. O lema em latim Simplex sigillum veri – ‘O simples é o selo da verdade’ – está inscrito em letras garrafais no auditório de Física da Universidade de Göttingen, como uma exortação àqueles que descobririam novidades; mas outro lema em latim, Pulchritudo splendor veritatis, ‘A beleza é o esplendor da verdade’ – pode também ser interpretado como querendo dizer que o investigador reconhece a verdade, primeiro, por seu esplendor, pelo modo como ela brilha.”

O seu ponto de partida são as ideias pitagóricas, que desembocaram no platonismo, respeitantes à ligação entre a matemática e a música. Essa relação seria mais tarde cultivada por cientistas. O pai de Galileu, Vincenzo Galileo, foi alaudista em Florença, co-criador da ópera e teorizador da harmonia musical [15]. Muito mais tarde, Einstein, um violinista amador, confessou que, se não fosse físico, seria músico, justificando desta maneira: “Penso muitas vezes musicalmente. Vivo musicalmente os meus sonhos diurnos. (…) Tiro o maior prazer da minha vida do violino” [16]. Heisenberg acrescentou sobre a definição e o papel da beleza [14]:

“A beleza, conforme a primeira das nossas definições antigas, é a conformidade adequada das partes entre si e com o todo. As partes aqui são as notas individuais, enquanto o todo é o som harmónico. A relação matemática pode, desse modo, reunir duas partes inicialmente independentes num todo e produzir beleza. Essa descoberta produziu um avanço na doutrina pitagórica para formas totalmente novas de pensamento, suscitando, assim, a ideia de que a base primordial de todo o ser não era mais considerada matéria sensorial, tal como a água em Tales, mas sim um princípio ideal de forma. Isso afirmou uma ideia básica que, mais tarde, forneceu o fundamento para todas as ciências exactas.”

Numa carta a Einstein transmitiu essa mesma posição [17]. Aprofundando a ligação entre ciência e arte, esclareceu [14]:

“Compreender a multiplicidade colorida dos fenómenos foi, desse modo, aprofundada através do reconhecimento neles de princípios unitários a respeito da forma, que podem ser expressos na linguagem da matemática. Deste modo, foi estabelecida também uma conexão íntima entre o inteligível e o belo. Porque se o belo é concebido como a conformidade das partes entre si e com o todo, e se, por outro lado, toda compreensão é tornada possível em primeiro lugar por meio dessa conexão formal, então a experiência do belo torna-se virtualmente idêntica à experiência das conexões, sejam estas compreendidas ou pelo menos adivinhadas.”

Por aqui se percebe que, para um grande criador da ciência, a experiência científica é semelhante a uma experiência estética. Na mesma linha, disse o matemático alemão Hermann Weyl: “Sempre procurei no meu trabalho juntar o verdadeiro e o belo, mas, quando tive de escolher, escolhi normalmente o belo”. A física moderna veio, ao longo do século XX, a revelar a existência de simetrias abstractas no âmago da realidade física. E as simetrias são, como sempre foram e como a arte tão bem evidencia [18], manifestações superiores de beleza.

Em conclusão

Há muito espaço – e há uma multidão de caminhos para percorrer – para a aproximação entre ciências e humanidades na escola. Uma vez que a escola se destina a preparar para a vida, a questão é a de saber que vida desejamos para as gerações seguintes: uma vida fragmentada e quiçá dolorosa ou uma vida plena e tranquila, na qual saibamos ocupar o nosso lugar no mundo, procurando responder às nossas interrogações, em particular as que dizem respeito ao desafio que estava inscrito no templo de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo!”

Konrad Lorenz, um dos pais da etologia e prémio Nobel da medicina de 1973, enfatizou a necessidade de comunicar a proximidade entre beleza e verdade aos jovens [19]:

“Os jovens de hoje deem ter acesso à mensagem de magnificência e beleza deste mundo para que compreendam o lugar do homem no universo e se não abandonem ao desespero. É preciso fazê-los compreender que a verdade também é bela e está cheia de mistérios inimagináveis e que não é necessário entregarmo-nos às drogas ou tornarmo-nos místicos para termos a experiência do maravilhoso.”


Carlos Fiolhais

Professor de Física da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra

  

Referências:

[1] Snow, Charles P., The Two Cultures and a Second Look, Cambridge Mass., Cambridge University Press, 1963. Traduções portuguesas são As Duas Culturas, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1965, e Lisboa,: Presença, 1996; ver sobre o tema: Fiolhais, Carlos, “‘Estranhas, mas irmãs’: revisitando a questão das duas culturas”, Revista Lusófona de Estudos Culturais 2, vol. 3 (2016), p. 103 – 111. http://estudosculturais.com/revistalusofona/index.php/rlec/article/view/259/162>.

[2] Fiolhais, Carlos, “Imaginação, ciência e arte”. Biblos. Série 2. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade. Vol. 6 (2008), p. 3-16. http://hdl.handle.net/10316/12372 .

 [3] Fiolhais, Carlos, “Os jardins secretos de Mandelbrot“, in Universo, computadores e tudo o resto. Lisboa: Gradiva, 1994. http://dererummundi.blogspot.com/2008/08/os-jardins-secretos-de-mandelbrot.html

 [4] Keats, John, “Ode on a Grecian Urn, in Annals for the Fine Arts for 1819, vol. 4. Ver Complete Poems, Cambridge Mass.: Harvard University Press, 1982. Algumas odes estão traduzidas em português, ver e.g. Odes, Porto: Livraria Sousa Almeida, 1960.

[5] Bronowski, Jacob, Science and Human Values. New York: Julian Messner, 1956. Tradução portuguesa: Ciência e Valores Humanos, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1972. Texto reeditado em Bronowski, Jacob, A Responsabilidade do Cientista e Outros Escritos, (Introd., org. e notas de A.M. Nunes dos Santos, C. Auretta e J.L. Câmara Leme), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.

[6] Bronowski, Jacob, A Ascensão do Homem. Boston: Little Brown and Company, 1974. Reedição, London: BBC, 2013. Há tradução em português do Brasil: A Escalada do Homem São Paulo, 3.ª ed., 1992.

[7] Gedeão, António, Poesias Completas (1956-1967), Lisboa: Portugália, 2.ª ed., 1968. Reediçºao: “Obra Compçleta, Lusboa: relógio d’Água, 2004. O prefácio, intitulado “A Poesia de António Gedeão (esboço de análise objectiva),”  é de Jorge de Sena. Sobre a poesia de Gedeão ver: Fiolhais, Carlos, “Poesia e Ciência em António Gedeão”, Nova Síntese, Cultura Científica e Neo-Realismo, Fitas, Augusto J.S., (ed.)Lisboa: Colibri 2019. http://dererummundi.blogspot.com/2019/10/poesia-e-ciencia-em-antonio-gedeao.html

 [8] Carvalho, Rómulo de, “Ciência e Poesia”, Palestra 1 (Lisboa, 1958), p. 20-27.

[9] Christopher Auretta e António Nunes dos Santos, António Gedeão: 51+3 Poems and Other Writings, Lisboa, Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, 1992. Tradução em português: “Uma Conversa com Rómulo de Carvalho”, Gazeta de Física vol. 16, fasc. 1 (1993), p. 2-8.

[10] Fiolhais, Carlos e Paiva, Jorge (coords.), Primeiro Livro de Botânica: Colóquio dos Simples, de Garcia da Orta, vol. 15 de Fiolhais, Carlos, e Franco, José Eduardo (coords.), Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 30 vols., 2017-2019.

 [11] Tomás, Túlio Lopes, Os Lusíadas e a Ciência do Renascimento. Macau: Imprensa nacional. Ver também Silva, Armando Tavares, “Camões e a Química. A Química em Camões”, ed. autor, Lisboa, 2010, e Paiva, Jorge, “As plantas na obra poética de Camões (épica e lírica)”,  in Andrade, António Manuel Lopes de et al. (coords.), Humanismo e Ciência,  Antiguidade e Renascimento,  Coimbra: Universidade de Aveiro editora e Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume,   http://hdl.handle.net/10316.2/35691

[12] Fiolhais, Carlos, “Ciência e Literatura: Encontros e Desencontros”,  Atlântida, LXIII (2018), p. 277-286. ( http://dererummundi.blogspot.com/2018/12/ciencia-e-literatura-encontros-e.html ). Ver também duas antologias sobre ciência e poesia: e Bochicchio, Maria,  e Moura, Vasco Graça, O binómio de Newton e a Vénus de Milo. Lisboa: Fundação Champalimaud e Alêtheia, 2011 e Malhó, Rui, O Bosão do João, 88 poemas com música, Lisboa: By The Book, 2014.

 [13] Fiolhais, Carlos, “Ciência e humanismo: a visão da ciência de Erwin Schrödinger. Biblos. Nova série. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade. N.º 1 (2015), p. 127-151.

( http://hdl.handle.net/10316/40714 ).

 [14] Heisenberg, Werner (1982), “The Meaning of Beauty in the Exact Sciences.” In: Across the Frontier. New York: Harper & Row, 1974, p. 167-180. Ver também do mesmo autor: (1984) Physics and Philosophy, New York: Harper & Brothers, 1958, e Physics and Beyond: Encounters and conversations, Harper and Row, 1971, Tradução portuguesa: Diálogos sobre Física Atómica. Lisboa: Verbo, 1975. Sobre a estética em Heisenberg ver Videira, António Passos, e Puig, Carlos Fils, “Realidade, linguagem e beleza segundo Werner Heisenberg,” Prometeica, n.º 21 (2020), 73-84. (https://doi.org/10.34024/prometeica.2020.21.10410 )

[15] André, João Paulo, Poções e Paixões, Química e Ópera, Lisboa: Gradiva, 2019.

[16] Calaprice, Aline, The Ultimate Quotable Einstein, Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2011. Há tradução portuguesa: Citações de Albert Einstein. Lisboa: Relógio d’Água, 2018, p. 237.

[17] Stewart, Ian, Why Beauty is Truth. A history of symmetry, New York: Basic Books, 2007, p. 278. Ver também: Chandrasekhar, S., Truth and Beauty. Aesthetics and Motivations in Science,  Chicago and London: The University of Chicago Press, 1987.

[18] Weyl, Hermann, Simetria, Lisboa: Gradiva, 2 017, rev. científica e posfácio de Carlos Fiolhais.

[19] Lorenz, Konrad, The Waning of Humaneness, Boston: Little, Brown and Company, 1987, p. 209-210.

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