Que o fim do mundo tinha de chegar
sabia-se, porque nada é eterno
mas o difícil de imaginar
era que fosse evento hodierno.
O fim prodigioso está à vista,
mas não passa de sórdida epopeia:
rios e mares que perdem a pista,
formidáveis ventos em antestreia!
Raios, explosões, aquecimentos,
animais e homens em confusão,
horrorosas feridas, sofrimentos,
impensáveis e em tal dimensão,
que transforma tudo em grande espanto,
a que se não ajusta qualquer pranto!
Eugénio Lisboa
De Rerum Natura
A natureza das coisas
sábado, 5 de abril de 2025
FIM À VISTA
sábado, 29 de março de 2025
OS OLHOS DE CAMILO
É bem conhecido que Camilo Castelo Branco (1825-1890), o grande escritor português (muito ligado ao Norte, apesar de ter nascido em Lisboa) de quem agora celebramos o duplo centenário do nascimento, ficou progressivamente cego, tendo-se suicidado, na sua casa de São Miguel de Seide, em Vila Nova de Famalicão, devido, pelo menos em parte, à sua irreversível deficiência visual.
Camilo está na boa companhia de outros escritores parcial ou totalmente cegos. Para começar, o lendário Homero, o poeta grego da Ilíada e da Odisseia, que era alegadamente cego. Depois, Luís de Camões, o autor de Os Lusíadas (1572), de quem festejamos o quinto centenário, que perdeu um olho numa peleja no Norte de Africa; John Milton, o poeta inglês do Paraíso Perdido (1667), que cegou totalmente na maturidade; e António Feliciano de Castilho, que espoletou em 1865 a polémica da Questão Coimbra, quase completamente cego desde a infância. Mais próximo de nós, James Joyce, o escritor irlandês de Ulisses (1920) e Aldous Huxley, o escritor inglês do Admirável Mundo Novo (1932), os dois praticamente cegos. Quase na actualidade, o escritor argentino Jorge Luís Borges, autor de Ficções (1944), que ficou totalmente cego aos 55 anos sem por isso deixar de escrever.
Por outro lado, são inúmeras as obras literárias que tratam de casos de cegueira, só para dar três exemplos da literatura portuguesa; Alexandre Herculano, o autor da novela A Abóbada, (1861) que conta a história de Mestre Afonso Domingues, o arquitecto cego da Mosteiro da Batalha; o inglês Herbert George Wells, o autor de O País dos Cegos (1911); e o nosso prémio Nobel José Saramago, autor do Ensaio sobre a Cegueira (1955), tal como o anterior um romance utópico baseado na cegueira. O próprio Camilo foi o autor do conto «O Cego de Landins», inserto nas Novelas do Minho (1877). que trata a vida do cego António José Pinto Monteiro, um emigrante do Brasil que regressa â pátria, e de um livro, O Olho de Vidro (1866), que mistura realidade e ficção a propósito do médico oftalmologista Brás Luís de Abreu, autor de Portugal Médico (1726).
A 28 de Abril de 1866, Camilo, que em jovem tinha começado a estudar medicina na Escola Médico-Cirúrgica do Porto (matrícula em 1844), mas que abandonou rapidamente o curso. confessou, em carta ao médico José Barbosa e Silva, a sua doença ocular: «Foi muito grave o prognóstico da minha doença de olhos; mas hoje está averiguado que é efeito de venéreo inveterado. Sofro há quatro meses de uma diplopia (visão dupla). É horrível para quem não tem outra distracção além da leitura. Tarde será o meu restabelecimento.»
A cegueira de Camilo tem sido alvo de vários estudos. A sua causa é conhecida: padeceu de neurosífilis, doença que afecta o sistema nervoso central e que tem outras consequências físicas para além da perda de visão. Os primeiros sintomas de Camilo foram a diplopia e nictaria (deficiência de visão nocturna). Apesar de ter recorrido a vários médicos, o seu estado foi-se progressivamente deteriorando, até que se viu envolto na mais completa escuridão. Foi já nessa situação que escreveu ao médico oftalmologista de Aveiro, Edmundo de Magalhães Machado, começando assim: «Ilmo. e Exmo. Sr., sou o cadáver representante de um nome que teve alguma reputação gloriosa neste país durante 40 anos de trabalho. Chamo-me Camilo Castelo Branco e estou cego. (…)» O médico visitou-o em São Miguel de Seide, tenho-lhe recomendado descanso numas termas antes de se avançar com qualquer outra coisa. Foi quando Ana Plácido, a mulher de Camilo (o seu «amor de perdição»), conduzia o Dr. Magalhães Machado à porta de casa que soou um tiro, disparado pelo escritor contra si próprio, que foi fatal. Além da cegueira afligia-o situação do seu filho Jorge, que sofria de uma grave doença mental e que, por isso, estava num asilo de alienados.
Os médicos, ou mais em geral os estudiosos, tèm-se interessado pela doença oftalmológica de Camilo, havendo por isso um rol de obras sobre a relação entre Camilo e a medicina, enfatizando os seus olhos. Elenco-as na lista bibliográfica, por ordem cronológica de publicação. Não são fáceis de encontrar, mas é para isso que servem as bibliotecas e os alfarrabistas. Relevo a primeira por ser de um lente de Medicina da Universidade do Porto de uma época mais próxima da do escritor.
Pesar de cego, Camilo não deixou de descrever o mundo com acuidade. O Padre António Vieira, que via bem, disse sobre a cegueira, num dos seus sermões, uma frase que se lhe pode aplicar: «Bem-aventurados os cegos, porque estais livres de ver a cara ao mundo, e tantas falsidades e erros, como nele se veem!»
Referências:
- Lemos, Maximiano. Camilo e os médicos: com novos elementos para a biografia do grande escritor. Porto: Companhia Portuguesa Editora, 1920. Reedições, com prefácio de João de Araújo Correia, Porto: Editorial Inova, 1974, e Modo de Ler, 2012.
- Costa Filho, Gomes da. Porque Cegou Camilo? Estudo retrospetivo da cegueira do mártir de Miguel de Seide, Poços de Caldas (Brasil), 1950. 2.ª ed., a 1.ª em Portugal: Porto: Livraria Latina Editora, 1955.
- Ribeiro, Rufino. A cegueira de Camilo e a miopia de um médico, ed. autor, Porto: Tipografia Marca, 1970; 2.ª ed., revista e aumentada, ed. autor, Vila Nova de Gaia, 1972.
- Ribeiro, Rufino. A cegueira de Camilo: pequeno dossier de depoimentos clínicos de grandes mestres da oftalmologia, ed. autor, Porto, 1971.
- Ribeiro, Rufino. Camilo e a tragédia dos seus olhos, ed. autor, Vila Nova de Gaia: Tipografia Rocha, 1972.
- Pereira, Carlos Renato Gonçalves- «A cegueira de Camilo Castelo Branco», Porto: Coopertipo, 1979, Sep. de O Médico, 92, e Acção Médica, ano 52, n.º 1 (Mar. 1988), pp. 39-49
EINSTEIN EM LISBOA
Meu artigo no mais recente JL (na imagem o quarto do Hotel Glória onde Einstein pernoitou durante a sua estada do Rio; foto tirada por mim pois já fiquei no mesmo hotel):
No dia 11 de Março de 1925, fez agora precisamente cem anos, Albert Einstein (1879-1955), o cientista mais famoso do século XX (mais do que isso, a «pessoa do século», escolhida pela revista Time em 1999), passou por Lisboa. Essa visita curta foi a única que fez a Portugal. Einstein ia a bordo do navio alemão Cap Polonio numa viagem que, partindo de Hamburgo, no Norte de Alemanha, tinha como destino a América do Sul, designadamente Buenos Aires, na Argentina, Montevideu, no Uruguai, e Rio de Janeiro, no Brasil (aquele navio fazia essa carreira regularmente). O convite foi feito por instituições académicas daqueles países, e a escala em Lisboa fazia parte do itinerário.
Einstein aproveitou a paragem para fazer uma rápida visita à capital portuguesa, que ele descreve no seu diário de viagem, transcrito no vol. 14 dos seus Collected Papers (Princeton University Press, 2015), e que foi traduzido do original alemão para português do Brasil, numa edição que foi publicada pela editora Record, do Brasil (Os Diários de Viagem de Albert Einstein. América do Sul 1925, org. Ze’ev Rosenkranz, 2024). Dessas notas de viagem, embora Einstein não refira os nomes dos monumentos, conclui-se pela sua descrição que ele esteve no Castelo de São Jorge e no Mosteiro dos Jerónimos. Sobre a cidade escreveu no seu diário: «Dá uma impressão maltrapilha mas simpática. A vida parece correr confortável, bonacheirona, sem pressa ou mesmo objectivo ou consciência. Por toda a parte nos consciencializamos da cultura antiga.» O que mais o impressionou foram as varinas, que vendiam o peixe na rua. Escreveu: «Vendedora de peixe fotografada com um cesto de peixe na cabeça, gesto orgulhoso, maroto». Einstein tirou fotografias delas. Para quem quiser ter uma ideia de como eram essas figuras na época, bastará olhar para os desenhos de Stuart Carvalhais (1887-1961), pintor e caricaturista que estava no auge nos anos de 1920. O artista casou com uma varina, uma mulher do povo, praticamente analfabeta: tinha, portanto, uma modelo em casa. Em 2005, quando, no quadro do Ano Internacional da Física, tive oportunidade de organizar na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, a exposição «Einstein entre nós» (em cuja inauguração esteve o então ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, José Mariano Gago. 1948-2015), pedi ao grafista para incluir no cartaz com uma grande fotografia de Einstein um desenho de Stuart Carvalhais com uma varina e uma imagem do Cap Polonio.
Nesse ano de 1925, Fernando Pessoa (1888-1935) passeava pela Baixa de Lisboa. Foi o ano do surgimento de Alberto Caeiro. Teria sido curioso se se tivesse cruzado com o génio da Física (Pessoa tinha, na sua biblioteca, livros sobre a teoria da relatividade de Einstein). Mas a verdade é que Einstein viajava incógnito. A comunidade científica nacional era muito reduzida e Einstein não se tinha feito anunciar. Apesar de já ser mundialmente famoso e de ter um rosto muito conhecido, ninguém reparou nele em Lisboa. Num tempo em que a Primeira República caminhava rapidamente para o fim, a ciência era quase uma inexistência. No entanto, um português famoso, o Almirante Gago Coutinho (1869-1959), estava no Rio de Janeiro na audiência de uma palestra de Einstein (o seu afastamento do país teria a ver com a sua vontade de não querer ser Presidente da República, ele que tinha ganho fama por ter realizado, com Sacadura Cabral , 1881-1924, a primeira travessia aérea do Atlântico Sul em 1922). O facto de Gago Coutinho ter escutado Einstein no Rio de Janeiro, numa palestra em francês, não o impediu de ter tomado posições críticas da teoria da relatividade. Não foi, de resto, o único: o catedrático de Matemática da Universidade de Coimbra, Francisco da Costa Lobo (1864-1945), tomou também posições antirelativistas, que levaram a polémica com colegas seus. Numa sua faceta mais positiva, foi Costa Lobo quem instalou um equipamento de observação do Sol no Observatório Astronómico da sua Universidade em 1925.
Por que razão decidiu Einstein, naquele ano, entre 4 de Março e 1 de Junho, realizar uma viagem marítima, que o deixou no final extenuado («mais morto do que vivo», na sua própria expressão, no final da diário). Einstein gostava de conhecer o mundo. Entre 2022 e 2023 tinha empreendido uma viagem, mais longa, ao Japão (com visitas à Palestina e a Espanha no regresso). Traduzi para português o diário dessa viagem (Os Diários de Viagem de Albert Einstein, Extremo Oriente, Palestina e Espanha 1922-23, org. Ze’ev Rosenkranz, Gradiva, 2023) Foi nessa viagem, numa escala em Xangai, que soube que lhe tinha sido atribuído o prémio Nobel da Física de 2021, atribuído um ano depois da data normal não pela sua teoria da relatividade, mas sim pela sua explicação do efeito fotoeléctrico em 1925, introduzindo a noção de «grão de luz» (ou fotão). No Rio, Einstein haveria de apresentar uma comunicação científica sobre esses quanta, num trabalho que redigiu no quarto 400 do Hotel Glória que já tive ocasião de visitar (há uma placa que divulga a estada do hóspede ilustre). Na viagem ao Extremo Oriente, Einstein teve a companhia de Elsa Einstein (1876-1936), a sua segunda mulher que era também sua prima. Mas, na viagem à América do Sul, Elsa já não o acompanhou, nem nenhuma das suas duas enteadas, Ilse e Margot. O diário destinava-se a ser lido por elas e não a ser publicado, pelo que o estilo é informal. Por que viajou sozinho? O motivo foi bastante prosaico: o cientista tinha tido um affaire com a sua secretária, de apenas 23 anos (ele fez 46 anos a 14 de Março de 1925, três dias depois de sair de Lisboa), e queria distanciar-se dessa relação, que abalou o ambiente doméstico. De Lisboa manda uma carta à mãe da sua ex-amante dizendo «quero poupar a senhora e a sua filha a qualquer decepção.» De facto, Einstein tinha um lado mulherengo. Não lhe escapou nem a visão das varinas portuguesas nem o charme de uma escritora austríaca Else Jerusalém (1876-1943), autora de textos sobre a sexualidade feminina, que ele encontrou no navio e a quem designou, no diário, por «pantera».
segunda-feira, 24 de março de 2025
Torradas com toucinho
Uma ou duas vezes por semana a mãe fazia cozido, geralmente com sopas de pão perfumadas de hortelã. Nos meses mais frios, esta confecção, além do repolho, dos nabos e das batatas, privilegiava a carne de porco fresca, os enchidos e o toucinho da salgadeira. Nos meses mais quentes, o cozido era de abóbora, vagens (feijão verde), grão e batata, com carne de vaca, os mesmos enchidos e o mesmo toucinho.
As recomendações médicas, acentuando os malefícios desta gordura na nossa saúde, em geral, e na das artérias, em particular, veio pôr um travão nesta delícia da gastronomia da minha infância e adolescência.
sábado, 22 de março de 2025
DECLARAÇÃO INTERNACIONAL SOBRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E AS LIBERDADES DE PUBLICAÇÃO E LEITURA
"Com o objetivo principal de proporcionar acesso a uma ampla variedade de obras escritas para todos, unimos-nos para apoiar as liberdades de expressão, publicação e leitura. Acreditamos que a sociedade necessita de cidadãos esclarecidos que, com base em conhecimento e informação precisos, façam escolhas e participem do progresso democrático. Autores, editores, livreiros e bibliotecas têm um papel a desempenhar nisso que deve ser reconhecido, valorizado e validado
A verdadeira liberdade de leitura significa poder escolher entre a mais ampla gama de livros que compartilham a mais ampla gama de ideias. A comunicação irrestrita é essencial para uma sociedade livre e uma cultura criativa, mas traz consigo a responsabilidade de resistir ao discurso de ódio, falsidades deliberadas e distorção de factos. Autores, editores, livreiros e bibliotecas fazem uma contribuição essencial para garantir essa liberdade.
Sujeitos aos limites estabelecidos pelo direito internacional dos direitos humanos, os autores devem ter garantida a liberdade de expressão. Através de seu trabalho entendemos as nossas sociedades, construímos empatia, superamos os nossos preconceitos e refletimos sobre ideias provocativas. Da mesma forma, livreiros e bibliotecários devem ser livres para apresentar a gama completa de obras, em todo o espectro ideológico, para todos. Não devem ter essa liberdade restringida por governos ou autoridades locais, indivíduos ou grupos que buscam impor os seus próprios padrões ou gostos à comunidade em geral, mesmo quando isso é feito em nome da ‘comunidade’ ou de sua maioria.
Para que livreiros e bibliotecários apresentem a mais ampla gama de obras escritas, deve haver liberdade de publicação. Editores devem ser livres para publicar aquelas obras que consideram importantes, incluindo aquelas que são ortodoxas, impopulares, ou que possam ser consideradas ofensivas por alguns em grupos específicos.
É responsabilidade e missão dos editores, livreiros e bibliotecários, através de seu julgamento profissional, dar pleno significado à liberdade de leitura, proporcionando a todos acesso às obras dos autores. Editores, bibliotecários e livreiros não endossam necessariamente todas as obras que disponibilizam. Enquanto editores e livreiros individuais tomam suas próprias decisões editoriais e seleções, o acesso aos escritos não deve ser limitado com base na história pessoal ou afiliações políticas do autor.
O risco de autocensura devido a pressões sociais, políticas ou económicas permanece alto, afetando cada parte da cadeia, do escritor ao leitor. A sociedade deve criar o ambiente para que autores, editores, livreiros e bibliotecários cumpram as suas missões livremente.
Portanto, conclamamos governos e todos os outros interessados a ajudar a proteger, defender e promover as três liberdades acima – de expressão, de publicação e de leitura – por lei e na prática."
domingo, 16 de março de 2025
A FIGURA DO ANTI-HERÓI NA EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA

"Quando era miúdo, a viver na periferia de Londres, Gary Stevenson via ao longe os arranha-céus da City e sonhava com uma vida melhor. O talento para a matemática ajudou-o a escapar ao seu bairro, onde tantos se perdiam, e a entrar na prestigiada London School of Economics. Ali percebeu que enfrentava uma concorrência desleal. Os colegas, meninos de boas famílias, puxavam os cordelinhos para entrar nas grandes empresas financeiras, enquanto ele só podia contar consigo próprio. Um dia, porém, falaram-lhe de um jogo, The Trading Game, promovido por um dos maiores bancos do mundo. O prémio era a entrada direta [num banco]. Gary jogou, ganhou e aos 20 anos entrou de rompante no coração financeiro de Londres. Mal atravessou a porta (...) sentiu-se engolido por um furacão (...). E o dinheiro, milhões e milhões a serem movimentados todos os dias por rapazes que ainda mal faziam a barba (...). Gary narra-nos a sua meteórica ascensão, o modo como enriqueceu e a sensação de vazio que se seguiu - porque o segredo do seu sucesso foi apostar sempre no fracasso da economia, no empobrecimento dos pobres e no enriquecimento dos ricos. Ou seja, na destruição sistemática do mundo de onde tinha vindo (...).
OS TIRANOS DE SERVIÇO
Um filho da puta de sangue quente
e um filho da puta de sangue frio
distinguem-se instantaneamente:
este tem só tesão de calafrio!
O calor do sentir nada lhe diz:
destruir catedrais sem nada fremir,
por nada ver à frente do nariz,
nada, mas nada lhe faz pressentir.
O filho da puta absoluto simples
destrói cidades e vidas e arte
e cria tragédias dignas de Sófocles.
Invoquemos um raio que o descarte
e o entregue a um feio urubu,
que dele faça infame menu!
Eugénio Lisboa
O TEMPO QUE ESTAMOS A VIVER
sábado, 15 de março de 2025
O TRABALHO QUE DÁ EDUCAR PARA A CIVILIDADE
Quem afirma (e muitos o fazem) que a Escola
não deve preparar em abstracto, através de teorias estéreis, de modelos sem aplicação directa, de princípios que de útil e funcional nada têm,deve dispensar tudo o que não decorra do contexto, do quotidiano dos alunos e que não concorra para a sua integração nos mesmos,
deve, enfim, preparar para a sociedade concreta, para a vida real,
ganha em ler o artigo de opinião da jornalista Rute Sousa Vasco, publicado ontem (aqui).
É que o contexto, a realidade, o quotidiano, a sociedade, a vida em que crianças, adolescentes e adultos estão mergulhados é cada vez mais a que ela descreve.
Assim, se não for a escola pública a procurar distanciar-se da sociedade, de modo a tentar, por via do "conhecimento poderoso", exercer uma crítica ampla e profunda à mesma, de modo a não cairmos numa nova barbárie, que outra instituição resta?
Não quer dizer que o consiga - há fortes probabilidades de não o conseguir -, mas a sua vocação de aperfeiçoamento humano indica que não se pode render ou, pior do que isso, ajudar, por diversos modos, alguns deles aparentemente justificáveis, a promovê-la.
Disse que "há fortes probabilidades de não o conseguir", pois se o ensino impedisse todas as manifestações da mesma barbárie, neste tempo em que alcançámos a escolarização plena, ou próximo disso, e em que a "educação para a cidadania" ocupa um lugar central no currículo, a civilidade teria, por certo, melhor feição.
Como diz Rute Sousa Vasco, a persistência na intenção de sermos "bons seres humanos" dá trabalho. O esforço para superarmos a barbárie, edificando-nos e edificando a humanidade, é constante. E mais trabalho dá educar alguém segundo tal intenção, para que a sociedade, o mundo possa ser melhor. E muito mais trabalho dá ainda fazer isso nas condições que a jornalista descreve e que... bem conhecemos!
Não podemos, neste ponto do raciocínio, deixar de perguntar: com todo o trabalho enunciado, o que levará a melhor: a educação escolar ou essas condições? Talvez o leitor encontre uma resposta nas palavras que se seguem, retiradas do mencionado artigo:
"(...) Reality shows e redes sociais têm em comum o valor da popularidade como referência de sucesso e a destruição de uma ideia de qualidade como fasquia de acesso ao respeito público. E ambos têm como mantra que devemos dar às pessoas aquilo que as pessoas querem – ouvimos e não julgamos (...).
Isto não começou com a televisão e também não começou com a internet. Começa e continua sempre em nós, humanos. Gostamos de ver o mórbido, o ridículo ou o simplesmente dramático (...).
Trouxeram-nos a dimensão quantitativa do que é bom. Tem muitos seguidores? É bom. Tem muitos comentários? É bom. Publica tudo sobre tudo o que mexe à sua volta? É bom. Vivemos um plebiscito diário em que a discussão sobre a qualidade do que se faz é secundária perante a exibição dos resultados de quantos viram ou partilharam ou comentaram.
Esta obsessão pela popularidade invadiu todos os domínios da nossa vida. És médico? Arranja uma conta numa rede social e fala sobre ti, os teus pacientes, a tua vida privada, os teus pensamentos privados sobre os teus doentes. O mesmo para todas as profissões e atividades que possamos pensar – ganha quem se expõe diariamente num palco sendo uma espécie de outdoor digital a acontecer no caminho dos outros (...).
Para muitos, nada disto é um problema. Cada um vê o que quer e se vemos reels, tiktoks ou reality shows que nos transformam em amebas, mas nos fazem rir ou sentir melhores seres humanos, então está tudo bem. Cada um sabe de si.
Só que não está e suspeito que estamos apenas a ver a ponta do icebergue. Se tantos não são capazes de descortinar imbecilidade e manipulação em coisas que não têm importância nenhuma, como conseguiremos que pensem mais do que 30 segundos em temas verdadeiramente sérios e que estão a mudar o nosso mundo para pior?
À banalidade do mal sucedeu a banalidade da imbecilidade. Provavelmente o cocktail mais perigoso que enfrentamos. E aqui estamos num momento da história em que idolatramos o conteúdo “autêntico” ao mesmo tempo que duvidamos de quase tudo, incluindo a realidade concreta que entra pelos olhos dentro. Tudo é um reality show.
Ser bom dá mais trabalho. Bom ser humano sem estar no campeonato da popularidade. Bom escritor sem estar no campeonato do TikTok. Bom político sem estar no campeonato da desinformação. Implica não fazer, muitas vezes, o que obviamente é popular, ou divertido, ou fácil (...)."
quinta-feira, 13 de março de 2025
CINCO ANOS APÓS A PANDEMIA
A jornalista Elsa Resende das Lusa entrevistou-me para fazer um balanço cinco anos após a pandemia. Eis as perguntas e respostas:
ER - O que aprendemos com a pandemia da covid-19? Que lições Portugal e o mundo tiraram? O que se perdeu? O que se ganhou? O que falhou?
CF- Foi um desastre e aprendemos sempre com os desastres. Em primeiro lugar, aprendemos que a Natureza nos pode trazer surpresas desagradáveis e não estamos livre que issov se volte a repetir. Na próxima vez, devíamos evitar o que correu mal - atrasos e deficiências na comunicação, egoísmos nacionais que prejudicaram a cooperação - e repetir o que correu bem - normas de saúde pública e a concepção e distribuição de novas vacinas. Aprendemos a importância da genómica quer no diagnóstico quer na prevenção. Aprendemos também que alguns sistemas de saúde eram frágeis e que tinham, por isso, de ser reforçados. Aprendemos que temos de dispor localmente de equipamentos de protecção e tratamento. Aprendemos que as autoridades precisam de ter a confiança do público, para o que contribui a educação e a comunicação científica.
Perderam-se infelizmente mais de sete milhões de vidas, para não falar dois inúmeros casos de «covid longa». Ganharam-se testes rápidos e vacinas baseadas no RNA: a meio de 2024 tinham sido administradas 13,7 mil milhões de doses (a população mundial é de 8 mil milhões), sendo hoje reconhecido que a vacinação em massa contribuiu para a diminuição da doença. A maior falha pode ter sido a incapacidade de combater desinformação sistemática: como eu e o David Marçal escrevemos no nosso livro "Apanhados pelo Vírus» (Gradiva) que antes da pandemia chegou a «infodemia», a onda de falsa informação, que aliás ainda hoje continua. A Portugal a pandemia chegou com algum atraso, pelo que pudemos beneficiar de alguma aprendizagem entretanto havida.
As medidas aplicadas foram, umas vezes melhor e outras pior, as mesmas recomendadas internacionalmente pela OMS. O facto de termos tido uma das mais altas taxas de vacinação do mundo não atesta o nosso nível educativo e a nossa literacia científica: apenas nos diz que temos forte tendência a seguir uma autoridade, quando ela existe. Fomos ajudados pela União Europeia, designadamente na questão da encomenda de vacinas.
ER- Que consequências a retirar?
CF- Atendendo aos atrasos iniciais que houve na resposta à pandemia, era
conveniente estabelecer mecanismos internacionais de pronto alerta para o
caso de surgimento de novos microrganismos potencialmente letais para
os humanos.
Os processos de fabrico de novas vacinas - nove escassos meses entre a declaração da pandemia pela OMS e a administração das primeiras vacinas (caso nunca antes visto!) - podem ainda ser acelerados, agora que os procedimentos técnicos foram aperfeiçoados. Podemos melhorar muito os processos de comunicação. É importante o diálogo entre os vários saberes. Se a ciência biomédica nos diz muito sobre o vírus e a sua propagação, a implementação de medidas de contenção passa por outros saberes como a comunicação e o direito.
ER- Que fragilidades a pandemia pôs ao de cima? Que conquistas?
CF- A pandemia revelou enormes fragilidades sociais, por exemplo, os
lares de idosos com altas taxas de mortalidade. Foi nítido em Portugal,
um dos países mais envelhecidos da Europa e do mundo.
Revelou também problemas em muitos serviços de saúde, que se viram sob uma pressão inusitada. Ficou patente a necessidade de reforçar, entre nós, o Serviço Nacional de Saúde, embora isso não esteja a ser feito na medida suficiente.
Revelou ainda défices de cultura científica e a relevância do ensino e da divulgação das ciências. Há aqui um paradoxo: países como os Estados Unidos, Reino Unido e a Alemanha, onde há maior educação e cultura científica, foram também aqueles onde as vozes antivacinas mais proliferaram. A ciência tem e terá sempre como sua sombra a pseudociência, pelo que se torna indispensável que o cultivo da ciência seja acompanhado pela difusão da cultura científica.
Entre nós, a resposta da agência nacional de cultura científica «Ciência Viva» foi fraquíssima: foi quase alheia ao desafio da covid.
ER- Estamos mais bem preparados para futuras pandemias? Estamos mais perto do que nunca de uma nova pandemia? Porquê? Como nos podemos preparar melhor?
CF- Na medida em que temos mais conhecimento e experiência estamos, em princípio, mais bem preparados. Mas o mundo não tem evoluído para melhor, designadamente na relação entre política e saúde pública. As posições de Trump (assessorado por Musk) de negacionismo das vacinas mostram que houve, ao mais alto nível, quem não tivesse aprendido nada. A resposta de Trump no 1.º mandato à covid foi má e é de temer que possa ser pior se irromper mal semelhante no seu 2.º mandato. Nem o facto de as novas vacinas da coivida terem sido premiadas com um prémio Nobel o impressionou.
Trump ignora em larga medida a ciência, sendo um perigo para os EUA e para o mundo. A saída que ordenou dos Estados Unidos da OMS não é boa nem para os EUA nem para o mundo colocando em risco vários programas mundiais de saúde pública.
Não existe apenas o problema da desinformação a respeito das vacinas, mas também a desinformação em geral: os problemas de desinformação estão agora agravados com o desenvolvimento da Inteligência Artificial e com o papel de Musk na nova administração americana.
ER- A ciência cumpriu o seu papel na plenitude? Poderia ter feito mais e melhor?
CF- À ciência foram feitos grandes pedidos e dados grandes meios. Mobilizou-se como nunca o tinha feito antes. Os resultados estão à vista para quem os queira ver.
É provável que a tecnologia das vacinas genómicas encontre aplicações noutras doenças. Claro que podia ter feito mais e melhor: pode-se sempre fazer mais e melhor, mas isto é fácil de dizer depois e não na altura, sob a pressão dos acontecimentos.
ER- Qual deve ser a estratégia de futuro?
CF- A pandemia veio acentuar processos de desglobalização: se imitar os EUA, cada país estará mais interessado em tratar de si do que do mundo. É, na Europa, o que está a fazer à Hungria. Ora, em questões transnacionais, como uma pandemia, a resposta, primeiro política e depois científica e tecnológica, tem de ser conjunta e articulada. A estratégia do futuro nesta área deve ser de cooperação e não de competição.
ARTE QUÂNTICA
Meu texto num recente JL (na imagem o quadro de Salvador Dali referido no texto):
Ficaram famosas as discussões entre o físico suíço e norte-americano Albert Einstein (1887-1955) e o dinamarquês Niels Bohr (1885-1962) sobre as dificuldades conceptuais da teoria quântica, designadamente a concretização da realidade pelo acto de observação numa «experiência de medição.» Einstein, um realista intransigente, perguntou a Bohr: «Acha que a Lua não esta lá quando não olha para ela?» Neste ano, que as Nações Unidas declararam ser das «ciências e tecnologias quânticas», vale a pena falar, num jornal de letras, artes e ideias, da influência que as ideias da teoria quântica tiveram nas letras e nas artes.
A física quântica, que é aplicável ao micromundo, chegou à sua forma actual em 1925 graças aos trabalhos do austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961) e dos alemães Werner Heisenberg (1901-1976) e Max Born (1882-1970), entre outros. A sua influência na literatura ficou bem clara com o aparecimento de um género de ficção especulativa baptizado de «ficção quântica». Este termo deve-se ao escritor e programador informático norte-americano nascido em Londres Charles Platt (n. 1945), que o introduziu em 1990 num artigo intitulado «Quantum Fiction: A Blueprint for Avoiding Literary Obsolescente», na revista The New York Review of Science Fiction. A escritora e actriz também norte-americana Vanna Bonta (1963-2014) foi pioneira a usá-lo em título de livro quando publicou a sua primeira obra de ficção Flight: A Quantum Fiction Novel, em 1995. Neste romance, há um escritor de ficção científica que vê surgirem na realidade alguns dos elementos fantasiosos do enredo que ele estava a congeminar. A autora explora o facto de, na teoria quântica, a realidade ser, de certo modo, influenciada pelo observador. O romance começa com a pergunta «Quem surgiu primeiro – o observador ou a partícula?» O livro serve-se também do conceito de multiverso, ou conjunto de mundos paralelos, a ideia da teoria quântica de que há mundos alternativos, sendo as escolhas determinadas por sucessivas observações. Não sendo a mais comum, esta «interpretação dos muitos mundos» do norte-americano Hugh Everett III (1930-1982) foi uma das maneiras engendrada pelos físicos para explicar o problema da medição. Bonta recusou que o seu livro fosse de ficção científica, uma vez que neste género há uma fuga da realidade, ao passo que, na ficção quântica, há um conjunto de realidades que se sobrepõem. Outros romances se sucederam na mesma linha: os temas dos textos de ficção quântica não têm necessariamente de envolver tópicos científicos, pois podem limitar-se a explorar a ideia das inúmeras possibilidades, originadas em bifurcações. A realidade torna-se, assim, absolutamente plural: tudo pode acontecer numa infinidade de universos paralelos.
Ainda antes do aparecimento da ficção quântica, já vários escritores se tinham servido de conceitos e termos da física quântica. Por exemplo, o princípio da incerteza de Heisenberg já tinha sido usado pelo escritor francês Michel Rio (n. 1945) como título de livro (Princípio da Incerteza, Teorema,1997). E, entre nós, por Agustina Bessa-Luís (1922-2019): O Princípio da Incerteza é o título da sua trilogia, cujo primeiro volume A Jóia da Família (Guimarães, 2001) foi adaptado ao cinema em 2002 por Manoel de Oliveira. O leitor não vai encontrar ciência nestas obras, sendo o título apenas metafórico.
De resto, na ficção científica abundam histórias em que a física quântica entra de uma maneira ou de outra. Um exemplo é o romance do escritor norte-americano Thomas Pynchon (n. 1937), Arco Íris da Gravidade (Bertrand, 2012), que fala da não-localidade, a ideia subjacente ao entrelaçamento quântico (fenómeno que consiste na ligação entre duas partículas que interagiram no passado, mas que podem depois estar infinitamente afastadas). Por exemplo, o escritor norte-americano Robert Anton Wilson (1932-2007) escreveu a Trilogy of the Schrödinger Cat (1979, 1980 e 1982), obras inspiradas no famoso gato de Schrödinger que pode estar vivo e morto ao mesmo tempo, colapsando para o estado de vivo ou de morto apenas quando é observado. Nesta trilogia encontra-se uma estranha mistura de física nuclear, incerteza, filosofia oriental, sexo e violência.
Considerado o domínio das artes visuais, um dos expoentes do surrealismo, o espanhol Salvador Dali (1904-1989), pintou em 1952-1953 o quadro Desintegração da Persistência da Memória, no qual procura conjugar a teoria da relatividade de Einstein (esta manifesta na obra daliniana em Persistência da Memória, de 1931, que representa relógios a escorrerem) com a teoria quântica (evidenciada pela fragmentação do espaço). É curioso notar que a teoria quântica moderna tenha surgido quase em simultâneo com o movimento surrealista: o manifesto do francês André Breton (1896-1966) é de 1924. O quadro de Dali Natureza Morta Viva, de 1956, pertencente a um período do artista chamado «misticismo nuclear», explora as relações entre a física quântica e a mente consciente.
Por último, também na música se encontram curiosas intersecções da arte com a teoria quântica. O físico e saxofonista norte-americano Stephon Alexander (n. 1971), no seu livro O Jazz da Física (Gradiva, 2016) expõe paralelos entre a improvisação do jazz e a teoria quântica. O projecto-piloto Quantum Music (2015-2018), financiado pela União Europeia e envolvendo vários, criou um espectáculo multimédia interactivo baseado em experiências e fórmulas da física quântica. Uma inovação foi a ligação das teclas de um piano a um computador que adornava os sons com efeitos quânticos. Na música popular, no CD Quanta (1997), o cantor brasileiro Gilberto Gil (n. 1942), que haveria de ser ministro da Cultura do seu país, canta assim a teoria quântica na canção que dá título ao disco, «prefaciado» pelo físico César Lattes: «Fragmento infinitésimo/ Quase que apenas mental/ Quantum granulado no mel/ Quantum ondulado no sal/ Mel de urânio, sal de rádio/ Qualquer coisa quase ideal// Cântico dos cânticos/ Quântico dos quânticos.»
A AMEAÇA DO 2024 YR4
Meu artigo no ultimo As Artes entre as Letras (entretanto a probabilidade de colisão a zero!):
O 2024 YR4 é o nome do asteroide que foi descoberto no dia 27 de dezembro de 2024 por um telescópio no Chile, que faz parte de uma rede global de detecção desse tipo de corpos celestes chamada Asteroide Terrestrial-impact Last Alert System (Sistema de Alerta Final de Asteroides dirigidos para a Terra) – ATLAS, um acrónimo curioso pois Atlas era um titã da mitologia grega que tinha sido condenado por Zeus a segurar o céu. O corpo celeste, que descreve uma órbita bastante elíptica em torno da Terra, fez a aproximação mais próxima à Terra precisamente no dia de Natal, dois dias antes da descoberta: passou à prudente distância de 828 000 quilómetros, que corresponde a cerca de duas vezes a distância à Lua. Como o período orbital do asteroide é de cerca de quatro anos, voltará a estar próximo da Terra em 17 de Dezembro de 2028 e, novamente, em 22 de Dezembro de 2032.
Problema: simulações computacionais baseadas nos dados da posição e velocidade registados até agora deram uma probabilidade de 2,2 por cento de colidir com a Terra (houve uma correcção em alta depois de um primeiro valor) em 1932. Não sendo nula, é uma probabilidade pequena. Mas houve quem ficasse apreensivo… O asteroide continua a ser seguido por um conjunto de telescópios, com o objectivo de obter dados mais precisos sobre as suas posição e velocidade de modo a fazer melhor os cálculos, sempre com base na mecânica de Newton.
O 2024 YR4 é um corpo aparentemente rochoso, com um tamanho pequeno, mas que não se conhece exactamente. Estima-se, a partir da luz do Sol que reflecte, que tenha entre um diâmetro entre os 40 e os 100 metros. Convém aproveitar agora a possibilidade da sua observação, pois, a partir de Abril próximo, deixará de ser visto, excepto pelos melhores telescópios (como o Telescópio Espacial James Webb, que usa luz infravermelha), só voltando a ficar ao alcance dos nossos instrumentos baseados na Terra em Junho de 2028. Esses instrumentos podem tê-lo registado em imagens fotográficas automáticas antes de Dezembro do ano passado, pelo que os astrónomos estão agora a consultar os seus arquivos digitais para saber se há mais dados que permitam conhecer melhor a trajectória. A massa do 2024 YR4 também é incerta, mas, se tiver um diâmetro perto do limite inferior, de cerca de 50 metros, considerando a densidade normal dos meteoritos rochosos, deve pesar 200 000 toneladas.
Em caso de queda na Terra, dá para fazer grandes estragos, não se podendo de momento saber qual será o sítio (o mais certo será, se cair, fazê-lo na água pois há mais água do que terra na superfície do nosso planeta). Sabemos que foi um meteorito, bem maior do que este, que causou a morte dos dinossauros há 66 milhões de anos, deixando uma grande cratera, hoje pouco visível dado o processo de sedimentação, no Golfo do México, que Trump quer renomear para Golfo da América. Essa cratera tem uns 150 quilómetros de diâmetro, o que aponta para um meteorito com um diâmetro entre 10 e 15 quilómetros.
A maior cratera de impacto em território continental situa-se no deserto do Arizona, nos Estados Unidos – é, adequadamente, chamada Cratera do Meteoro. Tem cerca de 1200 metros de diâmetro e 170 metros de profundidade máxima, tendo sido causada por num meteorito com cerca de 50 metros de diâmetro, portanto semelhante ao que agora foi descoberto. Foi um choque violento, correspondente a dez toneladas de TNT, que fez o meteorito volatizar quase na íntegra (estima-se que o 2024 YR4 possa originar um impacto de oito toneladas de TNT). O evento do Arizona deve ter acontecido há uns 50 mil anos. Mais recentemente, a 30 de Junho de 1908, um misterioso objeto celeste caiu na região da Sibéria, no Imperio Russo, provocando uma explosão que destruiu uma grande área de floresta, mas, como não existe uma cratera, supõe-se que o objecto cósmico (um meteoroide ou fragmento de um cometa) tenha explodido na atmosfera, a uns cinco a dez quilómetros de altitude, devido ao atrito com o ar. O seu diâmetro é menor do que poucas dezenas de metros. No dia 18 de Maio de 1924 um meteorito iluminou de modo espectacular o céu português ao atravessar desde Badajoz até à costa do Minho. Não caiu qualquer fragmento, julgando-se que o bólide se tenha completamente desintegrado a meio do seu percurso na atmosfera.
Actualmente dispomos de tecnologia para desviar asteroides, embora não seja bem como em Armageddon, o filme de 1998 produzido e realizado pelo norte-americano Michael Bay, com os actores dessa mesma nacionalidade Bruce Wilis e Ben Affleck. Uma missão da NASA conseguiu, em 26 de Setembro de 2022, desviar a órbita de um pequeno asteroide, o Dimorphos, em órbita de um outro, o Didymos, que não ameaçavam a Terra. A missão, que pretendia apenas testar a tecnologia, chamou-se Double Asteroide Redirection Test (Teste de Redireccionamento de um Asteroide Duplo) – DART, um acrónimo que significa «dardo».
Falta saber se, começando agora a preparar a missão, estaríamos a tempo de em 2032 evitar o pior na hipotética queda na Terra do 2024 YR4. E será que se justifica o grande investimento operante um risco tão pequeno? No caso de uma missão de destruição não ser possível, existe sempre a possibilidade de evacuar atempadamente a região da Terra onde o impacto seja previsto. O evento, a acontecer, será a uma escala apenas regional, mas a destruição pode estender-se até 50 quilómetros do centro da colisão, o que é ameaçador para uma cidade.
Para já existe um aviso não à navegação, mas sim à astronomia, solicitando que seja feito um seguimento do asteroide. Maior precisão dos dados poderá deixar-nos respirar fundo, como, noutros casos, já aconteceu no passado
domingo, 9 de março de 2025
EDUCAR NA ESCOLA PÚBLICA EM PROL DO BEM-COMUM
VAMOS CONTINUAR A FALAR DE TERRAS-RARAS: MONAZITE
- loparite é um fosfato complexo, com cério, lantânio, cálcio, titânio e níquel;O nome monazite, com origem no grego “mona zein”, que, não só alude ao facto de ocorrer em cristais isolados, como ao, então, ser visto como único, no sentido de ser raro. A monazita é um fosfato (-PO4) de vários metais, entre os quais figuram alguns do grupo das terras-raras, como lantânio (La), neodímio (Nd), ítrio , samário (Sm), gadolínio (Gd) e outros que o não são, como o tório (Th, radioactivo) e o cério (Ce).
- xenótima é um fosfato de ítrio;
- bastnasite é um fosfato complexo, com flúor, lantânio, cério, ítrio, admitindo trocas com outros elementos do mesmo grupo.
São conhecidos quatro tipos diferentes de monazita, assim separados, tendo em conta a composição relativa dos elementos químicos presentes:
- monazite-cério (Ce, La, Nd, Th, Y)PO4, em que o cério é o metal mais abundante;
- monazite-lantânio (La, Ce, Nd)PO4, em que o lantânio é o metal mais abundante;
- monazite -neodímio (Nd, La, Ce)PO4, em que o neodímio é o metal mais abundante;
- monazite-samário (Sm, Gd, Ce, Th)PO4, em que o samário é o metal mais abundante.
Os elementos dentro dos parênteses estão ordenados, segundo as proporções relativas.
A monazite é bastante resistente, química e fisicamente, sendo muito pouco ou nada afectada pelos agentes atmosféricos responsáveis pela alteração química (“apodrecimento”) das rochas. Assim sendo, ao apodrecer, a rocha que contenha este mineral na sua composição, liberta-os, praticamente intactos e é, então, que os agentes de erosão, sobretudo, a água, os arranca e os transporta. Por outro lado, a sua dureza (5 a 5,5 na escala de Mohs) confere-lhes relativa resistência ao desgaste (abrasão) provocado pelo atrito com outros grãos minerais, no seio do material essencialmente arenoso, durante o transporte.
A sua densidade (4,6 a 5,7), relativamente elevada face às do abundantíssimo quartzo (2,7) e dos feldspatos (2,5 a 2,8), permite que, em termos de gravidade, os seus grãos se concentrem, separando-os dos grãos desses dois minerais menos densos (“minerais leves”). Eles são, portanto, removidos das rochas hospedeiras e transportados pelas águas dos rios, ao longo de grandes distâncias, indo depositar-se e acumular-se em aluviões fluviais e até, mesmo, em areias de praias marinhas. Ao realizar uma selecção química, mineralógica e gravítica, a Natureza dá origem a depósitos de elevado interesse económico, referidos na gíria profissional por “placers”, do castelhano, banco de areia ou de seixos rolados.
Um parêntese para dizer, por outras, que os “placers” são depósitos onde grãos ou fragmentos de minerais mais “pesados” se depositam, enquanto outros, mais “leves”, são constantemente removidos pela força das águas. Este processo concentra, naturalmente, minerais ditos “pesados” muito valiosos, como, por exemplo, ouro, platina, rútilo, monazite, cassiterite, e pedras preciosas como diamantes, rubis, safiras e espinelas, entre outros.
Em “placers”, são importantes as ocorrências de monazite na Índia, Austrália, Brasil, Sri Lanka, Malásia, Nigéria, Flórida e Carolina do Norte, nos EUA. . Também é conhecida em pegmatitos nos estados norte-americanos de Wyoming, Novo México, Virgínia, Colorado, Maine, Carolina do Norte, bem como na Bolívia, brasil (Minas Gerais), Madagáscar, Noruega, Finlândia, Áustria e Suíça.
Em Portugal, ocorre em aluviões, em Monfortinho (Idanha-a-Nova) e em Vale de Coelha (Almeida).
sábado, 8 de março de 2025
A IMPROBABILIDADE E A PERENIDADE DA DEMOCRACIA
quinta-feira, 6 de março de 2025
FAJÃ, UM ACIDENTE GEOMORFOLÓGICO COMUM EM TODA A MACARONÉSIA
Por A. Galopim de Carvalho
O mais recente delta lávico conhecido, encontra-se nas Canárias, na ilha de La Palma, no município de Tazacorte. Nasceu de um derrame de lava basáltica, descido da arriba, com a duração de três, início 28 de setembro de 2021, durante a grande erupção de Cumbre Vieja, permitindo mostrar com se forma uma fajã de delta lávico.
Nas imagens: o delta lávico em formação, na Ilha de La Palma, e Fajã Grande, na Ilha Graciosa, Açores.
segunda-feira, 3 de março de 2025
CLIMAS E PAISAGENS (1)
Por A. Galopim de Carvalho
As diferentes paisagens da Terra, em qualquer momento da sua história, foram e são, em grande parte, reflexo das características meteorológicas aí prevalecentes. Esta afirmação é evidente para a generalidade dos cidadãos que, embora nunca tenham formulado esta conjectura, têm-na por adquirida. Sem saírem deste nosso rectângulo, no ocidente da Europa, todos relacionam os campos verdejantes do Minho com a maior pluviosidade anual ali verificada (2000 a 2400 mm) e as terras de sequeiro do sudeste alentejano com os menores valores dessa mesma precipitação atmosférica.
À escala mundial, a televisão mostra-nos constantemente imagens dos múltiplos visuais do nosso planeta marcadas pelo clima, sejam, por exemplo, a floresta equatorial da Amazónia, os glaciares do sul da Argentina, a pradaria norte-americana ou a estepe siberiana, a tundra boreal ou as areias escaldantes do Saara. Embora na explicação da paisagem, haja que ter em conta o enquadramento geológico regional, com destaque para a natureza das rochas (granito, xisto, calcário, etc.) que lhes servem de substrato e da respectiva estrutura (modo de ocorrência dos corpos rochosos: homogéneos, estratificados, dobrados falhados, etc.), a influência do clima é muito superior.
Face a esta realidade desenvolveu-se um capítulo, comum à geologia e à geografia, conhecido por “geomorfologia climática”, com o estabelecimento de domínios ou regiões morfoclimáticas. “Faça sol ou faça chuva” é uma expressão vulgar de alusão ao estado do tempo, informação que diariamente nos chega através dos boletins meteorológicos, transmitidos pela televisão, pela rádio e pelos jornais. O estado do tempo, num dado lugar, é uma manifestação de uma realidade mais vasta, própria e à escala do nosso planeta, a que chamamos clima.
Em termos muito simples, entende-se por clima um conjunto de fenómenos próprios da atmosfera, na interactividade que estabelece com os oceanos (e os lagos de maiores extensões) e com as terras emersas, nas quais a latitude, a altitude, a interioridade e a cobertura vegetal têm papel mais visível. Temperatura, humidade do ar e pressão atmosférica são factores de clima assegurados pela energia radiante do Sol. Relacionados entre si, são os responsáveis pelas situações de tempo quente ou frio, de tempo chuvoso ou de neve ou, pelo contrário, de tempo seco. São ainda responsáveis pela existência de vento, não raras vezes catastrófico, tal a intensidade que chega a atingir. O clima condiciona a alteração superficial (meteorização) das rochas, a génese e evolução dos solos, a erosão e transporte (evacuação) dos materiais erodidos (os sedimentos que estão na génese de muitas rochas sedimentares), bem como a ocupação vegetal e animal, incluindo a humana.
A paisagem é um sistema dinâmico, só aparentemente estático. É como um simples fotograma de um filme, escreveu Don L. Eicher, em 1970. Processos geodinâmicos internos à escala global, com destaque para as translacções continentais e os enrugamentos orogénicos, ocasionaram mudanças de latitude e de altitude e subsequentes modificações climáticas que, por sua vez, determinaram mudanças na paisagem. " Na Terra só há alteração das rochas, formação de solos e erosão, (três aspectos modificadores do relevo e, portanto, da paisagem), porque há energia solar e porque temos uma atmosfera e uma hidrosfera, duas entidades susceptíveis de captar essa energia e de a transformar no dinamismo necessário aos processos geológicos ocorrentes à superfície e, também, aos biológicos. As massas de ar diferentemente aquecidas pelo calor solar dão origem à circulação atmosférica, processo que se traduz na existência do vento.
Nas baixas latitudes, nomeadamente nas regiões intertropicais, a incidência dos raios solares aproxima-se e atinge a perpendicular (o Sol está a pique, como vulgarmente se diz), aquecendo o ar mais do que nas latitudes das regiões polares. Nestas, a incidência desses raios é muito oblíqua e, até, rasante, pelo que a temperatura do ar é aí muito mais baixa. Esta diferença de aquecimento faz com que o ar quente suba e o ar frio desça, sendo essa uma das causas da circulação atmosférica (outra causa é da própria rotação do planeta). Por outro lado, a evaporação da água à superfície dos mares, rios e lagos e a resultante da transpiração da cobertura vegetal (uma realidade bem visível nas grandes florestas equatoriais, quentes e húmidas) fornece humidade suficiente para formar nuvens que o vento transporta e descarrega como chuva ou neve, consoante as temperaturas locais. É, sobretudo, a esfericidade do globo terrestre e a consequente variação da latitude que determinam a zonalidade climática de que toda a gente tem noção, ainda que sumária e empírica.
Foram areias deste tipo e vasas finas da mesma natureza que, uma vez litificadas, deram origem a muitos calcários, entre eles os do Jurássico das nossas Serras do Sicó, d’Aire e Candeeiros, bem como do barrocal algarvio, e testemunham o posicionamento tropical destas regiões nesses recuados tempos.
O nosso satélite, embora receba o mesmo tipo de energia, não dispõe destas duas entidades, pelo que não exibe qualquer actividade erosiva para além da resultante dos antiquíssimos impactes meteoríticos. Cessado o vulcanismo que aí existiu e diminuída a intensidade de quedas meteoríticas, as suas paisagens são praticamente as mesmas desde há mais de 3000 milhões de anos. Nas imagens, o Minho verdejante e o Alentejo a caminho da desertificação.
A PARTIDARIZAÇÃO POLÍTICA DO CURRÍCULO ESCOLAR
"O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas". Constituição da República Portuguesa (Artigo 43.º - Liberdade de aprender e ensinar)
"O Estado não pode atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas" Lei de Bases do Sistema Educativo (Artigo 2.º - Princípios gerais).
Nas leis fundamentais acima citadas, determina-se que o Estado não pode ir além das suas atribuições, as quais são de ordem pública, não de ordem privada e, muito menos, íntima. Em matéria educativa, o Estado não pode dirigir escolhas ou comportamentos nesta dupla ordem - privada e íntima -, que cabem - ou caberão um dia - aos que, no momento, são crianças e jovens. E também não as pode sugerir seja de que maneira for.
Isto é assim, mesmo que o faça em nome de (aparentes) bons princípios.
No respeitante a opções religiosas, político-partidárias, financeiras, sexuais... que se encontram legitimadas sob o ponto de vista jurídico e axiológico, o Estado democrático, de direito, deve manter-se escrupulosamente neutro. É sobre este Estado que me pronuncio, deixo de fora os que não são democráticos nem de direito.
Não pode, esse Estado, em que nos situamos, de modo expresso ou oculto, passar, na Escola, a ideia de que uma opção religiosa, político-partidária, financeira, sexual... é preferível a outra.
Deve, evidentemente, procurar que, ao longo da escolaridade, seja robustecida, em cada um, a capacidade para discernir, por si mesmo, o que está bem, o que está certo, à luz dos valores éticos, que são universais, e de valores morais, mais localizados (desde que estes não contrariem os éticos).
No robustecimento desta capacidade, que a todos diz respeito, que estrutura a vida pública, que consubstancia o bem-comum, o Estado não pode ser neutro. Nas palavras do filósofo Fernando Savater:
"Não pode nem deve haver neutralidade, por exemplo, no que corresponde à recusa da tortura, do racismo, do terrorismo, da pena de morte, da prevaricação dos juízes ou da impunidade da corrupção em cargos públicos, nem tão-pouco na defesa das protecções sociais da saúde ou da educação, da velhice ou da infância, nem no ideal de uma sociedade que corrija o mais possível o abismo entre opulência e miséria. Porquê? Porque não se trata de simples opções partidárias mas sim de benefícios da civilização humanizadora." (in O valor de educar)
A partidarização da inclusão do tema no currículo leva-o imediatamente para o campo da ideologia, que não pode entrar nas escolas.
É a liberdade, o direito inalienável à liberdade no respeito por princípios legais e éticos que a escola tem de ensinar e, evidentemente, de assegurar nos seus espaços, na esperança de que o aprendido seja transposto para a sociedade.
Termino com palavras retiradas de um artigo assinado por Valentim Alferes, investigador da Universidade de Coimbra (ver aqui).
"...desliza-se “suavemente” dos objectivos pedagógicos (...) para a inculcação de modelos ideológicos (...). Não importa que tais modelos possam ser ditos conservadores, reformistas ou progressistas, mas simplesmente registar que a pretensa neutralidade axiológica, frequentemente afirmada em nome de objectivos educativos generosos, constitui um elemento central no dispositivo de controlo (...) dos jovens pelos grupos e actores sociais que estão em condições de definir e concretizar as finalidades da acção educativa."
domingo, 2 de março de 2025
Leitores e escritores jovens, ciência, salvação do mundo e mais além
[Escrevi o texto abaixo há vários meses e, por várias razões, ficou inédito. Lembrei-me hoje dele por ter visto jovens a ler. Talvez que num mundo que parece bastante louco ainda haja lugar para a esperança. E essa esperança são os jovens. Estamos fartos de quem critica tudo e não contribui com nada; precisamos também de (re)ler Júlio Dinis com olhos de adultos.]
O que é que Colleen Hoover e Richard Powers têm em comum? São escritores que não pertencem à mesma divisão, claro, mas que não estão fora da realidade. Assim, as suas narrativas cruzam-se com a realidade e esta com a Ciência e a Técnica que envolvem e moldam o nosso mundo.
Os autores de ficção atuais em que tenho notado maior visibilidade da Ciência e da Técnica são Michel Houellebecq e Richard Powers. Do primeiro, em Partículas Elementares (Alfaguara, 2022), um cientista da área da Biologia Molecular é uma das personagens centrais, e, em Serotonina (Alfaguara, 2019), a personagem principal, graduada em Agronomia, discute vários assuntos científicos. De Richard Powers, parecem-me especialmente interessantes Eco da Memória (Casa das Letras, 2008) e Assombro (Presença, 2022), sendo que, neste último, a personagem principal é um cientista. Ambos os autores têm sido traduzidos para português, mas de Powers não foi ainda, que eu saiba, traduzido Gain, no qual uma personagem refere que a Química lhe deu muitas coisas e não assina uma petição contra um produto químico. Bernadette Bensaude-Vincent e Jonathan Simon, em Chemistry: The Impure Science, referem que esta atitude é demasiado racional para ser plausível. Não é, no entanto, necessário que a ficção seja fiel à realidade, como é óbvio. Isso é até, segundo a formulação elegante de Azar Nafisi, em Ler Lolita em Teerão (Gótica, 2004), diminui-la, pois o que procuramos na literatura não é tanto a realidade mas a epifânia da verdade.
Vem isto a propósito da Ciência, e em particular a Química, que está presente na literatura. Se aparecesse como um catálogo não seria provavelmente boa literatura (ou até poderia ser - olhe-se Júlio Dinis com olhos adultos), e nem tem de ser real ou plausível - o medicamento que a personagem principal de Serotonina toma não existe, por exemplo. É um espelho ou um ambiente envolvente que nos interroga e nos permite refletir sobre a realidade.
Como defendi em Jardins de Cristais (Gradiva, 2014), a Ciência, e a Química em particular, está presente, direta ou indiretamente, em todas as obras literárias. E foi à conta da procura de novos exemplos que comecei a notar que os jovens “afinal liam”. A afirmação de os jovens não lerem é comum, e eu também acreditava nela. Bastava perguntar num grupo de jovens e o silêncio das respostas confirmava o meu preconceito. Mas com um estudo experimental acabei por mudar de ideias (pode ler-se aqui). Entretanto, têm aparecido notícias sobre a vendas de livros em Portugal que confirmam essa realidade.
Mas, antes de mais, é preciso perceber o que se entende com a ideia de que os jovens “não leem”. Não leem o que achamos que poderá ser “boa literatura”, mas leem outras coisas. Com cerca de quatrocentos estudantes, de cinco escolas de todo o país, do Ensino Básico e Secundário, verifiquei isso na prática. Não porque os questionei de viva voz, mas porque lhes dei papéis para escreverem de forma anónima o que estavam a ler. E fiquei surpreso. Muitos dos livros que estes liam eu nem sequer conhecia. Muito do que liam era influenciado pelos colegas e pelo mercado; eram livros para jovens e com jovens personagens, mas também era influenciado pelos professores. Numa escola que visitei, por exemplo, vários alunos referiam o Diário de Anne Frank (Livros do Brasil, 2022).
Ao contrário de Michel Houellebecq e Richard Powers, Colleen Hoover é uma autora muito lida pelos jovens. Que as narrativas desta autora sejam limitadas parece-me normal, pois esta tem pouca experiência de vida e objetivos curtos. Em, por exemplo, Isto acaba aqui (Topseller, 2017, de que foi feito um filme recentemente), ou Confesso (Topseller 2016), embora possa existir alguma complexidade nas narrativas, estas andam quase só à volta de amores românticos bastante vulgares, não envolvendo visões do mundo abrangentes nem desafiantes. São livros que não parecem interrogar-nos. Mas é aqui que encontro o paradoxo. Estes livros podem ser mais abrangentes ou podem interrogar-nos, não pelos seus conteúdos, mas pelas ramificações inesperadas que podem originar. Nomeadamente as referências a objetos que se relacionam com a Ciência e a Técnica.
Dou outros exemplos: A culpa é das estrelas (Asa, 2012) de John Green ou A distância entre nós (Presença, 2019) de Rachel Lippincott, Mikki Daughtry e Tobias Iaconis são também livros (de que foram feitos filmes) que nos levam a aspetos inesperados da contribuição da Ciência e da Técnica para o nosso mundo. São também “dramas” românticos como os livros de Colleen Hoover, mas podem ser mais do que isso. No primeiro livro, temos dois jovens apaixonados com cancro em que um acaba por morrer e, no outro, temos, de novo, dois jovens apaixonados, mas é ainda mais dramático. Têm ambos fibrose cística e não se podem aproximar. Mas, ao analisar a linha temporal destas doenças, verificamos que o final feliz não está na relação amorosa, mas nas possibilidades que oferece a narrativa. O cancro de que morreu a personagem do primeiro livro tem uma esperança de cura de quase 100%. E na doença do segundo livro, até aos anos 1940, a esperança de vida era mínima, mas atualmente os doentes têm esperanças de vida da ordem dos sessenta anos, devido à recente descoberta de medicamentos modeladores das proteínas e outros avanços. (Pode encontra-se aqui uma versão mais completa, relativa ao primeiro livro). A tragédia continua a existir, mas pode não ser tão dramática.
Além dos temas, gostaria também chamar a atenção para as experiências de vida dos autores e leitores. Em Lições de Química (Asa, 2022), de Bonnie Rosmus, sobre o qual escrevi também, acompanhamos as desventuras de uma jovem química que procura fazer doutoramento no mundo machista dos anos 1950. Por outro lado, A Hipótese do Amor (Desrotina, 2022) de Ali Hazelwood é uma história romântica muito menos complexa, mas que se passa nos dias de hoje, em que uma jovem a fazer doutoramento é normal. A autora, ela própria a fazer investigação, refere que este livro se baseia no seu mundo. Enquanto Rosmus, mais experiente, estudou o assunto e pediu a colaboração de cientistas, Hazelwood usa a sua biografia para compor a história. Em A Química do Amor (Quinta Essência, 2017, título original, How not to Fall) de Emily Foster, pseudónimo de uma investigadora que não é identificada, mas é doutorada e autora de um ensaio sobre sexo (diz a sinopse) parece ser também a experiência da vida que se conhece que condiciona a narrativa.
Há jovens autores com uma profundidade inesperada como Lolita Pille, em Hell (não detetei que fosse lido pelos estudantes portugueses, nem foi editado em Portugal) que foi publicado quando esta tinha vinte anos. Mas, como é bem conhecido, toda a literatura é de certa forma autobiográfica e esta escreveu sobre as vidas de jovens parisienses, as quais conhecia bem. Podemos também lembrar Françoise Sagan que, com dezanove anos, publicou, em 1954, um livro de uma profundidade também inesperada: Bom dia, Tristeza (A Casa dos Ceifeiros, 2017). Mas, vejamos as entrevistas desta última: escreveu sobre o mundo que conhecia, melhorado pelas leituras de Proust, Dostoiévski e Wilde, entre outros. Um mundo, ainda traumatizado pela segunda guerra mundial, que acabou quando Sagan tinha cerca de dez anos, em que começava a haver liberdade sexual, mas não havia pílula anticoncepcional e o fantasma do aborto assombrava as mulheres.
E, finalmente, podemos relembrar Fernando Namora que, em 1938, com cerca de vinte anos, publicou As sete partidas do mundo (Europa-América, 1990), livro que mais tarde, em 1958, sentiu necessidade de alterar. Quando Namora escreveu a primeira versão do livro não havia antibióticos, mas, em 1958, já havia, e isso reflete-se na reescrita da obra.
Na minha opinião, os contextos e os pormenores dão interesse acrescido às obras literárias, mesmo as consideradas menos interessantes. E, se estou agora mais convencido de que os jovens afinal leem, continuo com a convicção de que todos os livros se relacionam com a Ciência e a Técnica, as quais direta ou indiretamente envolvem e moldam o nosso mundo e nos fazem humanos.
FIM À VISTA
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