terça-feira, 3 de junho de 2025

UM TEXTO QUE NÃO SENDO SOBRE EDUCAÇÃO ESCOLAR PÚBLICA TEM TUDO A VER COM ELA

O Diário de Notícias publicou ontem um artigo de opinião com o título Liberalismo: a política como projeto pessoal, assinado por José Mendes, professor universitário. A sua análise incide no pensamento social prevalecente, que delineia a política e, digo eu, o funcionamento das instituições públicas, incluindo a escola. Reproduzo, abaixo, extractos do artigo, omitindo a identidade dos sujeitos a que alude, pois poderia referir-se a muitos outros, aqueles que são apresentados como modelos aos alunos logo que chegam à escola para lhes criar essa aptidão empreendedora com vantagens para si, para o seu bem-estar.

Nos Estados Unidos (...) foi aclamado como um símbolo da nova ordem empreendedora. Um “visionário” que acreditava que o Estado era, na melhor das hipóteses, um estorvo, e que o mercado se bastava a si mesmo (...). Em Portugal (...) terá percebido que o seu projeto pessoal de vir a ser ministro não se iria concretizar. Sai de cena como quem fecha a loja, porque o lucro não compensou o esforço (...).
 
O que une estas duas figuras, separadas por oceanos, mas irmanadas por uma ideologia, é a crença dogmática de que a sociedade é apenas a soma de vontades individuais. Um liberalismo que despreza o papel do Estado, ignora o peso das estruturas sociais e reduz a pobreza a uma simples falta de empenho (...) os pobres são os que não se esforçaram o suficiente, os que não inovaram, os que não souberam “criar valor”. A desigualdade é, na sua visão, um produto natural da meritocracia - não um problema a corrigir, mas uma prova de que o sistema funciona (...).

Este é o liberalismo que se vende como ousado e reformista, mas que se revela, no fundo, profundamente egoísta (...). Porque, para esses liberais, o compromisso com a comunidade só dura enquanto os seus interesses pessoais estiverem garantidos. Quando não há prémio, não há jogo.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

"O discurso neoliberal e o discurso acatado e consolidado no âmbito da esfera educacional"

O artigo abaixo identificado, que se encontra aqui, já não é propriamente recente. Na voragem da publicação académica, textos com mais de cinco anos estão, por princípio, "fora de prazo", podem ser referidos, mas só em circunstâncias excepcionais.

A verdade é que este artigo, publicado em 2016, mantém-se actual, esclarecendo, em poucas páginas, os passos que já demos e estamos a dar no sentido de ajustar os sistemas educativos públicos à "teoria do capital humano". Essa teoria que vingou em todos os continentes, que se entranhou em todas as instituições e dita todas as políticas ou, pelo menos, assim parece, constituiu-se no modo prevalecente de pensar a vida. 

Cabe aos educadores, professores e formadores fazer o que Karl Popper sugeriu: discuti-la e conjecturar as suas consequências para os educandos, para o mundo...

"A teoria do capital humano tem origem desde as ideias desenvolvidas por economistas como Adam Smith (1776), na obra A Riqueza das Nações, e por Alfred Marshall (1920), no livro Os princípios econômicos do mais valioso investimento dos capitais, os seres humanos, sendo melhor estruturada na Escola de Chicago com os teóricos da economia Gary Becker, Jacob Mincer e Theodore Schultz. 

Theodore Schultz, renomado professor da Escola de Chicago (1902-1998), foi quem cunhou a expressão e expôs sua teoria na década de 1960. A nova ideia de capital compreenderia então as aptidões e habilidades pessoais, que podem ser características naturais intrínsecas da pessoa ou adquiridas no decorrer do tempo. Isso levaria o indivíduo a auferir vantagens e a tornar-se mais produtivo. A teoria desenvolvida por Shultz dispõe de uma abordagem que nos permite identificar alguns pontos de convergência entre o discurso neoliberal e o discurso acatado e consolidado no âmbito da esfera educacional (...).

O termo capital humano afirmou que a melhoria do bem-estar dos menos favorecidos não dependia da terra das máquinas ou da energia, mas principalmente do conhecimento. Essa teoria sugere considerar que todas as habilidades são inatas ou adquiridas e devem ser aperfeiçoadas por meio de ações específicas que levam ao enriquecimento do capital intelectual. Desta forma, cada pessoa seria capaz de aumentar seu conhecimento através de investimentos voltados à formação educacional e profissional de cada indivíduo. 

Portanto, o aumento do capital humano poderia representar as taxas de produtividade do trabalhador, favorecendo o desenvolvimento de um país. Além de proporcionar o bem-estar individual, tal teoria também afirma que esse seria o caminho para o desenvolvimento das nações: investir em capital humano. Essa teoria teve impacto no então denomina-do Terceiro Mundo e apareceu aqui como alternativa para reduzir as desigualdades sociais.

Dentro dessa perspectiva, Schultz (1973) deixa claro (...) que, para ocorrer o crescimento do capital humano, era preciso a iniciativa do poder público, detentor da autoridade necessária para provocar um planejamento educacional que atendesse a tais objetivos. Ele ainda acreditava que mesmo que houvesse iniciativas privadas seriam em segunda ordem, pois atenderiam a um público mais reduzido e não estaria disponível a todos. 

Neste processo, os professores assumem um papel central, como ‘peças fundamentais’ para moldar, configurar e ajustar os estudantes ao desenvolvimento econômico."

terça-feira, 27 de maio de 2025

"A Filosofia pode até, calcule-se, ensinar a viver"

Em Novembro de 2012, Joel Costa, o culto e virtuoso radialista, começava o seu blogue Questões de moral com um texto intitulado Mudar a vida. A linhas tantas, disse:
"Noutro dia ouvi dizer que não há alunos nas faculdades de Letras, que o ensino das Humanidades está pela hora da morte. Sendo a música dos tempos aquela que indubitavelmente é, tais licenciaturas serão passaportes para o desemprego.

Seja como for, quanto mais consciência se tiver da vida que se vive menos bem se suportam as realidades que nos são impostas, e menos a sério se levarão os políticos, os jornalistas, os magistrados, os professores, os dirigentes, a propaganda.

Os governos não podem permitir ao cidadão uma consciência excessiva – ou seja, verdadeira, rigorosa – da realidade. Para tanto usam os media.

Os poderes sabem o quanto um estudo de Filosofia pode mudar o pensamento de um cidadão, pode despertar uma consciência individual. A Filosofia ensina a pensar, o que é coisa posta fora de moda, porque há que consumir e acreditar no que se vê na televisão. E se o pensar ficou fora de moda por alguma razão superiormente determinada foi.

Pensar pode ser um perigo. Até para as instituições. Um perigo para a credibilidade das hierarquias decisórias.

Disciplina que ensine a pensar é um incómodo para os poderes. Se ensina a pensar, até pode ensinar a falar, a escrever. É factor de desenvolvimento mental. Desmascara as pesporrências, coisa proibida em Portugal. E não só… o que é pior…
A Filosofia pode até, calcule-se, ensinar a viver. Se ensina a pensar, a falar e a escrever, ensina seguramente a viver. Sim, penso que é tudo o mesmo, cumprido com maior ou menor habilidade."

segunda-feira, 26 de maio de 2025

QUE ESPECIALISTAS DEBATEM QUE TRANSFORMAÇÃO DE QUE EDUCAÇÃO?

Por estes dias, realiza-se em Portugal MAIS uma "grande conferência" que se diz ser sobre educação, e cujo título é Educação e Transformação: Mobilizar ideias. Inspirar o futuro (ver aqui e aqui). Está anunciada a participação de "especialistas, alunos, educadores e líderes" (continuo a ter dificuldade em perceber o que é, em educação, liderança...).

Apresentando-se o semanário Expresso como media partner (curiosa designação) ou, talvez, impulsionador da mesma (Projeto Expresso), dá-lhe divulgação à sua escala, usando os meios que lhe estão afectos (ver aqui). Não é pouca coisa.

Anuncia este jornal que participarão mais de trinta especialistas, sendo de presumir, pelo título reproduzido abaixo e pelo textos relativos à conferência, que a sua especialidade é em educação escolar. 

Considerando um especialista como alguém que, em virtude de ter adquirido conhecimento profundo numa determinada área, pode, com propriedade, pronunciar-se sobre algo e/ou fazer algo, vejo ali menos de meia dúzia de nomes nesta condição. Que contributo pode dar a um debate sobre educação escolar quem se alheia do seu propósito e substância, num contexto em que se destacam chavões da "narrativa da educação do século XXI" como transformação, inovação, inspiração, agência dos alunos, desafios do futuro? Também a ligação a "parceiros institucionais", a "parceiros estratégicos" (empresas, fundações e afins, com suporte de meios de comunicação social, mas também de universidades) permite conjecturar que a "discussão profunda e inspiradora" anunciada não será propriamente desinteressada.

(Sim, eu sei... os especialistas em educação credenciados também podem deixar muito a desejar no que acima disse...).

No mencionado jornal surge em destaque a seguinte declaração de um dos convidados que não me parece ser de especialista: “"Alunos motivados progridem notavelmente" com inteligência artificial, os "desmotivados podem usá-la como atalho, aprendendo menos” (...) “A IA só por si não resolve o problema da motivação"”.
 
Terá havido incompreensão do que foi dito? Má transcrição? É que, vejamos: alunos motivados (presumo que se queira dizer, em termos intrínsecos), por princípio, progridem melhor nas aprendizagem seja com IA, seja com outro qualquer recurso, os desmotivados (nesse sentido) aprenderão menos, sim... E seria de esperar que a IA (seja isso o que for) resolva só por si o problema da motivação? E qual problema?

domingo, 25 de maio de 2025

PONHAM-NOS A LER! UM ANTIDOTO PARA AS "CRENÇAS" QUE SE ENTRANHAM NA EDUCAÇÃO ESCOLAR

O neuro-cientista Michel Desmurget investiga os efeitos dos ecrãs e dos teclados no desenvolvimento humano, em especial na infância e adolescência. O seu trabalho é reconhecido em França, onde vive, e noutros países, incluindo Portugal. Tem um currículo sólido e não há razões para duvidar da seriedade dos estudos que faz, incluindo os de revisão da literatura.

Publicou vários livros acessíveis ao grande público. Para o objecto deste apontamento destaco três:

  • TV lobotomia: A verdade científica sobre os efeitos da televisão (2011);
  • A fábrica de cretinos digitais. Os perigos dos ecrãs para os nossos filhos (2019);
  • Ponham-nos a ler. A leitura como antídoto para os cretinos digitais (2021)

Isto significa que os educadores e professores, os investigadores que se dedicam ao ensino e à aprendizagem, os formadores de professores e de outros educadores, os responsáveis por reformas educativas e formativas... não podem desconhecer estas publicações ou passar-lhes ao lado. Elas foram bastamente noticiadas, o seu autor desdobrou-se em entrevistas e conferências, foram-lhe dedicados programas de televisão e artigos de fundo nos jornais (ver, por exemplo, aqui, aqui).

A Desmurget devem juntar-se outros investigadores de cujo trabalho se retiram as mesmíssimas conclusões (ver, por exemplo aqui): por regra, os ecrãs e os teclados não ajudam a aprendizagem escolar, perturbam-na! Essa perturbação é de diversa ordem e, tendencialmente, grave. Assim, por regra, devem ser evitados.

Na aprendizagem da leitura (e também da escrita), esses efeitos são particularmente preocupantes. 

Se sabemos isso (temos obrigação de o saber, não o podemos ignorar) e se estamos vinculados ao princípio (temos obrigação de estar, não podemos deixar de estar) de beneficiar (ou pelo menos de não não prejudicar) aqueles que estão ao nosso cuidado, há que perguntar:

Porque insistem educadores e professores, investigadores que se dedicam ao ensino e à aprendizagem, formadores de professores e outros educadores, responsáveis por reformas educativas e formativas... em práticas pedagógicas lesivas?

Regressei a esta pergunta ao ler o artigo de opinião ao lado identificado e de acesso livre. 

Nele a autora, com credenciais académicas e profissionais, defende o uso das novas tecnologias digitais na aprendizagem da leitura,  enunciando várias vantagens.

De notar que não identifica qualquer estudo da "vasta investigação" que diz corroborar a sua posição, nem da vasta investigação que a põem em causa. Assim, o texto resultante, sobre uma aprendizagem escolar básica, assenta na crença. Tal é reconhecido pela autora:

"Acredito que a capacitação digital que é preconizada permitirá num futuro próximo, que todos os professores possam recorrer às tecnologias para ajudar os seus alunos a superar as dificuldades, desenvolvendo-se integralmente com recurso a estratégias diversificadas, eficazes e motivadoras."

O que será de dizer? Talvez, como Desmurget, não agora aos alunos mas aos responsáveis pela sua aprendizagem: que leiam! Leiam os estudos que confirmam e que infirmam as suas posições de partida, verifiquem os seus propósitos, metodologias e resultados e, sobretudo, que se detenham nas consequências da acção pedagógica que deles decorrem.

terça-feira, 20 de maio de 2025

NO AUGE DA CRISE

Por A. Galopim de Carvalho

Julgo ser evidente que Portugal atravessa uma deplorável crise, não do foro económico, financeiro ou social, mas dos partidos políticos e dos seus protagonismos na condução da vida nacional. Uma crise de valores sem precedentes, deveras preocupante que, salvo meia dúzia de excepções, bateu fundo e isso ficou bem claro na pobreza desta corrida ao poder que ontem teve fim. Sou um geólogo e a minha cultura social e política resume-se ao que tenho aprendido na vivencia atenta do dia-a-dia. Bom ou não, é este o meu sentir que, como sempre, divulgo como dever de cidadania, honesta e humildemente.

Sempre procurei pensar pela minha cabeça, na convicção de que a política partidária é uma habilidade para manusear conhecimentos do foro das ciências políticas e sociais, tendo em vista a conquista do poder. Dito isto e para que não restem dúvidas, reafirmo que sempre estive ao lado dos explorados e ofendidos, contra os exploradores e ofensores.

Todos os que os que não andam distraídos, e são muitos, têm vindo a dizer e eu também digo que, no tempo que estamos a viver, paira grande insegurança a nível internacional, não só no que respeita a economia, com inevitável reflexo na vida nacional, como também no que envolve o espectro da guerra e a corrida aos armamentos, com todas as consequências e sofrimentos daí decorrentes.

À semelhança do que se passou com a Primeira República, a classe política, no seu todo, a quem os Capitães de Abril, há meio século, generosa, honradamente e de “mão beijada” entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se completamente de facultar aos cidadãos cultura civilizacional necessária na sociedade que se quer democrática. Esqueceu-se ou não quis. Há uma máxima que diz que “o poder do feiticeiro reside na ignorância dos seus irmãos tribais”, máxima que é fácil entender como uma metáfora do que tem sido a nossa democracia.

Já escrevi o essencial destas minhas palavras não sei quantas vezes, mas sei que não foram as suficientes. Também já disse e volto a dizer que, entre os sectores da vida nacional que nada beneficiaram com esta abertura à liberdade e à democracia está a educação. E, aqui, a escola falhou completamente. Uma escola que tem vindo e continua a dar diplomas, mas que não deu e continua a não dar cultura no sentido mais amplo da palavra.

Nesta “apagada e vil tristeza”, uma muito significativa parcela do nosso povo, destituído dessa cultura, foi presa fácil do populismo da extrema-direita. Uma extrema-direita que, beneficiando da liberdade e democracia que tanto custaram a ganhar, já mostrou, sobejamente, procurar destruí-las e voltar ao “antigamente”.

Tudo isto são gravíssimas preocupações nacionais, que se adicionam as das áreas da saúde, da habitação, da justiça e outras. Preocupações que, tendo em conta as condicionantes nacionais e internacionais, socialistas e sociais-democratas, cujos fundamentos que os inspiraram não estão, assim, tão afastados, tinham obrigação de se ter entendido, a bem deste, deste sempre, maltratado povo. Os seus actuais protagonistas mostraram não terem sabedoria ou vontade para o fazer, pelo que há que encontrar, entre os seus correligionários, quem o possa fazer. Chame-se Bloco Central ou outra coisa qualquer, mas é, no tempo que estamos a viver, em que as esquerdas se têm vindo a autodestruir, o único caminho a seguir.

Quem me conhece e tem acompanhado as minhas intervenções e tomadas de posição públicas, sabe, volto a dizer, da minha independência face aos aparelhos partidários e não espera de mim outro pensamento que não seja este.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

NO DIA EM QUE UMA SAPATILHA "ESMAGOU" A ACRÓPOLE

A imagem é, simbolicamente, forte. Foi, claro está, criada para o ser.
Traduz na perfeição o "ar do tempo", aquele que se respira em todo o lado e, a avaliar pelos currículos oficiais, nas escolas públicas.

A Acrópole (Atenas, século V aC.), património mundial da Unesco, símbolo do alvorecer do que designamos por cultura ocidental, a qual inclui o amor ao conhecimento e o despertar da democracia, pisada, esmagada por uma sapatilha de certa marca comercial com implantação global.

sábado, 17 de maio de 2025

Petroquímica

Por António Galopim de Carvalho

PVC é a sigla de Polímero de Cloreto de Vinil, um tipo de plástico composto por carbono, hidrogénio e cloro, amplamente utilizado em diversas indústrias devido às suas características de durabilidade, resistência, versatilidade e à capacidade de se adaptar a diferentes necessidades e aplicações. É um material omnipresente no nosso dia-a-dia, na construção civil, em casa, nos transportes e no trabalho. 
 
É um dos plásticos mais consumidos no mundo, produzido por polimerização do monómero de cloreto de vinil, um dos muitos derivados do petróleo ou do gás natural. É uma substância durável, resistente a muitos produtos químicos, à água e à humidade, ideal para aplicações em espaços húmidos como cozinhas e casas de banho. Não é tóxico, sendo seguro para o uso humano, de serviço à cozinha, à mesa e em recipientes de produtos de higiene pessoal (frascos, bisnagas e outros recipientes). É pouco denso, fácil de trabalhar e bom isolador térmico e eléctrico. É relativamente barato, quando comparado com outros produtos e reciclável (em alguns tipos). Produzem-se actualmente dois tipos principais de PVC, consoante os aditivos usados:
(1) um rígido, utilizado na fabricação de tubagens para instalações industriais (químicas ou de ventilação), hidráulicas e de esgotos, perfis para portas e janelas, forros e revestimentos de paredes, caixas d'água, placas e chapas industriais, mobiliário diverso, doméstico, de escritório e hospitalar, cartões de crédito (PVC laminado);
(2) um flexível, utilizado em produtos que exigem maleabilidade, utilizado no fabrico de mangueiras de jardim, de gás e outras, cortinas diversas, cabos e fios eléctricos revestidos, cobertura de toldos, pisos vinílicos, brinquedos (com certificação apropriada), bolsas e mochilas sintéticas, películas adesivas, capas impermeáveis para usar à chuva, bolsas e tubos para recolha de sangue, carteiras, sapatos e outros artigos de couro sintético.

ESSE (ANTIGO) HOMEM FUTURO

Parece que a "imaginação artificial" será um avanço da "inteligência artificial", disse-me alguém que me enviou o artigo Towards a science exocortex e de que encontrei uma versão explicativa aqui. Trezentas e seis notas e referências bibliográficas conferem-lhe um carácter "à prova de bala". Ou talvez não... a falta de enquadramento ético e epistemológico deveria ter deixado os avaliadores de sobreaviso, pois essa  "imaginação" é materializada num exocórtex com fins de investigação científica.
 
O seu inventor diz que isso é, ou será, muito útil para desenvolver estudos experimentais, no meu entender acomodados ao modelo clássico. O cientista poderá dispor de um software que funcionará como extensão do seu cérebro; da "conversa" com ele resultará inspiração e produção de pensamento.
 
Além da sofisticação tecnológica que se presume, não há aqui nada de verdadeiramente novo. Por muito que se afirme a "utilidade" desta ou daquela ferramenta, analógica ou digital, o que parece estar em causa é o que Hannah Arendt designou por "rebelião humana" contra a "condição humana" e contra o mundo que a acolhe. Acompanha-a o (estranho desejo) do ser humano de construir "algo produzido por ele mesmo", que o amplie e, em muitos casos, o substitua. E o leve para outros mundo.
 
Do livro A condição humana desta filósofa, publicado em 1958, transcrevo parte do admirável texto que constitui a sua introdução.
"Em 1957, um objeto terrestre, feito pela mão do homem, foi lançado ao universo, onde durante algumas semanas girou em torno da Terra segundo as mesmas leis de gravitação que governam o movimento dos corpos celestes – o Sol, a Lua e as estrelas. É verdade que o satélite artificial não era nem lua nem estrela; não era um corpo celeste que pudesse prosseguir na sua órbita circular por um período de tempo que para nós, mortais limitados ao tempo da Terra, durasse uma eternidade. Ainda assim, pôde permanecer nos céus durante algum tempo; e lá ficou, movendo-se no convívio dos astros como se estes o houvessem provisoriamente admitido na sua sublime companhia.
Este acontecimento, que, em importância, ultrapassa todos os outros, até mesmo a desintegração do átomo, teria sido saudado com a mais pura alegria não fossem as suas incómodas circunstâncias militares e políticas. O curioso, porém, é que essa alegria não foi triunfal; o que encheu o coração dos homens que, agora, ao erguer os olhos para os céus, podiam contemplar uma das suas obras, não foi orgulho nem assombro perante a enormidade da força e da proficiência humanas.
A reação imediata, expressa espontaneamente, foi alívio ante o primeiro «passo para libertar o homem da sua prisão na terra». E essa estranha declaração, longe de ter sido o lapso acidental de algum repórter norte-americano, refletia, sem o saber, as extraordinárias palavras gravadas há mais de vinte anos no obelisco fúnebre de um dos grandes cientistas da Rússia: «A humanidade não permanecerá para sempre presa à terra».

Há já algum tempo este tipo de sentimento vem tomando-se comum; e mostra que, em toda parte, os homens não tardam a adaptar-se às descobertas da ciência e aos feitos da técnica, mas, ao contrário, estão décadas à sua frente. Neste caso, como noutros, a ciência apenas realizou e afirmou aquilo que os homens tinham antecipado em sonhos – sonhos que não eram loucos nem ociosos. A novidade foi apenas que um dos jornais mais respeitáveis dos Estados Unidos levou finalmente à primeira página aquilo que, até então, estivera relegado ao reino da literatura de ficção científica, tão destituída de respeitabilidade (e à qual, infelizmente, ninguém deu até agora a atenção que merece como veículo dos sentimentos e desejos das massas).
A banalidade da declaração não deve obscurecer o facto de ela ser bem extraordinária, pois embora os cristãos tenham chamado esta terra de «vale de lágrimas» e os filósofos tenham visto o próprio corpo do homem como a prisão da mente e da alma, ninguém na história da humanidade havia alguma vez concebido a terra como prisão para o corpo dos homens nem demonstrado tanto desejo de ir, literalmente, daqui à Lua. Devem a emancipação e a secularização da era moderna, que tiveram início com um afastamento, não necessariamente de Deus, mas de um deus que era o Pai dos homens no céu, terminar com um repúdio ainda mais funesto de uma terra que era a Mãe de todos os seres vivos sob o firmamento?

A Terra é a própria quintessência da condição humana e, ao que sabemos, a sua natureza pode ser singular no universo, a única capaz de oferecer aos seres humanos um habitat no qual eles podem mover-se e respirar sem esforço nem artifício. O artifício humano do mundo separa a existência do homem de todo ambiente meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos.
Recentemente, a ciência vem-se esforçando por tornar «artificial» a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida numa proveta, no desejo de misturar, «sob o microscópio, o plasma seminal congelado de pessoas comprovadamente capazes a fim de produzir seres humanos superiores» e «alterar(-lhes) o tamanho, a forma e a função»; e talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida humana para além do limite dos cem anos.

Esse homem futuro, que segundo os cientistas será produzido em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada – um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo.
Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar da nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A questão é apenas de saber se desejamos usar nessa direção o nosso novo conhecimento científico e técnico – e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e portanto não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos profissionais.

segunda-feira, 12 de maio de 2025

ÂMBAR

Por A. Galopim de Carvalho
 
Âmbar ou resina fóssil, é também um produto de oxidação de substâncias de origem orgânica. Tem cor amarela-acastanhada ou avermelhada, é transparente e parte com fractura conchoidal, lembrando o pês.
 
O mais antigo âmbar foi encontrado em formações do Triásico, mas conhecem-se resinas fósseis no Carbonífero e no Pérmico. As mais divulgadas são as da região do Báltico e resultaram de acumulação de resina de coníferas no Eocénico.

O âmbar do Báltico, ou succinito (do latim succinum, com idêntico significado), foi alvo do interesse dos homens do Neolítico. 
 
Temos provas da sua procura e utilização intensiva nos séculos XVI e XVII. Do seu estudo, na região da Península de Sambia, por geólogos alemães, no século XIX, quando se iniciou a sua exploração industrial, ficámos a conhecer tratar-se de um tipo particular de depósito sedimentar com cerca de 40 Ma, associado a uma vasta estrutura deltaica oriunda da Escandinávia, espalhada em leque, na parte sul do actual mar Báltico. 
 
O âmbar aqui contido nas “argilas azuis” (blue earth) encontra-se também disperso, por desmantelamento desta unidade, nos depósitos do litoral da Alemanha, Polónia, Lituânia e outros países do sul do Báltico, para onde foi transportado por acção fluvio-glaciária durante o Pleistocénico, sendo hoje também aí explorado.

A transformação diagenética da ou das resinas originais no produto fóssil envolve a perda de substâncias voláteis e processos químicos de polimerização, oxidação e outros, com participação activa e reconhecida de bactérias. 
 
Na sua composição elementar participam carbono, hidrogénio, oxigénio e enxofre em muito pequena percentagem (0,5 a 1%), elementos que, sabe-se hoje, fazem parte da macromolécula do âmbar. A dureza, na escala de Mohs, varia entre 2 e 2,5, a densidade oscila à volta de 1 (um) e o índice de refracção está compreendido entre 1,539 e 1,542. Torna-se plástico a 250ºC e funde a 287–300ºC. Estudos recentes, com utilização de espectrometria de infravermelhos, revelam grande semelhança entre esta resina fóssil e a resina actual de Cedrus asiatica. Outras investigações apontam uma certa identidade química com a resina de Agathis australis, uma araucária de grande longevidade.
 
Aprisionadas no succinito do Báltico foram referenciadas mais de duzentas e cinquenta espécies vegetais, como líquenes, fungos, musgos, flores e frutos diversos, sementes, pólens e esporos. Tal diversidade aponta para florestas de montanha numa latitude então subtropical a tropical, como são actualmente as das regiões montanhosas do sudeste asiático, dominadas por coníferas, as responsáveis pela anormal produção de resina que, sedimentada e afundada, evoluiu, diageneticamente, para âmbar. Várias espécies de árvores devem ter concorrido nesta produção e a elas se deu o nome colectivo de Pinus succinifera. 
 
Do reino animal são igualmente muitas as espécies preservadas no âmbar. Variadíssimos artrópodes, formigas, mosquitos, aranhas, etc., etc., e até pequenos vertebrados (lagartos) têm sido encontrados e estudados nos seus mais ínfimos pormenores, anatómicos, histológicos e genéticos.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

O 18.º DOMÍNIO DE EDUCAÇÃO CIDADANIA? OU SERÁ O 19.º?

As minhas desculpas aos leitores por insistir na Educação para a Cidadania/Cidadania e Desenvolvimento. É que, tanto quanto vejo, há mudanças de relevo nesta componente do currículo escolar, as quais, por não tocarem directamente as disciplinas, tendem a passar despercebidas ou a serem consideradas de menor importância. 

O entendimento que tenho é diferente. Essas mudanças são, de facto, significativas: é significativa a publicação do Guião para a Educação Financeira na Educação Pré-Escolar, assim como é significativa a replicação de documentos e iniciativas afectos não só a este domínio dito de cidadania mas a vários outros. E é muito significativa a consubstanciação de um novo domínio de cidadania que estava esboçado pelo menos desde 2021.

É sobre este enigmático domínio, designado por Educação para a Ética e Integridade, que deixo breves notas. Peço ao leitor para seguir o meu raciocínio.

1. Na Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC) estão contemplados dezassete domínios de educação (ou será "literacia"?) para a cidadania, mas podem ser dezoito pois a Literacia Financeira e a Educação para o Consumo, que já estiveram separadas, têm, na verdade, identidade própria (ver aqui), que lhe é conferida pelos seus referenciais, materiais "pedagógicos", formação de professores, concursos, etc. A minha interpretação é que, numa tentativa de conter o número de domínios (que desde a reforma implementada logo no início do século, não tem parado de aumentar), a tutela decidiu arrumá-los num só.

Enfim, o que aqui é importante dizer é que a tal Educação para a Ética e Integridade não consta na Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, ainda que, em abono da verdade, nesta estratégia se deixe aberta a possibilidade de as escolas, caso entendam, incluírem outros domínios.

2. A Educação para a Ética e Integridade não me é estranha, já a havia incluído nas minhas aulas de formação de educadores e de professores como exemplo de reivindicação de novos domínios de Educação para a Cidadania. Efectivamente, vários são os que se encontram em lista de espera...

O historial, tanto quanto fui acompanhando na imprensa, é mais ou menos este: em 2001 foi criado o Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC) (ver aqui e aqui), destinado a “promover a difusão dos valores da integridade, probidade, transparência e responsabilidade”. Porém, em 2024, o estado do “mecanismo” (curiosa designação!) era consensualmente classificado como de “inacção” nos propósitos sociais, políticos e económicos a que se havia proposto. Também foram notícia divergências com o Governo sobre aspectos pouco edificantes, sobretudo quando se puxam os galões da ética (ver aqui, aqui e aqui). Não sei, não aprofundei, se foi por causa disso que o Conselho de Ministros aprovou recentemente mudanças na orgânica do tal MENAC (ver aqui).

3. Na sua origem, o "mecanismo" tinha prevista a Escola (leia-se Escola Pública) como "uma área prioritária de actuação" (ver aqui). Em 2020 noticiava a Agência Lusa (ver aqui):

"Segundo o projeto de proposta de lei das Grandes Opções do Plano (GOP) para 2021, o Governo quer «introduzir a temática ‘Corrupção – Prevenir e Alertar’ como área transversal a vários domínios da cidadania e desenvolvimento em todos os ciclos do ensino básico e secundário e dar relevo à matéria em unidades curriculares do ensino superior e em bolsas e projetos de investigação financiados por agências públicas»".

Várias escolas aderiram à solicitação (ver exemplos aqui, aqui, aqui) e algumas receberam "prémios e distinções" (ver aqui), parte do "pacote" destas iniciativas.

Nada de original, as organizações, empresas, grupos, etc. a quem cabe resolver problemas relevantes, difíceis, que o mundo apresenta, que têm essa responsabilidade, remetem-nos para a Escola, para que ela os assuma em primeira linha. Em concreto, para o saco sem fundo que é a Educação para a Cidadania. Esta circunstância merecia um comentário que, pela sua extensão e necessária profundidade, deixo para outra ocasião.

Ainda assim, neste caso, não é possível deixar de lado a questão: caberá à Escola funcionar como bastião de primeira linha da luta anticorrupção, que a avaliar pela criação do "mecanismo", é um problema social, económico e político seriíssimo? Tanto mais quando se percebe que o “mecanismo” não tem cumprido os objectivos para os quais foi criado?

Devo sublinhar que não se pode negar a importância da Escola na educação para os valores acima enunciados: eles têm de ser aí veiculados, na esperança de que os alunos os adoptem como marcas do seu (bom) carácter. Contudo, a Escola não pode, não deve assumir funções que cabem, por direito, a outras entidades.

4. Como bem sabemos, isto não importa ao Ministério da Educação, que acolhe mais esta, aquela e a outra entidade no dito saco sem fundo, sendo o "mecanismo" (tanto quanto sei) a mais recentemente acolhida, cenário em que "recomendou ao Governo" a aprovação do Referencial de Educação para a Ética e Integridade.

O documento, resultante de parceria e colaboração diversa (Direção-Geral da Educação, All4Integrity, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Mecanismo Nacional Anticorrupção, Transparência e Integridade de Portugal, e Universidade de Antuérpia) está agora em consulta pública.

Uma vez aprovado, constituirá suporte para o 18.º domínio de Educação para a Cidadania. Ou será o 19.º?

CONDENSAÇÃO

Por A. Galopim de Carvalho

Muitas pessoas perguntam porque é que, a garrafa de água ou de vinho ou a lata de Coca Cola, saídas do frigorífico para a mesa, começam a ficar cheias de bolhinhas de água, com se mostra na imagem. A resposta é simples, imediata e chama-se CONDENSAÇÃO.

Condensação, também chamada de liquefação, corresponde à passagem do estado gasoso para o estado líquido, cedendo calor, ou seja, arrefecendo. É o fenómeno físico inverso da vaporização ou evaporação. Vaporização ou evaporação é o processo em que partículas de uma substância no estado líquido, absorvendo energia (calor), passam ao estado gasoso ou de vapor.

 No caso vertente, o vapor de água da atmosfera, arrefece e condensa no contacto com a superfície fria das garrafas ou da lata.

Lembremos que a atmosfera terrestre é composta basicamente de uma mistura de gases, sendo 78% de azoto, 21% de oxigénio e, em menores quantidades, vapor de água, dióxido de carbono, árgon e traços de outros gases. Lembremos, ainda, que humidade do ar é a quantidade de água presente na atmosfera sob forma de vapor, e que varia em relação como clima e outros factores. Muito elevada nas regiões quentes e húmidas, como acontece na Amazónia, e muitíssimo baixa das regiões ditas áridas, como é o caso no deserto da Saara.

Hoje, por exemplo, a humidade do ar, em Lisboa, varia entre 51% e 87%. Estes números são valores relativos, pois indicam a quantidade de água existente no ar (humidade absoluta) e a quantidade máxima que poderia haver, à mesma temperatura, no chamado ponto de saturação (100%).

Mais pormenorizadamente, humidade relativa do ar é a relação entre a quantidade de vapor d'água presente no ar e a quantidade máxima que ele poderia conter na mesma temperatura, expressa em percentagens (%). Por exemplo, 100% de humidade relativa - o ar está completamente saturado com vapor d’água, situação comum em dias chuvosos ou nevoeiros; 50% de humidade relativa - o ar contém metade da quantidade máxima de vapor d’água que poderia conter àquela temperatura; menos de 30% de humidade relativa – diz-se que o ar está seco, situação comum em regiões áridas e semiáridas e nos dias de sol intenso, no Verão alentejano.

A EDUCAÇÃO FINANCEIRA NO PRÉ-ESCOLAR: ALÉM DO REFERENCIAL, AGORA O GUIÃO.

Na visita que ontem fiz ao site online da Direção Geral da Educação vi que se havia acabado de disponibilizar o Guião para a Educação Financeira na Educação Pré-Escolar (para o ensino básico e secundário já existiam Cadernos de Educação Financeira).

Explica-se, muito naturalmente, no texto de apresentação que o documento surgiu "no âmbito de uma parceria entre o Ministério da Educação, Ciência e Inovação, o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros (Banco de Portugal, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões) e quatro associações do setor financeiro (Associação Portuguesa de Bancos, Associação Portuguesa de Seguradores, Associação Portuguesa de Fundos de Investimento, Pensões e Patrimónios e Associação de Instituições de Crédito Especializado)
 
Não é estranho, portanto, para o Estado constituir uma parceria com entidades financeiras. Sobre isto já me pronunciei por diversas vezes neste blogue, mas não deixo de me surpreender com cada passo que é dado na ampliação e consolidação desta e de outras parcerias congéneres.

Abro o documento: são 96 páginas!
 
Exploro a estrutura: até certo ponto (p. 26) um texto, que se pretende enquadrador, denso, salpicado de referências bibliográficas (onde não faltam as da OCDE) que lhe conferem patine científica. A partir desse ponto, a referência aos temas e sub-temas que constam no Referencial de Educação Financeira e propostas de implementação (p. 32 e seguintes) e a apresentação e análise de projectos (p. 49 e seguintes).
 
Avanço para a leitura, mas passados poucos parágrafos desisto! Rediz-se o que é dito e redito até à exaustão nos documentos que indiquei em texto anterior e que conheço bem. Já fiz esse esforço (e que esforço!) de decifração e de interpretação, dispenso-me de o continuar.

Regresso à realidade e a realidade é muito simples: este documento destina-se a operacionalizar, a partir das Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar, o que se designa por "educação financeira" de crianças dos três aos seis anos de idade! E, pela capa, aqui reproduzida ao lado, percebe-se que sentido ela tem. Tão feliz que está o menino e a menina a brincar com a moeda oficial!
 
Sendo referida na bibliografia a Convenção sobre os Direitos da Criança (2019), seria de esperar que as entidades e autoras lhe tivessem prestado a devida atenção, nomeadamente no que respeita à dignidade humana, que toca as crianças de modo muito particular dada a sua particular vulnerabilidade, a formas, como as que estão em causa, de conduzir a vida pessoal naquilo que só às pessoas diz respeito.

terça-feira, 6 de maio de 2025

A "FILOSOFIA DE BUFFETT" NO SISTEMA DE ENSINO PÚBLICO PORTUGUÊS COM VISTA À "PRODUÇÃO" DE UMA GERAÇÃO DE EMPREENDEDORES FINANCEIROS

 
Revisito, no sítio online da Direção Geral da Educação, os materiais disponíveis para a "Literacia Financeira", que, aliada à "Educação para o Consumo" ("literacia" e "educação" são usadas indistintamente ainda que, como é óbvio, não signifiquem a mesma coisa), constituem uma das dezassete domínios da área curricular agora designada por "Cidadania e Desenvolvimento". 
 
No respeitante à "Literacia/Educação Financeira", a tutela disponibiliza os seguintes documentos/núcleos de documentos: "Plano Nacional de Formação Financeira", "Princípios Orientadores das Iniciativas de Educação Financeira", Referencial de Educação Financeira", "Cadernos de Educação Financeira", "Boas Práticas", "Recursos Pedagógicos", acções de "Formação" para Professores, "Notícias e eventos", "Projetos e iniciativas", e "Recursos Pedagógicos". 
 
Em destaque, na rubrica "Recursos" está uma "actividade de pesquisa e debate" intitulada "Quem foi Warren Buffett?". Desconhecendo quem é Warren Buffett fui, como se recomenda aos alunos, "pesquisar". É um self made man americano que cedo, ainda criança, revelou talento para fazer negócios. Enriqueceu, tornou-se multimilionário, um dos maiores do mundo. Como é normal, tornou-se filantropo, também um dos maiores do mundo (doará 99% da fortuna para causas que determinou em carta). É autor de obra considerável. Como Enriquecer na Bolsa com Warren Buffett, é um dos seus livros, que já teve doze edições em Portugal.
Warren Buffett é o que é: um empreendedor financeiro como poucos.

A questão que devemos, que temos obrigação de colocar é se, nas escolas públicas, exemplos de sucesso de empreendedorismo financeiro devem ser apresentados aos nossos jovens para que (como mencionei no texto anterior, que acima refiro) elas não conheçam outra possibilidade de existência e, acrescento agora, sem crítica sobre valores como sejam, por exemplo, a justiça distributiva.
 
Na verdade, esta "actividade", apresentada por uma entidade designada por Genially para ser "consumida" por professores, levará os alunos a conhecer as estratégias e a pertinência da "filosofia de Buffett" com vista à sua "aplicação no mundo real".

Como bem assinalou o leitor Rui Ferreira, com palavras retiradas da entrevista a Alain Supiot, "sobre o que é justo, há um problema". Era esse problema que deveria ser levado para a escola pública no âmbito da Educação para a Cidadania.

Nota: Estando Warren Buffett vivo, o tempo verbal usado no título da actividade será um engano?

domingo, 4 de maio de 2025

"COLONIALISMO DIGITAL". OS SERES HUMANOS COMO "PRODUTOS" APROPRIADOS POR EMPRESAS

Vale a pena também ver na RTP Play o documentário com o título Justiça Artificial: Justiça na Era do Colonialismo Digital, assinado por Simón Casal de Miguel (aqui). Reproduzo as intervenções que me parecem melhor esclarecer a expressão colocada em subtítulo: Colonialismo Digital.

21:00. Markus Gabriel (Filósofo, Universidade de Bona, Alemanha). Se usarmos um motor de pesquisa (…) estamos a fornecer dados a uma empresa porque as nossas acções deixam rastos (…). São acções que têm valor económico porque quantos mais dados a empresa tiver mais previsíveis somos nós e todos os semelhantes a nós.

22:00. Nick Couldry (Cientista da comunicação e sociólogo, London School of Economics and Political Science, Reino Unido). Esta mudança no marketing funciona utilizando toda a vida como um meio de produção eficiente a para a geração do lucro. É uma reinvenção estrutural da relação do capitalismo com o mundo.

22:34. Luciano Floridi (Filósofo. Universidade de Oxford, Reino Unido. Conselho de Especialistas de Alto Nível sobre Inteligência Artificial da UE). Estamos a assistir à maior experiência social de sempre na nossa História (…). Empresas que governam as nossas vidas [e] de forma cada vez mais profunda desempenham funções sociais nas nossas vidas.

22:59. Nick Couldry. O que acontece com os dados em grande escala (…) não se prende apenas com a continuidade do capitalismo. Pelo ano 1500, talvez um pouco mais cedo, Espanha e Portugal fizeram uma descoberta avassaladora. Descobriram algo chamado, ou a que chamaram, Novo Mundo, lugares diferentes onde havia outras pessoas com vidas prósperas mas que eles não conheciam e que tinham uma abundância de ouro, prata e outros recursos. Isso deu origem a um período de 50 anos de ponderação, particularmente na corte espanhola, sobre a importância disto, o que se poderia fazer dali com aquela oportunidade incrível. Desenvolveu-se gradualmente a ideia, uma espécie de colonialismo racional. O território, o ouro e a prata neste território e a mão de obra necessária para a sua extração estavam ali mesmo à mão de semear da Europa. Era assim o colonialismo original [cuja] essência era o simples acto de apropriação de ser uma parte do mundo a ficar com tudo, de dizer: «Isto pertence-nos. Não é vosso, é nosso». Defendemos que há um momento histórico de proporções parecidas a decorrer neste momento. Mas agora acontece que há um novo bem para possuir. Esse novo bem são os seres humanos, as suas potenciais experiências, as suas vidas interiores, os padrões que se observam na actividade que têm no mundo. É esse o novo mundo que tem à disposição.

22:45. Luciano Floridi. Desde o sistema de saúde ao mercado de trabalho, desde a educação à segurança, nomeadamente à cibersegurança, a presença destas empresas é notável.

24:45. Nick Couldry. (...) se o objectivo estratégico é introduzir a possibilidade de influência em todas as nossas interacções incluindo as mais íntimas existe uma possibilidade de influência. Isto transtorna o próprio conceito de liberdade (…). Só existe uma razão para capturar dados: a discriminação. É a distinção entre A e o que não é A, o que pertence e o que não pertence a uma categoria. A função dos dados é essa, dividir o mundo. É para isso que servem, têm de categorizar e discriminar.

27:09. Gry Hasselbalch (Chefe de investigação de Ética de Dados, Conselho de Especialistas de Alto Nível sobre Inteligência Artificial da UE). Ao dividir em caixas e categorias demasiado rígidas a vida e os destinos, tudo o que está entre os limites fica de fora. Quando há um sistema demasiado rígido a tentar prever tudo, que tenta controlar a nossa vida e torna-la mais eficiente só conseguimos ver na realidade o que pode ser útil. Assim é a inteligência automática (…). Penso que esse é o principal problema dos sistemas de inteligência artificial (…) Perdemos todas as oportunidades de agir com espírito crítico. Se houver alguém que contrarie a cultura e o sistema em vigor, o percurso previsto das coisas.

sexta-feira, 2 de maio de 2025

ACERCA DA DIGNIDADE HUMANA NO TRABALHO

Vale a pena ver na RTP Play (aqui) a entrevista com o título O trabalho não é mercadoria, que a historiadora Raquel Varela fez a Alain Supiot, especialista em filosofia do direito e direito social e do trabalho. Reproduzo três breves extractos:

01:03 "... considerar o trabalho como uma mercadoria é algo muito recente na história do trabalho. Surge com o capitalismo (...) – e isto foi o grande economista Karl Polanyi que o explicou – tratar como mercadorias três coisas que não são mercadorias: o trabalho, isto é, os seres humanos, a terra e a moeda (...). São ficções jurídicas que pressupõem, para serem defensáveis, que exista um direito ambiental que proteja a natureza, um direito do trabalho que proteja os seres humanos e uma legalidade monetária que garanta o valor da moeda. Na maior parte da História, o trabalho não é considerado uma mercadoria. Havia homens livres que viviam da venda do produto do seu trabalho e havia os escravos considerados eles próprios uma mercadoria."

39:26. "O neoliberalismo é o último avatar do cientismo. É a ideia de que haveria uma ordem espontânea no mercado que é preciso impor em todo o planeta e então surgirá a melhor justiça possível. E todas as tentativas dos seres humanos para questionar se é justo ou não, só irão entravar o bom funcionamento espontâneo, homeostástico da sociedade (...). Donde, a necessidade de restringir a democracia. Isto é claro nos autores neoliberais. O grande historiador do neoliberalismo é Quinn Slobodian que escreveu um belíssimo livro sobre ele. E eles estão todos de acordo ao dizer que a democracia não pode perturbar a distribuição das riquezas do trabalho porque isso é feito espontaneamente nas melhores condições possíveis pelo mercado. É por isso que foram admiradores de Pinochet, ou seja, de um sistema onde não existe essa perturbação. Hayek, que é uma das grandes figuras da economia neoliberal, para descrever o papel dos governos utiliza uma imagem muito eloquente: são como os relojoeiros que lubrificam os mecanismos do relógio. Isto é, o relógio funciona sozinho e o governo deve velar para que o mercado funcione por si só. Evidentemente, trata-se de uma miragem que produz injustiças e a injustiça produz sempre violência."

50:26. "Os nazis falavam de material humano e Estaline de capital humano. Estamos aqui numa espécie de cientismo que vê os seres humanos como matéria-prima e que é cego perante as questões antropológicas do trabalho. Por conseguinte, é preciso sair disso... Vou citar o Preâmbulo da Constituição da OIT [Organização Internacional do Trabalho] estabelecendo um regime de trabalho verdadeiramente humano (...) que permita a cada um incorporar uma parte daquilo que é naquilo que faz. Tanto Estaline como Hitler consideravam aqueles que metiam nos campos como escravos destinados à morte (...). Simone Weil diz, e muito bem, que é a projeção sobre o trabalho humano da noção física de força. Só vemos neles uma força que podemos dominar."

O Primeiro 1º de Maio

Por A. Galopim de Carvalho

Sete dia antes, Portugal inteiro saíra à rua, conhecidos e desconhecidos abraçavam-se, nos olhos havia sorrisos e lágrimas da alegria. Vitoriavam-se os militares que haviam posto fim a meio século de estúpido sufoco. Foram sete dias e sete noites de festa espontânea e verdadeira “O povo está com o MFA” e “O povo unido, jamais será vencido” ouviam-se por todo o lado. Os homens e as mulheres da minha idade (eu tinha então 43 anos) estávamos na fase mais pujante das nossas vidas quando fomos apanhados por este extraordinário o feliz acontecimento. 
 
Ninguém revelou o mais pequeno apego ao regime acabado de cair, no qual era suposto terem sido moldados. Não se viu um gesto nem se ouviu uma palavra em sua defesa. A injecção de ideologia salazarista que, como eu, receberam na Mocidade Portuguesa, não surtiu qualquer efeito. O ditador falecera quatro anos antes e, com ele, a filiação obrigatória na já então defunta organização da juventude do Estado Novo. Em termos que se visse, a Mocidade Portuguesa não fez nem os homens nem as mulheres que Salazar sonhou. Sentia-se que o país era nosso.

A fraternidade e a solidariedade pareciam ir desabrochar como os cravos de Abril. Mas foi Sol de pouca dura. Já o disse e direi tantas vezes quantas as necessárias, que a classe política, no seu todo, a quem os Capitães de Abril, há 51 anos, generosa, honradamente e de “mão beijada”, entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se sistematicamente de uma numerosa parcela deste povo, a raiar a miséria ou a viver dentro dela; a comer, cada vez em maior número, do Banco Alimentar Contra a Fome e de outas organizações de solidariedade social; sem habitações condignas para viver e a desanimar de esperas ao frio e à chuva, noites a fio, nas filas dos Centros de Saúde ou a morrer nas urgências dos hospitais ou à porta delas, nas ambulâncias. Classe política que tem vindo a perder preocupações pela ciência e pela cultura, que mantém uma justiça para ricos, à margem de outra para pobres e um sistema de educação que falhou redondamente.

Verdadeiros défices na educação, na formação e na preparação para uma cidadania plena abriram as portas a um populismo, a que a democracia deu voz e que, usufruindo da liberdade dessa mesma democracia, nos procura arrastar para um modelo de sociedade que a história já mostrou que sempre nos amordaçou, com consequências funestas. Estes, que não fizeram um gesto ou proferiram uma palavra em defesa do regime que caiu de podre, disfarçaram-se e abrigaram-se, depois, à sombra dos partidos de direita, legalizados, e esperaram, calados, até o momento em que os sucessivos erros dos políticos que nos têm governado e a Liberdade, lhes abriram portas e janelas e ei-los a somar os votos de uma população que se sente traída face às promessas daqueles dias radiosos.

Há 51 anos vivi intensamente esse dia, no trajecto do Marim Moniz à Alameda D. Afonso Henriques e no estádio da então FNAT (Federação Nacional para a Alegria no Trabalho), onde Mário Soares e Álvaro Cunhal, lado a lado, falaram para mais de cem mil manifestantes e helicópteros militares despejaram sobre eles braçadas de cravos.

Quem viu a manifestação do passado dia 25, na Avenida da Liberdade diz-me que há uma passagem de testemunho em curso, estampada nos rostos e cartazes de muitos jovens que estão a tomar a Liberdade nas suas mãos. Quero acreditar que assim seja e isso deixa-me feliz. Diz me, ainda, que eles eram a maioria dos presentes, e que os presentes eram muitíssimos.

Vamos, pois, acreditar que “O povo unido nunca mais será vencido!”

quinta-feira, 1 de maio de 2025

PARA UMA HISTÓRIA DA MINERALOGIA, NUMA CONVERSA FICCIONADA DO AUTOR COM D. JOÃO III

Por A. Galopim de Carvalho

(Do meu livro Conversas com os Reis de Portugal - Histórias da Terra e da Vida, Ancora Editora, 2013)


- Soube que estavas aqui e tenho uma série de questões que gostaria que me ajudasses a esclarecer. São questões no domínio da mineralogia.
- Se eu souber, tenho todo o gosto em vos ser útil.
- Percorro muitas vezes os mais variados departamentos e serviços desta Universidade que ainda considero como minha. Ultimamente tenho-me detido mais tempo e com particular atenção na esplêndida sala de mineralogia do Museu Mineralógico e Geológico, no antigo Colégio de Jesus. Os minerais expostos encantam-me pela beleza dos seus cristais, dos seus brilhos e cores. Fiquei, assim, curioso em saber mais sobre eles, sobre a natureza e a utilidade destas dádivas da criação. Sou hoje um curioso obsessivo acerca da história do que quer que seja. Das civilizações, das artes, das tecnologias, das coisas, em geral. De momento, estou interessado em seguir os passos que conduziram ao conhecimento que actualmente temos dos minerais.
- Desde os tempos mais remotos que os minerais despertaram a curiosidade e o interesse dos nossos antepassados. – Iniciei eu o discurso que me pareceu mais adequado ao interesse do monarca. – A utilização intensiva do sílex, do quartzo, da calcedónia, da obsidiana ou vidro vulcânico na feitura de utensílios vários e de objectos de adorno e votivos, permite-nos concluir que o homem pré-histórico os procurou sistematicamente e que, portanto, lhes dispensou tratamento racional, ainda que rudimentar. A manufactura de objectos de ouro, cobre, bronze e ferro mostra que as primeiras civilizações, prospectaram, exploraram e transformaram os correspondentes minérios. Os pigmentos minerais usados nas pinturas rupestres do Paleolítico superior, ou sobre os corpos dos seus protagonistas, permitem conclusão idêntica. Mesmo antes de terem nome já muitos minerais eram conhecidos e procurados pelas suas utilidades.
- Acho que encontrei a pessoa certa para conversar sobre este assunto. – comentou D. João III, satisfeito com esta introdução, o que me encorajou a subir o nível da exposição.
- A primeira obra escrita visando a mineralogia, de que temos conhecimento, – continuei - é um Tratado sobre as Pedras e foi escrito por Teofrasto, filósofo grego do século III antes de Cristo. Devemos a este discípulo de Aristóteles a primeira classificação mineralógica, baseada nas respectivas utilidades. Nesta classificação distinguiu, sobretudo, minérios, pedras preciosas e pigmentos. Há, no entanto, que ter em conta um longo caminho percorrido pelas civilizações que o precederam, no domínio do conhecimento das substâncias, das suas natureza e constituição. Em Roma, no século I, Plínio, o Velho, uma das vítimas da histórica erupção do Vesúvio, tem lugar de destaque através da sua “História Natural”. Nesta obra monumental, em 37 volumes, o autor retoma Teofrasto e volta a falar de minérios, pigmentos e gemas, uma outra maneira de dizer pedras preciosas.
- E a alquimia, de que tanto se fala, qual foi o seu papel nesta caminhada?
- Podemos dizer que a mineralogia percorreu a Idade Média de mãos dadas com a alquimia, numa prática e numa atitude trazidas pelos árabes, seus cultores, sob a designação de Al kimia, ou ”pedra filosofal”. Esta expressão encerra um conceito carregado de sabedoria, nem sempre devidamente apreciado. É necessário lembrar que todo este saber vem da Antiguidade, com destaque para a chinesa, a babilónica, a hindu e a egípcia, através da tradição popular e dos textos eruditos dos clássicos gregos e latinos. Os alquimistas desenvolveram a Polypharmacia, uma actividade onde se experimentavam, entre outros, processos como combustão, sublimação, dissolução e precipitação e que, de mistura com outros procedimentos fantasiosos à luz do conhecimento actual, deram nascimento, não só à química como à mineralogia.
- Quer dizer que a mineralogia tem aí as suas raízes?!
- Exactamente. Foi, de facto, no seio da alquimia que a mineralogia cresceu, deixando para trás muitas das concepções fantasistas e místicas dos escolásticos. Mas só cresceu e se afirmou como disciplina científica no decurso dos séculos XVIII e XIX, a par da química, fazendo-a progredir e tirando dela o essencial do seu próprio aprofundamento como ciência de acentuada organização sistemática. A partir da 2ª metade do século XVI e na sequência dos trabalhos de Agricola, os alquimistas começaram a dividir-se por duas correntes.
- É do meu tempo esse Agricola. Foi também um notável médico alemão, de nome Georg Bauer. Mas, desculpa a interrupção, ias referir as duas correntes em que se dividiram os alquimistas.
- Uma delas preconizava explorar a natureza das coisas, caminhando no sentido da química científica. A outra cultivava uma atitude fantasista e extravagante, em busca da pedra filosofal, responsável pela imagem negativa que, injustamente, tem sido divulgada em torno da alquimia e dos alquimistas. Esta outra corrente teve como resultado retardar o avanço da química e, consequentemente, da mineralogia, disciplinas que, como disse atrás, só começaram a ganhar foros de ciência a partir do século XVIII.
- E o que é que me podes dizer sobre os lapidários?
- Eram manuais de medicina e magia plenos de descrições de minerais e pedras, entre as quais muitas meramente fantasiosas. Sei que surgiram e se desenvolveram durante a Idade Média. Inicialmente manuscritos e, portanto, de divulgação limitada, passaram a ser impressos a partir da descoberta da Imprensa, no século XV.
- O meu mestre Tomás de Torres tinha um lapidário, mas confesso que, na altura, não me despertou grande curiosidade.
- O avanço do conhecimento deu lugar a obras escritas com preocupações de rigor científico, ao nível do possível na época, entre as quais a do italiano Ulisse Aldrovandi, no século que se seguiu ao vosso. Por causa dessa obra, este mestre da Universidade de Bolonha foi alvo de forte perseguição por parte do Santo Ofício.
- Hoje envergonho-me dessas perseguições, muito encorajadas pelo espírito retrógrado da Contrarreforma que dominou Portugal.
- Na mesma época, – continuei – o dinamarquês Nicolau Steno, sem qualquer oposição dos guardiões da Fé e do saber antigo, revelava haver constância nos valores dos ângulos entre faces homólogas nos cristais de quartzo. Trata-se de um pequeno, mas decisivo passo que abriu portas ao estudo dos cristais e, consequentemente, dos minerais. Deve dizer-se que a Inquisição mostrava alguma tolerância pelas investigações de pendor matemático e geométrico que não questionassem os princípios dogmáticos da Divina Génese. Tal não sucedeu, por exemplo, com o químico inglês Robert Boyle, na segunda metade do século XVII, conhecido no mundo científico por ter inovado o conceito de elemento químico. Na visão do poder eclesiástico, este conceito punha em causa o saber escolástico e os fundamentos tidos por intocáveis. Assim, este conceito de elemento químico teve de esperar cerca de um século para ser divulgado e, finalmente, aceite.
- Diga-se também, em abono da verdade, que foi no seio da Igreja que surgiu Inácio de Loyola e a Companhia de Jesus, contrariando uma postura tradicional da Santa Sé com a criação, entre muitas outras realizações, do que ficou célebre Colégio Romano, considerado na época uma instituição científica de vanguarda.

PERANTE SITUAÇÕES DE CRISE, UM SERVIÇO NACIONAL DO NUMERÁRIO COMO SERVIÇO DE INTERESSE GERAL

Tomamos a liberdade de reproduzir este texto, gentilmente enviado pelo Professor Mário Frota, Mandatário Nacional da Denária Portugal.

O dinheiro em espécie – as notas e moedas com curso legal - constitui declaradamente:

um símbolo da soberania nacional;
um direito fundamental dos cidadãos;
um serviço de interesse geral na titularidade do Banco Central (?).
Milhões de cidadãos se viram impedidos de realizar pagamentos através dos meios digitais em razão do colapso das redes eléctricas e das quebras sistemáticas das comunicações electrónicas durante o período em que o País esteve privado de energia eléctrica em razão de um fenómeno cujas causas ainda se acham por apurar. O que impediu recorressem aos terminais nos pontos de venda, às aplicações móveis ou aos ATM’s.

O dinheiro em espécie foi, com efeito, a alternativa residual e, a todos os títulos, efectiva, na circunstância.

O facto revelou a manifesta fragilidade do sistema digital e reforçou a convicção de que só o ‘dinheiro em espécie’ – o papel moeda com curso legal – é susceptível de acudir aos cidadãos em circunstâncias tais.

A DENÁRIA, atenta a tais fenómenos e em obediência ao seu projecto programático, entende – na esteira de congéneres suas, na Europa - exigir dos poderes públicos a constituição de um autêntico SERVIÇO NACIONAL DO NUMERÁRIO, como serviço público essencial, ou seja, um serviço de interesse geral, disponível nos quatro cantos do território nacional.

O Parlamento terá de considerar o ‘dinheiro em espécie’ como uma infra-estrutura crítica nacional, em linha com as directrizes a que se sujeitam a segurança e a resiliência dos serviços públicos essenciais de que o Estado é, perante os cidadãos, primordial garante.

Trata-se, com efeito, de um tema relevante no domínio da segurança nacional e como garantia de direitos fundamentais em que os cidadãos se acham investidos.

O ‘dinheiro em espécie’ tem de estar acessível e protegido a todo o transe.

O ‘dinheiro em espécie’ tem de estar disponível em todo o Território Nacional, impondo-se o reforço da deficiente infra-estrutura das Caixas Automáticas de Distribuição de Numerário (ATM), em particular nas zonas rurais mais deprimidas ou com uma fraca densidade de implantação de instituições de crédito.

Urge que o Estado chame a si a realização de Campanhas de Consciencialização dos Cidadãos em torno da relevância do ‘dinheiro em espécie’, como reserva estratégica nacional e no quadro das reservas patrimoniais pessoais, a título de prevenção contra surpresas como as que vêm ocorrendo ultimamente com os efeitos perniciosos que se conhecem.

Conquanto o Parlamento haja sido dissolvido e o Governo permaneça em gestão, a situação é tão premente que urge se preparem os instrumentos indispensáveis a que se consagre, sem detença, o que ora se preconiza em letra de lei.

Um Serviço Nacional do Numerário com a relevância que um tal direito fundamental representa é um passo decisivo para a consideração do ‘dinheiro em espécie’ como algo de nuclear no actual congenho e de futuro.

Mário Frota
Mandatário Nacional da Denária Portugal

sexta-feira, 25 de abril de 2025

"EDUCAR" PARA O APRISIONAMENTO EM VEZ DE EDUCAR PARA A LIBERDADE

Hoje, 25 de Abril, dia em que se comemora a Liberdade, é importante ter consciência que as suas ameaças vão além das convencionais. Algumas estão a entrar na escola ao abrigo das políticas de inovação, em nome da aprendizagem personalizada. Em vez de se dar a conhecer este valor ético aos mais jovens, de os levar a acarinharem-no, de os envolver na sua defesa, controlam-se, por meios tecnológicos, os seus comportamentos e tenta-se controlar os seus pensamentos. Que sentido de Liberdade será o deles quando forem adultos?

Não podemos deixar de colocar a pergunta e de conjecturar respostas, o mais possível informadas em trabalhos sérios, como é o caso do Relatório sobre o Estado da Aplicação das Novas Tecnologias à Vida Humana (ver aqui), elaborado pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e publicado em Dezembro do passado ano.

Sobre os sistemas de vigilância educacional, sobretudo os que fazem monitorização da concentração e da atenção dos alunos, diz-se nele o seguinte (pp. 24-26): 

“Estas tecnologias de imagem poderão rapidamente estender-se a produtos de consumo generalista, como dispositivos portáteis para monitorizar a atividade cerebral, que exigem uma análise cuidada em termos de segurança e eficácia. De facto, evidenciando que este tipo de tecnologia está a evoluir para domínios não-clínicos, a empresa (...) comercializa uma fita ou banda que se coloca à volta da cabeça para registar algumas modalidades de atividades do cérebro, mostrando a referida atividade de diferentes formas (por uma escala de cores ou imagens, por exemplo).

Para além do seu uso para promoção do relaxamento e da meditação, a empresa propõe o uso desta fita para outras finalidades como seja uma denominada ´competição social´: permite identificar, por exemplo, a pessoa mais alegre numa sala de reuniões, ou a mais concentrada numa dada tarefa. Outra possibilidade seria publicar nas redes sociais o estado de espírito do utilizador num dado momento, baseado nas leituras dos dispositivos que usa (…). Exatamente o mesmo princípio tem sido estudado pela (...), que, em vez de uma fita na cabeça usa óculos de realidade aumentada que se ligam a uma pulseira capaz de ler sinais do corpo do utilizador, incluindo sinais cerebrais.

Portanto, existe a possibilidade de empresas como a (...), pelo menos, tentarem ter conhecimento do que se passa no cérebro dos utilizadores deste dispositivo.

Na China, o uso de bandas EEG colocadas na cabeça de crianças para seguir a sua atividade cerebral utilizando eletroencefalografia (EEG), acoplado a sistemas de videovigilância, permite aos pais monitorizar remotamente o esforço de concentração dos filhos (desenhado para jovens dos 6 aos 16 anos) em atividades escolares.

Confronta-se, assim, a importância da educação e a liberdade do indivíduo.

As bandas EEG supostamente funcionam medindo a atividade cerebral e apresentando o resultado através de um código de cores: uma luz vermelha indica um estado de 'preocupação', amarelo significa 'normalidade' e azul representa 'distração'. Uma aplicação de telemóvel utiliza um algoritmo para transformar as diferentes cores no grau de concentração do jovem. O qual, por sua vez, e utilizando o dispositivo como guia, poderá influenciar o resultado final alterando a sua atividade cerebral (…) .

As considerações éticas nestes casos [neuroimagem cerebral] incidem necessariamente sobre:
1) a privacidade e proteção de dados, já que a neuroimagiologia revela informações pormenorizadas sobre o funcionamento do cérebro, que podem ser utilizadas abusivamente (…);
2) a dependência excessiva e utilização inadequada na imagiologia cerebral, respetivamente, tomando-a como suficiente para fazer diagnósticos (…) o que, por sua vez, pode conduzir a (…) sobrediagnósticos ou a uma interpretação incorreta;
3) o consentimento informado, assegurando que [as pessoas] compreendem a natureza do exame ou dos dispositivos utilizados, os riscos (físicos e psicológicos dos mesmos) e a forma como os seus neurodados serão utilizados, armazenados e protegidos.”

quinta-feira, 24 de abril de 2025

A MUDANÇA QUE PRECISAMOS DE FAZER NA EDUCAÇÃO

"Uma boa educação escolar em tenra idade coloca sementes que podem produzir efeitos durante toda a vida (...). A educação será ineficaz e os seus esforços estéreis, se não se preocupar também por difundir um novo modelo relativo ao ser humano, à vida, à sociedade e à relação com a natureza. Caso contrário, continuará a perdurar o modelo consumista, transmitido pelos meios de comunicação social e através dos mecanismos eficazes do mercado" (parágrafos 214 e 215).

terça-feira, 15 de abril de 2025

A AVALIAÇÃO TOTALITÁRIA NO ENSINO SUPERIOR

O que designei, em texto anterior, por "avaliação totalitária" (ver aqui) tem, de facto, o sentido que expliquei: avaliar tudo o que interessa, de modo contínuo e com envolvimento de todos os participantes, com recurso a critérios que se prendem com uma certa acepção de eficácia. Logo, essa avaliação não é neutra (de resto, nenhuma avaliação o é) pois decorre de escolhas que são previamente feitas: escolhe-se isto em vez daquilo.

EM NOME DA "QUALIDADE"

Trata-se de uma avaliação que é feita em nome da "qualidade" e das "boas práticas" (no sentido que lhe é dado no campo fabril, de potenciar os recursos e evitar o desperdício) e que admite uma mesma concretização, quer se reporte a sistemas sociais (como o judicial, de saúde ou educativo) quer se reporte a casas de banho das autoestradas.

É a avaliação que, em primeira instância, apela à "satisfação do cliente". O "cliente" é chamado e diz. Não precisa de saber nem de compreender, expressa o seu agrado ou desagrado, imediato e superficial, acerca do serviço que lhe foi prestado. Assinala-o numa escala tipo Lickert e escusa de justificar, mas se o quiser fazer está à vontade... Ah, sim, e não precisa de se identificar, o anonimato é o seu abrigo seguro.

Tudo isto leva o "cliente" a supor que tem poder, que a sua voz há-de ser processada e que dela advirão consequências. Dificilmente vislumbrará que aquilo que se lhe solicita recai sobre aspectos que interessam a quem tem, de facto, poder para conceber essa avaliação, a qual controla os mais diversos domínios da vida colectiva e pessoal.

NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR

Tendo as instituições de ensino superior adoptado uma lógica empresarial, solicitam aos seus "clientes" ("estudantes") que avaliem os serviços e as disciplinas ("unidades curriculares") que frequentam, solicitam que avaliem os serviços, as disciplinas que leccionam e, ainda, que se pronunciam sobre a avaliação que os estudantes fazem das mesmas. Para tanto, usam-se questionários online.  

Se lermos a Lei (aqui e aqui), percebemos que os itens constantes nestes questionários correspondem directamente ao que nela está previsto e ao "espírito" que veicula. As instituições parecem limitar-se a operacionalizar e executar, por isso, tais itens (alguns deles iníquos) são muito parecidos de instituição para instituição.

Detenho-me em dois aspectos muito óbvios que, entre vários outros, distorcem esta avaliação. 

Um aspecto é a dupla condição (de avaliador e de avaliado) que é conferida aos mesmos sujeitos. Se A avalia B e B avalia A, cria-se, mesmo que implicitamente, uma tensão entre ambos, procurando cada um geri-la em função das vantagens que possa retirar para si mesmo.

Outro aspecto, ligado ao anterior, é o desequilíbrio em termos de objectividade e responsabilidade, que se introduz na relação pedagógica. Quando se trata de avaliação sumativa, os professores têm (e bem) de atender aos regulamentos e normas da instituição (que são cada vez mais e mais pormenorizados), têm (e bem) de explicitar (no início do semestre/ano lectivo, por escrito) as opções para as "unidades curriculares" que leccionam, têm (e bem) de se guiar por critérios pertinentes e objectivos de classificação, têm (e bem) de corrigir com rigor de modo que os estudantes possam (caso queiram) perceber a sua prestação. Tudo isto é público e requer a assinatura dos professores. Por seu lado, aos alunos é solicitado que "se pronunciem" sobre o trabalho dos professores sem outro suporte que não seja as suas percepções e afins. E anonimamente.

Deixo o leitor com as palavras de Raquel Varela, uma das poucas pessoas, entre professores, que em Portugal tem trazido a debate este cenário muito mais complexo do que descrevi e que, no meu entender, arruína o ensino superior (ver aqui):

"Pode um aluno avaliar um professor? (...). É legal e legítima a avaliação anónima de docentes, e com as cores e os números com que se avalia num supermercado?

Faço uma declaração de interesses. Como aluna recusei-me, por escrito, a fazer avaliações anónimas, sempre. Como professora em qualquer instituição, e estive em várias, sou contra a figura anónima, seja do que for, avaliação, denúncia. É coisa de ditaduras (...).

Fiz duas ou três queixas na vida em serviços, inúteis, mas por escrito assinadas. E quando fui alvo de assédio moral pela direcção de uma instituição onde estava, escrevi uma carta, com cc para toda a direcção superior, relatando, assinando, e tinha um contrato precário (...). Era o que defendia com 18 anos e o que defendo com 46 anos.

O medo, de perder o emprego, ou ter conflitos, ou de ter más notas, não pode legitimar a bufaria e a cobardia, sob pena de vivermos numa sociedade onde não é possível viver (...).

A sua gravidade, porém, deixa a descoberto a Universidade neoliberal, e em geral a completa inversão da noção de educação e avaliação, que tomou conta das escolas públicas e também do ensino superior no mundo (sim, em todo o mundo neoliberal) (...).

É eticamente perigoso, incluindo para a saúde mental do próprio professor. Não é possível um aluno avaliar um professor (...).

As instituições de ensino devem ser espaços de conhecimento apaixonante? Ou pelo contrário empresas de venda de certificados, com notas inflaccionadas, ao sabor da delação e do medo? (...).

Assim, não se faz ciência, não se educa, não se promove o conhecimento. Trata-se de gestão pela ameaça. Deplorável."

UM TEXTO QUE NÃO SENDO SOBRE EDUCAÇÃO ESCOLAR PÚBLICA TEM TUDO A VER COM ELA

O Diário de Notícias publicou ontem um artigo de opinião com o título Liberalismo: a política como projeto pessoal , assinado por José Mende...