quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Frankenstein 200.0


Recupero um ensaio breve publicado no JL em 2018 a propósito dos duzentos anos do Frankenstein de Mery Shelley

Imagine-se a comissão de ética de uma universidade a analisar um projecto a submeter por uma equipa multidisciplinar de cientistas de vários países e empresas de biotecnologia a financiamento europeu: criar um ser humano a partir de tecidos e órgãos cultivados em laboratório ou colhidos em cadáveres. Um cenário equivalente é proposto na revista Science de Janeiro de 2018 para evocar os duzentos anos de Frankenstein de Mary Shelley: Victor Frankenstein propõe ao comité de ética da Universidade de Ingolstadt usar um “mecanismo de animação electroquímica” numa montagem de “peças anatómicas” e “restaurar a vida” assegurando que seguirá as melhores práticas éticas em relação à criatura obtida. Para além das dúvidas científicas sobre a viabilidade destes projectos, as propostas seriam muito provavelmente rejeitadas devido aos problemas éticos que levantam. Em Frankenstein o projecto é realizado em segredo e somos convidados a reflectir sobre as consequências deste ter sido realizado.

Ao longo dos últimos duzentos anos, os detalhes do processo de animação da criatura têm sido imaginados, a partir dos indícios presentes no texto e da ciência da época, como sendo de natureza eléctrica e química. Humphrey Davy, químico e poeta, protótipo do cientista do Romantismo, autor de trabalhos pioneiros de electroquímica, é citado de forma quase literal pela voz do professor de química Waldman, “com as mãos sujas e debruçados sobre os seus microscópios e cadinhos, [os químicos] fazem milagres; penetraram nos segredos da Natureza, sobem aos céus; descobriram a circulação do sangue e a natureza do ar que respiramos. Adquiriram poderes quase ilimitados; comandam o raio do céu, simulam os terramotos e até zombam do mundo invisível servindo-se das suas sombras“. Também a influência de Percy Shelley, amante e futuro marido de Mary, com o seu fascínio pela alquimia, química e electricidade, assim como os ecos das demonstrações com electricidade e cadáveres de Aldini, são relevantes para a formação desta imagem. O fascínio pela electricidade, vista como uma panaceia, mantém-se até ao século XX, mas já está presente no final do século XVIII. A ideia de que a electricidade poderia ser usada para ressuscitar pessoas “aparentemente mortas”, que conduziu ao desfibrilador actual, já aparece, embora de forma tímida, por exemplo, num texto do químico, farmacêutico e médico português, Manuel Henriques de Paiva, publicado em 1790, Método de restituir a vida às pessoas aparentemente mortas por afogamento ou asfixia.

Embora Victor Frankenstein refira a passagem por cemitérios, morgues e matadouros, quase nada no texto de Frankenstein se opõe a uma visão actualizada, obviamente anacrónica mas plausível, dos processos usados para animar a criatura. É certo que no livro não encontramos o trabalho de equipa da ciência actual, nem a participação de empresas, nem o financiamento público, ou a submissão prévia a uma comissão de ética, pois a narrativa segue os padrões da ciência romântica e a imagem do cientista solitário. Mas as possibilidades actuais de transplante de corpo (ainda em discussão), o uso de imunossupressores, a fecundação in vitro, a genética, a modificação genética, a edição de genes e a terapia genética, a clonagem, a biotecnologia, o crescimento de tecidos e órgãos in vitro, por exemplo, não são excluídos pelo texto. O facto de não “desvendar” o processo de animação da vida, um segredo que só Victor Frankenstein possuía e ainda hoje não conhecemos, faz com que um livro escrito antes da síntese da primeira molécula orgânica a partir de matéria inorgânica, do desenvolvimento da assepsia, da anestesia e do coma induzido, da identificação dos microorganismos e dos vírus, do estabelecimento da estrutura tridimensional das moléculas, em particular dos aminoácidos e das proteínas, da descoberta do ADN e dos genes, entre tantas outras coisas desconhecidas no tempo de Mary Shelley, continue relevante para a discussão dos problemas éticos e científicos actuais.

Frankenstein é muito mais do que a primeira obra de ficção científica no sentido contemporâneo ou um reflexo do Romantismo e do deslumbramento e temor perante a ciência. É um livro com múltiplas leituras que propõe dilemas éticos mais do que problemas técnicos e científicos. No final, o que acaba por ser mais importante são as questões morais que o livro coloca. Podemos ou deveremos fazê-lo? Se o fizermos como deveremos agir? De acordo com isso, vários autores têm referido Frankenstein como uma história a ser lida por todos os cientistas, como parte da sua formação.

O professor Waldman, ecoando Davy, diz a Victor que “para ser um cientista e não apenas um experimentador, deve estudar todos os ramos da ciência”. Abel Salazar, mais tarde, dirá que “um médico que só sabe medicina, nem medicina sabe”. A formação humana é fundamental, mas Frankenstein vai mais longe e interroga-nos sobre os limites da ciência e as falhas do escrutínio científico e ético realizados pelos pares e sociedade.

Sem comentários:

NOVA ATLÂNTIDA

 A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à info...