domingo, 1 de junho de 2014

A nossa excelência em "educação financeira"

Os alunos portugueses podem mostrar dificuldades em matemática, português e ciências; de história, artes e filosofia podem não ter mais do que uma pálida ideia; da matriz clássica podem nada saber, mas são bons em educação financeira!

Talvez alguns leitores não saibam que o currículo é composto por disciplinas reconhecidamente escolares, como aquelas que acima referi e por um leque de "educações para...", (forçadamente) agregadas na difusa expressão que é a "educação para a cidadania".

Estas "educações para..." são propostas elaboradas pelos mais diversos parceiros educativos, forças vivas da comunidade, forças de pressão... acolhidas pelo Ministério da Educação, e escolhidas pelas escolas. Estas, ao abrigo das figuras de Autonomia de escolas e de Gestão flexível do currículo, optam, em geral, por uma ou duas, consoante os "interesses e necessidades" das populações que servem.

Com origem em instâncias internacionais, que ainda não consigo identificar bem, a "educação financeira" foi a última a dar entrada na página da Direcção-Geral de Educação, mas de 2012 até ao presente conseguiu uma implantação notável.

Efectivamente, a parceria entre o Banco de Portugal, o Instituto de Seguros de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, levou à concretização do Plano Nacional de Formação Financeira, do Referencial de Educação Financeira, que tem a forma de metas curriculares, e do Programa de Formação de Professores... Além disso, disponibilizam-se, em livre acesso, actividades pedagógicas e materiais didácticos, prevêem-se encontros com diversas entidades da finança e visitas a instituições, não faltam as camisolas com os símbolos a decorar, nem o hino para os alunos cantarem afinada e entusiasticamente nem a celebração do dia da educação financeira, que é a 31 de Outubro. E... talvez me esteja a escapar alguma coisa.

A abrangência é nacional e contempla todos os patamares de escolaridade, desde o início do ensino básico até ao final do ensino secundário, por isso qualquer escola pode desenvolver o seu próprio projecto, sob a designação genérica de "Todos contam", que depois, caso entenda, submete a concurso nacional e internacional (aquiaqui e aqui).

Numa cimeira anual com a sugestiva designação "Child and youth finance international", com ligações à UNICEF e à OCDE e que tem lugar na sede da ONU (tudo, portanto, ao mais alto nível), premeiam-se os melhores do mundo. E nós fomos os ganhadores da Europa!

A presidente da Comissão de Coordenação desse Plano Nacional declarou, confiante, que estamos no caminho certo e que há muitos países a querer segui-lo (aqui). Ficámos, pois, a saber que este país deprimido, onde a riqueza se distribui de forma desigualitária, onde o sistema social colapsa, onde os desempregados são convidados a sair, onde os mais fracos são visto como um peso... que nos tornámos em tempo record numa referência em educação financeira. Promete, por isso, essa senhora continuar o seu trabalho, quer ir mais além... E assegura que há "um conjunto de iniciativas a serem preparadas".

Já ouvi falar, e mais do que uma vez, que esta "educação para..." poderá transformar-se numa disciplina obrigatória... não sei se é a essa transformação a que se refere... Se isso acontecer, presumo que os conteúdos sejam mais ou menos os que constam na imagem (retirada de um dos filmes referidos acima). Tudo é possível!
Maria Helena Damião

5 comentários:

perhaps disse...

Isto assusta. Faz tábua rasa da educação, como se todo o percurso que já se fez - sem a disciplina de educação financeira - fosse nada e só agora comecemos, suponho eu, a saber gerir os nossos dinheiros. Como se essa gestão não dependa também das outras disciplinas que agora nem interessam.É a formatação do indivíduo. O mesmo é dizer, a sua redução ao mínimo possível.
Mas que bons somos a ganhar prémios desta natureza - provavelmente porque os outros mais assisados países não estão, "nem aí", para o assunto.Pronto, não há que temer a dívida, esta gente que começa vai endireitar - no pleno sentido - tudo.
Tenho esperança que seja uma moda e passe. Porque os saberes e valores de até aqui, os que ficam, hão-de voltar. Ou então Nietzshe enganou-se, não era o superhomem a chegar, mas um apêndice abortável.

Ana Lúcia Neves disse...

As pessoas grandes gostam de números. Quando vocês lhes falam de um amigo novo, as suas perguntas nunca vão ao essencial. Nunca vos perguntam: “Como é a voz dele? De que brincadeiras é que ele gosta mais? Ele faz colecção de borboletas?” Mas: “Que idade é que ele tem? Quantos imãos tem? Quanto é que ele pesa? Quanto ganha o pai dele? Só assim é que pensam ficar a conhecê-lo. Se vocês disserem às pessoas grandes: “Hoje vi uma casa muito bonita de tijolos cor-de-rosa, com gerânios nas janelas e pombas no telhado…”, as pessoas grandes não a conseguem imaginar. É preciso dizer-lhes: “Hoje vi uma casa que custa vinte mil contos.” Então, já são capazes de exclamar: “Mas que linda casa!”
Assim, se lhes disserem: “A prova de que o principezinho existiu é que ele era encantador, é que ele ria e queria uma ovelha. Querer uma ovelha é a prova de que existe”, as pessoas grandes encolhem os ombros e chamam-vos crianças! Mas se lhes disserem: “O planeta donde ele vinha era o asteroide B 612”, as pessoas grandes ficam logo convencidas e não se põem a fazer perguntas. As pessoas grandes são assim. Não vale a pena zangarmo-nos com elas. As crianças têm de ser muito indulgentes para as pessoas grandes.
O principezinho, Saint-Exupéry.

Efectivamente, temo pelo presente e futuro das crianças e jovens do nosso país. Temo pelos alunos que, mesmo frequentando a escola, e cada vez mais tempo, continuam a revelar grandes dificuldades, nomeadamente, na sua língua materna… Crianças e jovens que não sabem ouvir nem expressar-se…
Provavelmente, deveria estar optimista pois, mesmo sabendo que os nossos alunos sabem cada vez menos Português, mesmo não sabendo apreciar “uma casa muito bonita de tijolos cor-de-rosa, com gerânios nas janelas e pombas no telhado…”, temos alunos que poderão estar a ser preparados para saber reconhecer o verdadeiro valor das coisas materiais.
Como mãe, e uma vez que a escola parece não estar a conseguir cumprir o seu papel, ensinando os alunos, preocupa-me saber que o tempo escolar dos nossos alunos está a ser passado em tantas educações para…
“A Educação Rodoviária”, “A Educação para o Desenvolvimento”, “A Educação para a Igualdade de Género”, “A Educação para os Direitos Humanos”, “A Educação Financeira”, “A Educação para a Segurança e Defesa Nacional”, “A promoção do Voluntariado”, “A Educação Ambiental/Desenvolvimento Sustentável”, “A Dimensão Europeia da Educação”, “A Educação para os Media”, “A Educação para a Saúde e a Sexualidade”, “A Educação para o Empreendedorismo” e a “Educação do Consumidor”.

A acção educativa não se esgota, ou não se deveria esgotar, na Escola. Como mãe, espero que a Escola ensine ao meu filho o que é especificamente escolar. A escola deve existir para ensinar a todos o que é essencial, estruturante e obrigatório. Quanto ao resto, isso deve ser opcional, deve responder a necessidades específicas de diferentes crianças, pois não podemos acreditar, por muito tentador que seja, que a Escola consegue resolver tudo e colmatar todos os problemas. Como mãe, espero mesmo que a Escola não procure resolver “tudo” com o meu filho, pois valorizo outros espaços de educação, que considero respostas para o seu desenvolvimento saudável e harmonioso.

Ana Lúcia Neves

Iluminação disse...

Parece que os pais não estão a conseguir cumprir o seu papel...

Anónimo disse...

Os pais podem estar - nem todos - a não conseguir cumprir o seu papel. Ninguém é perfeito. E julgo que foi Freud que afirmou que, em educação, façamos como fizermos faremos sempre mal. Mas não podemos deixar que a escola pretenda substituir-se aos pais. São papeis diferentes e necessários. Não reversíveis.

Anónimo disse...

Bem há cerca de 5 anos que saí de Portugal, mas continuo a seguir as notícias com muito interesse especialmente no que diz respeito à Educação e Ciência. E visto de fora o panorma parece estar cada vez pior.

A única coisa que não entendi e como tal tenho que perguntar: esses doutos senhores que conseguem impingir esses programas a que dão o nome de educacionais recebem algum tipo de subsídio/remuneração para espalharem as suas doutrinas ou há uma alguma réstia de juízo em quem (des)governa Portugal e fazem-no com os seus encargos?

A panaceia da educação ou uma jornada em loop?

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