sábado, 11 de janeiro de 2025

"A fronteira entre ciências e letras é arbitrária"

 Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião

Na Europa e na América, os sistemas de ensino públicos descartam as artes e as humanidades, fazendo prevalecer a ciência que pode "servir" a tecnologia". Isto acontece no ensino não superior e no superior: marginalizam-se ou extinguem-se disciplinas, vias de escolaridade, cursos que "não têm utilidade" no mercado de trabalho, onde cada um "vale" o preço que lhe é conferido pelas competências funcionais que adquirir e possa pôr a render nesse marcado. 
 
Sobre este e outros temas, relacionando a actualidade com o passado sempre presente, nos fala Irene Vallejo, no livro ao lado indicado e do qual extraímos a seguinte passagem:
 
“A fronteira entre ciências e letras é arbitrária. Para os gregos antigos só existia o território comum do saber e o obstáculo único da ignorância. Os primeiros filósofos foram físicos e o grande Aristóteles era biólogo. Os pitagóricos descobriram a importância oculta da matemática na música e o escritor romano Lucrécio expôs a teoria dos átomos em versos apaixonados. O antagonismo atual entre as duas culturas é irreal: precisamos de equações e de poesia. Ninguém é mais esperto por escolher o cálculo ou a história. As metas dos cientistas e dos artistas são as mesmas: compreender o mundo, derrubar preconceitos, tornar-nos livres. Por isso, devíamos deixar de levar estas divisões tão à letra ou considerá-las de ciência certa.” 
 
Irene Vallejo, O Futuro Recordado, Bertrand Editora, 2024, pág. 28.

3 comentários:

CCF disse...

Concordo! Fiquei curiosa com o livro, li o outro e gostei bastante.

Anónimo disse...

As autoridades políticas na área da educação atualmente já legislam muito para além das pressupostas diferenças entre as Letras, as Artes e as Ciências. Agora, o mais importante, pelo menos em Portugal, é manobrar os instrumentos jurídicos e administrativos de maneira que os resquícios de cultura burguesa, que ainda conspurcam os sistemas de ensino públicos, não constituam entraves à prossecução de uma escolaridade secundária, obrigatória e de sucesso para todos os cidadãos. Então, desvalorizando os saberes escolares, o trabalho e a autoridade dos professores, estamos a abrir o caminho, da indisciplina, violência e ignorância, por onde todos os alunos, incluindo os mais pobrezinhos, alcançarão a prometida terra do diploma!

Carlos Ricardo Soares disse...

É comum dizer-se que as fronteiras entre países são imaginárias, convencionais e, algumas vezes, arbitrárias. Na realidade, até existem fronteiras físicas, barreiras, muros, muralhas a dividir territórios e países. São fronteiras impostas, separações políticas com localização geográfica.
Porém, o vocábulo fronteira tem outros significados, e é até muito rico, prestando-se a usos diversos, que vão desde a poesia lírica, até à epistemologia, passando pela moral e a ética, porque a fronteira entre valores, conceitos, representações, normalmente, é muito difícil de traçar e não pode ser imposta, ao contrário das outras fronteiras geográficas.
Nesta acepção mais ampla, é de admitir que o termo fronteira signifique o que separa, ou distingue, que justifique essa distinção, se é que ela existe.
Em qualquer disciplina ou ramo, seja da filosofia, seja das ciências, do Direito, enfim, da cultura e do conhecimento, normalmente começa-se por estudar o que distingue esse ramo de outros, geralmente os que têm mais afinidade e que, por isso, são susceptíveis de gerar confusão. Estes aspectos, no entanto, não devem levar-nos a pensar, por exemplo, que existe uma fronteira que separa a Física do estudo da língua portuguesa, ou esta da epistemologia, ou esta da biologia, ou esta da ética, ou esta da estética, etc.
O estudioso da informática, por exemplo, mesmo que se dedique apenas à sua disciplina, não tem o direito de reivindicar qualquer fronteira para o estudo da informática, o mesmo se aplicando a outras disciplinas.
Não há fronteiras, mas há diferenças entre as ciências e entre as disciplinas e entre as artes, nomeadamente de metodologia, de objeto de estudo e de finalidade. Vale a pena distinguir, por exemplo, o objeto de estudo de uma neurociência, do objeto de estudo de uma doença mental, ou da mineralogia, ou da antropologia filosófica, ou da teologia cristã.
Onde, porém, as diferenças poderão ressaltar mais é, não no estudo do acervo de conhecimento disponível, nomeadamente nos manuais, nas enciclopédias e nas bases de dados, mas no estudo enquanto investigação propriamente dita do objeto. Estudar a filosofia “produzida” diferencia-se claramente de uma investigação filosófica autónoma. Assim como estudar a aritmética não é inventar a aritmética. Estudar a pintura não é pintar quadros. Estudar literatura não é fazer literatura. Estudar o funcionamento de um motor não é produzir um motor. E por aí fora. Não me parece que haja uma fronteira propriamente dita entre estudar o funcionamento de um computador e o funcionamento de um relógio, ou entre estes e o estudo de uma língua, ou a análise de um poema.
Todavia, são sensíveis as diferenças entre uns e outros ao ponto de as competências na abordagem de uns não garantirem competências na abordagem dos outros.
Mais facilmente me inclinaria a pensar no sentido que faz falar de fronteiras entre pessoas com formação em ciências e pessoas com formação em letras do que entre ciências e letras.
Fronteiras e arbitrariedades têm muito de comportamento e de imposição de limites humanos, enquanto que ciências e letras, para só referir estas (embora pudesse referir outras como, por exemplo, artes e direito), são domínios de conhecimento, de competências, de práticas, de procedimentos e de competências, nomeadamente de comunicação, relativamente às quais não me parece razoável falar de fronteiras, nem físicas, nem teóricas, nem imaginárias.
As pessoas podem decretar fronteiras físicas, mas é difícil ou mesmo impossível impor fronteiras ao pensamento, às ciências e às letras e às artes, por decreto, por arbitrário que seja. Este carácter incoercível do pensamento ainda é uma capacidade de liberdade apanágio dos humanos.
De resto, como produtos, objetivações e objetificações humanas, todas as manifestações culturais têm em comum o facto de procederem de escolhas/actos (humanos, individuais, conscientes/racionais) tendo em vista a realização de uma representação/objecto/objetivo, independentemente de o conseguirem, ou não, como o imaginaram.

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