Texto que se liga a um anterior (aqui).
Mão amiga
enviou-me este vídeo. Trata-se da notícia dada por um canal de televisão que, sem contraditório, veicula uma das nada novas "religiões e morais" que se apropriaram da escola pública. Esta - da conversão das almas à lógica financeira - tem sido uma das que mais a tem mobilizado nesta década.
A designação vai mudando mas a essência é a mesma, ainda que a estratégia seja progressivamente mais intrusiva e mais dissimulada. Tudo a bem dos miúdos! Tudo a bem do futuro!
Vale a pena ler o texto (os sublinhados são meus).
Sete escolas estão a testar um modelo de ensino secundário mais flexível e com maior liberdade de escolha para os alunos. Entre as novidades estão duas novas disciplinas obrigatórias: Literacias e dados e Projeto pessoal. É uma preparação específica para o dia a dia e ensina, por exemplo, a lidar com o dinheiro (...).
Literacias e dados ensina os alunos a gerir o dinheiro e prepara-os para o futuro.
Uma vez por semana, os alunos do 10º ano do Agrupamento de Escolas de (...), têm aula de literacias e dados. O currículo inclui literacia financeira, mediática, política e criptografia. Como não têm manual, toda a matéria fica disponível numa plataforma da google. A disciplina que vai acompanhá-los até ao 12º ano está dividida em módulos, o primeiro dado pela professora de matemática. A escola (...) funciona como laboratório, onde se testa a possibilidade de acabar com a rigidez e as limitações do atual modelo do ensino secundário (...)
No final têm uma prova de aptidão pública. Português, Língua Estrangeira, Filosofia, Educação Física, Literacias e dados e Projeto pessoal fazem parte do tronco que é comum a todos os alunos (...).
Este projeto-piloto (...) quer contribuir para um ensino mais inclusivo, flexível e inovador
Repito:
Isto acontece na escola pública, que, não esqueçamos, é da responsabilidade do Estado.
Estado que, como consta na Constituição da República Portuguesa e na Lei de Bases do Sistema Educativo "não pode atribuir-se o direito de programar a educação (...) segundo quaisquer directrizes (...) ideológicas".
Ou seja, tanto quanto entendo, segundo opções que:
1) concorram para desviar a educação do seu legítimo fim;
2) concorram para a concretização de interesses particulares;
3) não sejam compatíveis com os valores éticos patentes nesses mesmos documentos matriciais.
Aqui estão todos os ingredientes disso mesmo: preparação dos alunos para a vida, leia-se: uma certa vida, traçada por agentes que não têm legitimidade para tal; intervenção directa desses agentes na escola, na sala de aula, como parceiros de pleno direito junto aos professores; uso de contextos humanos para fazer experiências que estão longe de serem inócuas e da escola como "laboratório" dessas experiências...
8 comentários:
Mas a escola não foi sempre um laboratório de experiências?
A lógica é a seguinte: os portugueses são pobres porque não sabem lidar com o dinheiro, logo quando todos os portugueses aprenderem literacia financeira ficarão todos ricos. Para quê encher as cabeças das crianças com conceitos abstratos de Artes e Ciências se para enriquecer basta ter literacia financeira?!
Portanto, na escola não é preciso ensinar conhecimentos que abranjam mais do que a "espuma dos dias". Em vez de dizermos que sabemos ler e escrever e contar, devemos dizer que temos literacia e muito dinheiro!
A CRP é o que têm feito dela e, particularmente, o que permitem que seja feito dela. O legislador gosta de se esconder atrás deste conceito quase anónimo, mas as leis são feitas pelos sucessivos governos e parte delas aprovadas por grupos de apoio na AR. Logo, há intuito ideológico, como qualquer um de nós carrega consigo uma ideologia explícita ou implícita, nem que seja no subconsciente.
Criar modelos de ensino para o ensino secundário holísticos, não é novidade, existem em sistemas escolares europeus e está previsto no DL 55/2019 (vide a gestão flexível). Que se possam de devam desenvolver, na minha opinião é de salutar um modelo holístico ponderado, até que não seja para permitir aos nossos estudantes jovens uma escolha mais adequada ao se perfil. No entanto, modelos facilitísta não me parecem solução para nada.
Quanto a «literacia», conceito muito em voga e na moda, creio que antes de falar no conceito vago implícito devemos pensar na língua portuguesa que se ensina e falamos diariamente como língua primeira ou língua materna.
O Português, como qualquer outra língua primeira, é a língua com que fazemos sentido do mundo que nos rodeia, com que pensamos, comunicamos, etc. Olhar para a disciplina de Português como ensino primeiro para a educação literária é, em meu entender, um erro pedagógico subjacente aos curricula. Seria mais plausível criar uma disciplina de educação literária do que fazer da educação literária um fim em si da disciplina de Português. Fim último da disciplina de Português deveria ser sim o ensino da literacia da língua com que fazemos sentido do mundo: ler/compreender, escrever (no ensino sentido implícito da organização de texto, que em si é a organização de pensamento), falar (a oratória que partilha as estratégias do escrever), e - sim - saber ouvir (e não de interromper permanentemente, o que se ouve).
Ensinar Pessoa, Camões e outros baseado em métricas (exemplo a título extremo) não é ensinar a fruição artística literária e a compreensão das mensagens inerentes dos textos, qualquer texto terá a sua mensagem, fazer compreender aos jovens uma linguagem arcaica quando ainda não dominam a contemporânea é um erro epistemológico, ético e até, diria, moral.
Sim. Boa ideia. Até porque, quando um dia o estado estiver falido e for tudo privatizado, ai de quem não tiver dinheirinho debaixo do colchão ou nas Ilhas Caimão, tal como deve ensinar a escola. Fazer mealheiro no porquinho.
https://www.publico.pt/2024/08/23/culturaipsilon/cronica/escola-pobres-2101345
António Guerreiro, Revista Ípsilon, Jornal “Público”, 23 de agosto de 2024.
Uma escola de pobres
… é preciso possuir uma metaliteracia que nos torne aptos a compreender o que significa “literacia” no código específico dos engenheiros de almas e de vocações que avançaram com a experiência de lhe dar espaço curricular e estatuto de campo disciplinar.
Literacia (UNESCO, 2005): Conjunto de competências que utilizam as capacidades de identificar, compreender, interpretar, criar, comunicar e calcular, utilizando material escrito que deriva de vários contextos.
A palavra “literacia” veio designar o que a antiga “alfabetização” deixou de ser capaz de nomear: o domínio de códigos específicos, de práticas linguísticas especializadas, sem as quais os cidadãos ficam limitados nos seus gestos, conhecimento e capacidades.
A ideia do ensino de uma literacia (…) significa que ficaram para trás os valores da clássica literacia abrangente, universal; significa que o ideal de uma esfera de interação comunicativa (que a tradição iluminista estabeleceu como fator essencial da cidadania e da criação de um espaço público baseado na razão crítica) foi substituído por práticas linguísticas especializadas. Se a escola, na tradição humanista, fazia dos textos literários um instrumento essencial para a aquisição de competências de leitura e escrita, era, entre outras razões, porque considerava que a literatura correspondia ao mais sofisticado uso da linguagem e, por conseguinte, fornecia as aptidões para a compreensão e o uso de todos os campos linguísticos não técnico-científicos. E, ao mesmo tempo que conferia ao indivíduo a capacidade de realizar as suas tarefas funcionais, permitia-lhe também participar na esfera pública enquanto cidadão.
A escola que requer o ensino de “literacias” pretende treinar o aluno na compreensão e uso de uma linguagem que serve para a receção e transmissão de informação numa área específica da atividade.
… os alunos são logo confrontados com um horizonte profissional coercivo: o curriculum escolar é posto ao serviço deste novo vocacionalismo, isto é, de uma conceção utilitária que encaminha os alunos para os campos de conhecimento mais exigidos enquanto nova força de produção na sociedade pós-industrial.
Num passado que agora já nos parece remoto, aquilo que agora se chama “literacia” era uma aprendizagem que se ia fazendo no tempo de vida profissional, um continuum formativo, mas não na escola que tinha um ideal abrangente.
Ainda por cima, a literacia curricular, em Portugal, circunscreve-se ao projeto nacional de leitura, que tem vindo a perder força.
Adorei a expressão “engenheiro de almas e vocações “… Um retrato da mediocridade ética de seres humanos imperfeitos, sentados em tronos de metal em cruz, a modelar cabeças… As produções monstruosas dos canhotos…
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