quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Drogas e Simples do Novo Mundo na Terminologia da Iatroquímica Portuguesa

Artigo que recebemos de A.M. Amorim da Costa
(
Dep. Química- Universidade de Coimbra
3004-535 - Coimbra – 
acosta@ci.uc.pt)

1. Introdução

É para todos clara evidência a afirmação de Duarte Nunes de Leão na sua Origem e Orthografia da Língua Portuguesa: “As lingoas cada dia se renovão com novos vocábulos per que se deixão ou emendão os antigos (…) Destas inovações huas são voluntárias, que homens doutos ou bem entendidos fazem, pêra policia & pureza dos vocábulos que achão rudes. Outras são necessárias por invenção das cousas, a que he necessário dar-lhe seus vocábulos”. Exemplificando, o mesmo Duarte Nunes de Leão, refere-se à situação concreta dos novos vocábulos decorrentes do avanço dos conhecimentos científicos: a grande enchente de vocábulos de novas doenças que se foram descobrindo (“soo de doenças de olhos dizem que há perto de um cento”!...), todos os nomes que os Latinos tomaram dos Gregos referentes a “hervas e plantas, & medicinas simples e compostas, de que verão os livros dos médicos, & authores herbolarios cheos”, notando expressamente que “outros vocabulos usurparão os Latinos de outras gentes, por causa do commercio, ou conquistas que com elles tiverão (que foi o que) nos aconteceu a nos, que por as cousas que de novo se inventarão, & por as conquistas & commercio que tivemos com outras gentes, nos vierão muitos vocabulos como foram da Índia (…) e da Africa” (Nunes de Leão, 1784, pp. 21-28). O facto de se não referir expressamente ao Brasil não significa que não nos tenham vindo também de lá muitos e muitos vocábulos por acção das novas gentes e das novas coisas que aí se encontraram.

Afirmados os princípios genéricos, sempre acompanhados de elucidativos exemplos, Duarte Nunes de Leão exibe, em sete longos capítulos (VIII a XV, pp. 57-91)  um longo elenco de vocábulos portugueses tomados dos Latinos, Gregos, Árabes, Franceses, Italianos, Alemães, Hebreos, Syrios e Godos a que junta os vocábulos que não foram tomados de outras gentes, mas consagrados nos escritos dos nativos e da plebe (capítulos XVI-XVIII, pp. 91-108).

Seguindo-lhe a peugada, aqui exploraremos o vocabulário da matéria médica das Farmacopeias Portuguesas. O elenco base destas Farmacopeias foi o herdado do repositório de Galeno (131-201), Dioscórides (sec.I), Plínio (23-79), Hipócrates, Leoniceno, Teofrasto, Serapião, Isidoro, Aécio, Avicena (980-1037), Averróis e, no século XIII, do médico árabe Ibn Al Baiter de Granada quem, no seu Corpus Simplicium Medicamentorum, incorporou os conhecimentos clássicos e a experiência árabe, caracterizando mais de 2000 fármacos, dos quais cerca de 1700 de origem vegetal. Esse elenco foi substancialmente enriquecido com os “simples e drogas” encontrados no “novo mundo” que os Descobrimentos dos séculos XV-XVI trouxeram ao conhecimento da Europa, traduzidos e identificados por recurso a um vasto conjunto de novos termos e vocábulos. Aqui nos propomos fazer um levantamento geral do seu teor.

2. A nomenclatura química dos Compêndios e Tratados de Matéria Médica

A nomenclatura científica introduzida no domínio da química pela Escola de Lavoisier, na década de 1780, compendiada no “Méthode de Nomenclature Chimique proposée par MM de Morveau, Lavoisier, Berthollet et Fourcroy”(Morveau, 1787) foi rapidamente introduzida em Portugal, sendo marcas importantes do seu estabelecimento as obras de Vicente Coelho de Seabra (1764-1804) e de Thomé Rodrigues Sobral (1759-1829), com especial destaque para os Elementos de Chymica e  a Nomenclatura Chimica Portugueza, Franceza e Latina a que se junta o systema de Characteres Chimicos Adaptados a esta Nomenclatura por Haffenfratz e Adet, da autoria do primeiro destes dois químicos portugueses. A filosofia e princípios básicos que presidiram à elaboração e formulação dessa nomenclatura foram claramente afirmados por Lavoisier e seus colaboradores, decorrendo da necessidade e importância de uma linguagem simples e sistemática para o bom desenvolvimento e prática de qualquer ciência (Amorim da Costa, 1995, 2003).

Antes da adopção e utilização generalizada da terminologia química decorrente da sistematização lavoiseriana, era utilizada, em Portugal, como nos demais países ocidentais, a terminologia usada pelos Compêndios e Tratados dos Boticários e pelas  Farmacopeias, uns e outras organizados para servirem a química espagírica ou iatroquímica, a química farmacêutica ao serviço da Medicina, toda ela centrada nos Princípios activos e passivos da escola de Paracelso (1493-1511): o mercúrio é o princípio básico  do evaporável; o enxofre, do inflamável; e o sal, do solúvel. Nela encontramos, também, e sobretudo, a terminologia dos manuais de João Baptista van-Helmont (1577-1644), Robert Boyle (1627-1691), John Mayow (1641-1679), Nicasius Lefebvre (c.1610-1669), Jean Béguin (?-1620), Christophe Glaser (1628-1672), Nicolas Lémery (1645-1715) e Johann Joachim Becher (1635-1682); depois, a nomenclatura química do sistema flogístico da Zymotechnia Fundamentalis seu Fermentationis theoria generalis e da Specimen Beccherianum de G. Ernesto Stahl (1660-1734), onde é já bem patente a procura da verdade da natureza pela observação e pelo trabalho de laboratório, na convicção de que a química possibilitava o conhecimento dos segredos do universo e, através dos seus produtos e técnicas, o progresso da medicina e da terapêutica.

Em tais Compêndios e Tratados não encontramos uma verdadeira sistematização dos nomes utilizados para descrever as diferentes mezinhas usadas na prática médica. As características físicas, os locais em que se encontram ou de que se ouviu dizer que lá existem, o modo e a matéria utilizados para as preparar, ou os efeitos que lhe são atribuídos, tudo servia de base para o nome que se lhes dava. Não espanta pois, que à mesma mezinha correspondessem, em muitos casos, nomes diferentes em diferentes autores, muitos deles, por vezes, até com elevada carga de secretismo, sobretudo quando relacionados com o modo da sua preparação, posto que, como adverte João Curvo de Semmedo (1635-1719), na sua Polyanthea Medicinal, “usam os chymicos destes e de outros nomes semelhantes ou porque são os mais próprios dos seus significados, ou porque não querem que os segredos que lhes custaram incansável estudo, os saibam, às mãos lavadas, os inimigos da chymica, que a abominam em publico e a usam em secreto”; e fazem-no  “para se estimarem porque conforme a Platão para que as Artes cresçam e se respeitem devem ocultar-se os segredos delas, ou explicar-se por enigma” (Semmedo, 1716, p.756).

As Farmacopeias portuguesas, seguindo o procedimento das suas congéneres além fronteiras, são o repositório vivo dessa terminologia em língua portuguesa[1].

Consequentemente, a matéria (vegetal, animal ou mineral) usada na preparação das receitas consignadas que constam das Farmacopeias, bem como o local da sua proveniência, o nome que a essa matéria era dado e os processos envolvidos no seu tratamento até se obter a mezinha desejada, constituem outros tantos factores que determinaram a terminologia usada. Por estas razões, a descoberta dos novos produtos naturais de plantas, animais e minerais provenientes do Oriente, da África e das Américas que os Descobrimentos de “novos mares e novas terras”, nos séculos XV e XVI, trouxeram ao conhecimento europeu, acrescentou necessariamente ao elenco das mezinhas e receitas vindas da Antiguidade e da Idade Média, toda uma série de novos termos que as Farmacopeias posteriores a tais acontecimentos registaram com maior ou menor destaque.

Nelas passámos a encontrar os nomes vulgares vertidos na linguagem portuguesa de dezenas e dezenas de produtos da matéria médica referidos elencados desde Dioscórides a Ibn Al Baiter, como sejam o Dragão Amansado, o sal Emafrodito, o mercúrio doce, o solimão, o ópio, o azougue, o benzoártico ou cordeal, o alcaest, os trociscos, os aljofres, os castelinhos, a água de Inglaterra, a água lusitana, a água seca, etc, acrescentados dos nomes dos produtos desses “novos mundos” com efeito terapêutico, particularmente os de origem vegetal, pois que eram estes que dominavam a farmácia da química espagírica. E também os termos usados para designar as diferentes operações químicas que permitem preparar a partir de todos esses produtos, as diferentes mezinhas: o alcoolizar, meteorizar, calcinar, circular, cohobar,  deliquar, edulcorar, fixar, levigar, rectificar, etc.; e, ainda, os nomes de muitas das enchaquecas, maleitas e outros males a que os fármacos enumerados podiam servir, v.g., as almorreias, os fluxos de sangue, a conjunção das mulheres, as cezões, as febres malignas, os humores melancólicos… (Semmedo, 1716, pp.733-756).  

Cingindo a nossa atenção ao caso da Farmacopeia Portuguesa predominantemente galénica, cingi-la-emos também ao caso dos Descobrimentos Portugueses, referindo neste estudo apenas a influência no elenco farmacêutico dos séculos XV e XVI das novas “drogas e simples” provenientes da África, da América e do Oriente. Trataremos com menos realce o caso das “drogas e simples” provenientes da África e da América, tratando com mais delonga o caso das “drogas e simples” provenientes do Oriente, pois julgamos que foram estes os que mais influenciaram a nomenclatura que aqui desejamos notar.

3.Drogas e Simples da África e da América - Iniciadas as descobertas portuguesas mar Atlântico abaixo, o mais fácil foi chegar às Canárias, navegando sempre à vista de terra, com mares e ventos bem conhecidos. Logo que depararam com as novas terras, no caso Porto Santo e Madeira, de imediato os seus descobridores se apressaram a colonizá-las, ocupando-as e cultivando-as. Nelas ensaiaram as capacidades germinativas e a produtividade de várias plantas que levavam consigo e que haviam sido já aclimatadas em algumas ilhas e territórios mediterrânicos, como a cana do açúcar, as laranjas doces, o trigo, o arroz, a batata (Mendes Ferrão, 2006). E nelas colheram, no meio da rica vegetação que em muitos casos as cobria, exemplares de plantas que lhes eram completamente desconhecidos, carregando com eles as suas naus como testemunhos de cada novo achamento, e cujo cultivo haveriam de tentar na metrópole de que haviam partido.

Logo em Porto Santo e na Madeira, encontraram em abundância uma planta de porte arbóreo, de estranha arquitectura, o dragoeiro, da qual por simples incisão no tronco, se extraía um pigmento muito apreciado, o sangue de dragão, que até então só as caravanas africanas faziam chegar à Europa. Era apenas o princípio do imenso rol de novas plantas “desvairadas das nossas” que vinham ao seu conhecimento (Catarino, 1993, pp.196-208).

À medida que foram avançando no continente africano e entrando nas suas terras, muitas outras foram as árvores, as plantas, as ervas, as raízes e outras cousas que foram descobrindo para uso de nossos males e maleitas. Da maioria deles nos chegaram longas e pormenorizadas descrições. Das plantas e outros produtos de matéria médica achados na África nos dão conta, nomeadamente, a Relatione del Reame di Congo (Roma,1591) baseada no relato feito por Duarte Lopes a Filipe Pigafetta; as The Strange Adventures of Andrew Battel of Leigh in Angola and the Adjoing Regions publicadas por Purchas em 1625; a Relação de produções do Congo e de Angola (1622) de Bento de Banha Cardoso; a História Geral das Guerras Angolanas (1680/1681) de António Oliveira de Cardonega; a Istorica Descrizione dé tré Regni Congo, Matamba et Angola (Bolonha 1687) de Giannantonio Cavazzi de Montecúccolo; a Etiópia Oriental (1609) de Frei João dos Santos; e  a História da Etiópia, a Alta do Padre Baltazar Teles

Para saborear o nome de alguns desses produtos, leia-se, por exemplo, o “Caderno que trata das ervas, raízes e outras cousas que se tem descoberto no Sertão do Reino de Angola, com várias virtudes” que o Sargento–Mor Afonso Mendes foi escrevendo por curiosidade. Em 88 secções, denominadas “receitas”, com indicações terapêuticas para vários males, nele encontramos referências, entre outras, às raízes do mutututo, do mubango, da mufuta, como também o pau-quicongo, o pau mussunda, o pau-paco, o óleo e a pedra de bezoar do elefante (Sousa Dias, 1993, pp.209-227).

As plantas e outros produtos de matéria médica achados no Brasil mereceram também toda a atenção dos seus descobridores europeus. Umas e outros foram extensamente descritos pelo Padre José Anchieta (1534-1597) e pelo Padre Fernão Cardim (1540-1625). Anchieta deixou-nos uma minuciosa relação das plantas úteis à medicina utilizadas no Brasil, especialmente pelos Índios; Cardim, no seu tratado sobre o Clima e Terra do Brasil[2] descreveu as propriedades de catorze plantas medicinais das terras brasileiras (Cardim, 1997) A estas descrições devem juntar-se a colecção de receitas medicinais do Irmão Manuel Tristão (1546-1621), enfermeiro e boticário em vários dos Colégios dos Jesuítas no Brasil, encontrada junto do manuscrito do Padre Fernão Cardim (1540-1625). Devem juntar-se-lhes também as descrições de Georg Markgraf (1610-1644) na sua Historia Rerum naturalium Brasiliae primeiro publicada em 1640 e de Williem Pies, mais conhecido por Guilherme Piso, na sua Historia Naturalis Brasiliae,  publicada juntamente com nova edição da História de Georg Markgraf, em 1648 (Piso e Marcgrave, 1648). O Jesuita baiano Padre Francisco de Lima (1706-1772) escreveu mesmo um tratado com o significativo título Dioscórides Brasílico ou Plantas Medicinais do Brasil (Leite, 1938, pp.584-585); e, entre 1624 e 1627, Frei Cristóvão de Lisboa (1583-1652) mandou escrever e desenhar a História dos Animais e Àrvores do Maranhão, onde refere também, alguns elementos médicos do material descrito. O elenco do grande número de drogas com origem na flora e fauna brasileiras continuou pelos séculos seguintes. Para não nos afastarmos muito do espaço temporal que definimos para este trabalho, referiremos apenas que em 1766, na Colecção de Várias Receitas publicada, em Roma, (Sousa Dias, 1993, pg.214) no total das cerca de duas centenas de fórmulas dos séculos XVII e XVIII, se encontram 62 de boticários brasileiros; e em 1762, também em Roma, e também da autoria de um jesuíta, foi publicado um receituário com dezenas de drogas feitas a partir de matéria médica do Brasil, com o sugestivo título “Receituário Brazílico composto de variedades de Receitas e de curativos segundo a arte: de várias Ervas, Flores, Raizes, Fructas e de outras cousas que são próprias do Brazil” (Sousa Dias,1993, p.215, nota 1).

Ao longo destas muitas descrições encontramos referência à descoberta e acção medicinal da ipecacuanha ou poaia, da copaíba, da camará, do jaborandi, da datura, da caroba, da capeba, da carapiá, das jurubebas, do urucu, da mil-homens, da pajamarioba, do inhame, da erva de onça, da butua, e muitas outras.   

4.Drogas e Simples do Oriente  - Sobre estas, reportar-nos-emos aqui apenas às três maiores relações que sobre elas fizeram, ainda no século XVI, Tomé Pires (ca.1468 - 1540), na Suma Oriental (1515) e na carta que o mesmo dirigiu a D.Manuel I, datada de 27 de Janeiro de 1516, Duarte Barbosa (ca 1480- 1545) no Livro do que viu e ouviu no Oriente (~1518) e, sobretudo, Garcia d´Orta (1499-1568), nos seus Colóquios dos Simples e Drogas da India (1563) de Garcia d´Orta (1499-1568). O mais que outros escreveram sobre o assunto, ao tempo dos nossos Descobrimentos nos sécs. XV-XVI, é muito menos significativo já porque se baseia, em muitos casos, na informação que nestas obras encontramos, já porque, pelo seu carácter sumário, pouco contribui para um mais vasto conhecimento da matéria exposta.

Seguindo um critério cronológico, começaremos com os dois escritos de Tomé Pires que acabámos de referir.

Boticário do Príncipe D. Afonso (filho de D. João II), Tomé Pires embarcou para a Índia, em 1511, com o cargo de “feitor de drogas”. Chegado a Malaca em 1512,  homem “curioso de inquirir e de saber coisas” (como dele escreveu Fernão Lopes de Castanheda), começou a escrever, nesse mesmo ano, a Suma Oriental, “nos pequenos intervalos de uma vida extremamente ocupada com suas funções oficiais”, como ele próprio confessa, no Proémio Terceiro da obra, tendo-a terminado provavelmente, em 1515, já na Índia. Trata-se dum Relatório dirigido a El-Rei D. Manuel, possivelmente cumprindo uma recomendação que lhe fora feita antes de ter partido para o Oriente. Como tal, tinha um certo carácter secreto razão pela qual poderá ter sido conservada, durante largos anos, na Biblioteca Real do Paço da Ribeira ou nos Arquivos da Casa da Índia, não se conhecendo hoje o original escrito pelo próprio Tomé Pires (Cortesão, pp.10-65; 74-80). As versões hoje conhecidas são cópias não totalmente coincidentes, nem quanto ao total dos países que descrevem, nem quanto à ordem pela qual o fazem. Seguiremos aqui a versão apresentada por Armando Cortesão, uma versão que se apoia fundamentalmente na cópia existente na Biblioteca Nacional de Paris, um volume com 4 folhas de guarda e 178 fólios 26,3x37,7 cm, correspondendo os primeiros 116 a um livro de marinharia e um atlas da autoria de Francisco Rodrigues, capitão da armada de Simão de Andrade que chegou em 1519 a Tamão, em Cantão, e os 62 restantes à Suma Oriental de Tomé Pires. (Cortesão, 1978).

Nesta versão, a viagem começa no Egipto seguindo por terras da Pérsia, Cabarim, Narsinga e Malabar até Cambaia (Liv.I), donde segue para Goa ao longo de toda a Costa Ocidental da Índia (Liv.II). De Goa passa a Bengala e vai daqui à Indochina, passando por Sião, Birmânia e Camboja (Liv.III). E continua pelas ilhas de Java, Molucas, Ceilão, Japão, Bornéu e Filipinas (Liv.IV) até Samatra (Liv.V) e Malaca (Liv.VI). Descrição geográfica, económica e histórica dos países que refere, o relato debruça-se sobre a geografia física, a geografia económica e a antropologia, nos seus aspectos culturais e sociais, desses países, com grandes minúcias sobre os diferentes povos que os habitam, as ligações entre eles, os seus costumes e o seu comércio. Quando descreve as mercadorias de cada reino, lá estão os produtos que nele se trocam, os naturais da terra e os importados.

Seria longo e repetitivo apontar aqui, terra a terra, todas as mercadorias que refere. Para o objectivo que nos propomos, confinados a produtos de matéria médica, o próprio Tomé Pires ter-nos-á facilitado o trabalho com a carta que dirigiu a D.Manuel I, em 27 de Janeiro de 1516, “um rol de certas drogarias que se mandaram catar” naquelas terras do Oriente para serem enviadas para Portugal, “dando conta donde cada uma nasce”. Ao elenco dos vinte e tantos nomes indexados nesta carta, pouco haverá a acrescentar, a não ser as observações circunstanciais, seja a título de complemento, seja a título de elucidação do produto em referência

Este é o elenco da dita carta: a erva lombrigueira  de Cambaia e Chaul; o ruibarbo, da Tartaria e da Turquia; a cana fistola, da serra entre o Malabar e Narsinga e também de Daru, Samatra e Java; o incenso, da Arábia, Fartaques e Maderaca e também de Orixa, entre Narsinga e Bengala; o ópio ou amfião, do Egipto, Cambaia e Bengala; os tamarindos, em todo o Malabar, em Tamor e Choromandel, em Java e nas ilhas à sua volta; a galanga, raízes do tipo do gengibre, em Chaul, Mangalor, Índia e Cambaia; o turbit, de Mandam (não muito bom) , da Turquia (o melhor) e também em Portugal; os mirabulanos e quibules do Malabar, de Bacanor, de Baçalor e de Mangalor (com pequenas diferenças entre si), de Bengala, Malaca e das Ilhas Burney; o aloés, da Ilha da Çacotora, Adém, Cambaia, Samatra (existe também em Valência de Aragão; o de Cambaia não é muito bom); o espiquenarde do Reino de Dely e de Mandão; o esquenante, ou palha de gengibre de Çacotora, Arábias e Terras do Prestes João; o serapino, o galbano e o opoponaque, gomas fétidas e fedorentas, das Arábias, do Cairo, da Itália, Turquia e Damasco; o bedelio e a mirra, de Mandau e da Arábia, Félix e Dely; o bálsamo xilo, o bálsamo carpo, a goma arábica e alguns alambares, da Arábia e o lápis lazúli,  da Arménia, uns e outros chegados à India via Alexandria; a monja, não o líquido fétido resultante da simples decomposição dos cadáveres humanos, mas o líquido que escorre dos corpos embalsamados com mirra e aloés, recolhida sobretudo nos desertos da Arábia; o ispódio, raízes de certas canas; o tincar, a sarcacola e a alquitira dos Reinos de mandão e Dely e da Arábia; o folio betele do Reino de Goa, de Chaul até ao Camboja; o róbis do Reino de Racan, os vermelhos e os balais de Ceilão, junto de Sião donde vem o lacar e o benjoim, e onde se encontram os chamados olhos de gato e as melhores safiras; a zedoaria ou cálamo aromático do Malabar e Ceilão que cresce entre as plantas da canela; o estoraque, o benjoim negro derretido com pó de sândalo e pau de aguilha, ou então com fermento de mel e azeite, como se faz em Adem; e, finalmente, o aljôfar das ilhas de Dalac, no mar Roxo, perto do porto de Meca, do Baharem, a cento e cinquenta léguas de Ormuz, de Ceilão e de Hainam, umas ilhas entre o Reino de Cochim e a China.

Ao longo dos seis Livros da Suma Oriental (Pires, 1515), encontramos alguns outros produtos que o autor não chega a mencionar na carta dirigida ao Rei D. Manuel em Janeiro de 1516, mas que lhe merecem igual atenção, nomeadamente o azernefe vermelhão que levam de Malaca para Sião (p.242), a orpimenta do Egipto e que alguns portugueses cativos, em Malaca, referiam a Afonso de Albuquerque, em carta datada de 1510, ser uma droga que deveria ser levada para a Índia (p.141);  o cecotrino e a mirra usados na Arábia,  as cubebas, o salaziche e as finas alaquequas do Egipto e também da Arábia (pp.146-150); as oraquas, o álcool de palmeira e a madeira de sapão do reino de Sião (p.242); o calambac do reino de Champa (p.247); as tâmaras em fardos de amfião (p.136); as sementes alipiuri, os âmios e a alforva da Cambaia (pp.203-204); os bisalhões e papos de almíscar de Aração (p.228), etc… etc. Tudo isto para além da caparrosa, do sal aziche, a pimenta, o cravo, a canela, o gengibre, o almíscar, o lenho de aloés, a cânfora, o gyracall, os cocos, a copra, os rabanetes, a mostarda, os limões, as azamboas e combalengas e outras especiarias e plantas mais comuns que encontrou na maioria dos países da sua viagem do Egipto a Malaca.

Duarte Barbosa (ca. 1480 - 1545) que serviu como “escrivão da feitoria da Cananor” durante vários anos, entre 1503 e cerca de 1515,  no Livro em que dá relação do que viu e ouviu no Oriente com redacção iniciada por volta de 1512 e com notas finais já de 1518, ano em que foi tornado público, em Lisboa, (Dames, 1989;  Veiga e Sousa, 1989, 1996), nas suas relações sobre o que viu nos muitos lugares por onde andou no Oriente, de Mombaça ao “muito grande reino da China”,  apontando a sua história, as pérolas (pérolas de aljôfar, rubis, diamantes, etc…) e as “drogarias”, não acrescenta dados verdadeiramente significativos ao rol dos simples e drogas mencionados por Tomé Pires. Curioso é notar, todavia, a sua preocupação em referir os preço delas nas diferentes terras, nomeadamente, em Calecut e no Malabar, com indicações preciosas sobre as quantidades e as moedas que valem, onde fala do valor em fens e fanões das façarolas do alácar-martabão ou das façarolas do benjoim, dos tama

Por sua vez, nos sessenta Colóquios dos Simples e Drogas da Índia de Garcia d´Orta (ca.1499-1568) que o Conde de Ficalho classificou como sendo “não somente um tratado de sciencias; mas também um monumento de história da arte (da preparação médica) e da linguagem” (Conde de Ficalho, 1891, p.XII), encontramos ainda, para além das preparações e utilizações farmacêuticas que deles se fazem, outros produtos de matéria médica provindos do Oriente, novos uns, os mesmos, mas com nomes diferentes, outros, quando comparados com os apresentados por Tomé Pires e por Duarte Barbosa.. No rol de uns e outros estão, por exemplo, o amono, o anacardo, a àrvore triste, o altide, o anjuden, a assa fétida, o betre, o bangue, as carandas, os doriões, o epiquenardo, o faufel, o turbit, a tutia, o zerumbet, e outros mais.

5. O sentido de algumas das denominações e noções associadas à nova matéria médica – Não podendo nós abordar aqui, por razões óbvias de tempo e espaço, o sentido das muitas denominações e noções associadas a toda a nova matéria médica provinda, nos secs.XV e XVI, do Brasil, da África e do Oriente, limitar-nos-emos a tomar, quase que aleatoriamente, alguns exemplos pontuais para realçar o tipo de questões que a sua adopção suscitou. E isto relativamente ao seu uso como matéria médica, e também relativamente à terminologia adoptada.

Os diferentes Simples e Drogas são diferentes preparados de cuja acção química se esperam efeitos terapêuticos, quando ministrados na dose e no tempo adequados. À época dos Descobrimentos dos séculos XV e XVI, a terapêutica que neles se buscava permite-nos classificá-los, servindo-nos do texto do Thesouro Apolineo de Joam Vigier, retomado pela Farmacopeia Ulissiponense de 1716, em alterantes, purgantes e confortantes: «alterantes, os que aplicados exteriormente, ou tomados interiormente, causam algumas mudanças em nosso corpo, seja esquentando, humedecendo, ou defecando, amolecendo ou indurando, rarefazendo ou condensando, constipando ou laxando, digerindo ou resolvendo, corroendo ou encravando, detergendo ou parando; purgantes os que por certa fermentação e irritação que causam no corpo, desatam os humores supérfluos e fazendo-os fluidos os põem em estado de serem evacuados; confortantes, aqueles que pela conformidade de suas partes com os espíritos do nosso corpo, corrigem as alterações que se tinham feito nos humores e, juntamente com os espíritos, ou seja excitando-lhe o movimento que estava sufocado, ou seja moderando o que estava violento ou veemente e isto dando vigor à natureza, a que lance fora as impuridades que lhe sufocavam o seu movimento ou lho desordenavam” (Vigier, 1714, pp.21-24).

Foram as virtudes em qualquer destas categorias que guiaram os Descobridores dos “novos mares e novos mundos” na recolha dos produtos que aí foram encontrando, inexistentes no “velho continente” e que por alguma razão, poderiam ser utilizados como fármacos.

Usando a classificação da Farmacopeia Ulissiponense, diríamos que o sangue do dragão, a resina do dragoeiro, usado para cicatrizar as feridas,  seria um bom alterante de aplicação externa; o aloés, um alterante de aplicação externa para encarnar algumas chagas e um purgante para uso em caso de lombrigas, colírios, no dizer de Garcia d´Orta. Aloés ou aloá seria o nome latino e grego dessa erva que os Árabes designavam por cebar, os Decanins por catecomer, os Castelhanos por acibar, os portugueses por azevre ou erva-babosa e de que existia grande quantidade em Cambaia e em Bengala, sendo a melhor e mais louvada a existente em Çocotora, dita por isso aloés çocotorino. A mezinha que dele se prepara é um sumo feito com a erva depois de seca que uma vez ingerido, de preferência em jejum, “abre as almoreinas”, no dizer de Mesué, e por sua amargura abre também as veias, estimulando a virtude expulsiva, e assim purga o fel (Conde de Ficalho, 1891, vol.I, pp.23-44).

Deste ponto de vista, interessante é notar aqui o que Garcia d´Orta refere a respeito do “Amfiam dito assim corrompidamente porque o seu nome he opio” (cf. Colóquio XLI), “usado em comer entre muitos”. Interessante, digo, pelo modo como a sua acção é explicada, posto ser considerado um simples em que a virtude imaginativa excede a virtude expulsiva (cf. Pg172), afirmação que não encontramos para nenhum outro simples. “Aos homens que o comem faz andar dormindo; e dizem que o tomam para nam sentir o trabalho” (p.171). O apregoado poder afrodisíaco que lhe era atribuído é negado por Garcia d´Orta dizendo que o que ele faz é retardar o “auto venéreo”, no homem como na mulher, por “apertar os caminhos por onde vem a semente genital do cérebro, por causa da sua frialdade” (p.172), levando frequentemente à impotência sexual (Conde de Ficalho, 1891, vol.II, pp.171-172). Interessante também, do ponto de vista linguístico, pelo cuidado com que Orta explica a etimologia do seu nome, revelando os conhecimentos do autor neste domínio : “todos lhe chamam afiom, scilicet, os Mouros donde o tomaram os Gentios, e nós mais corrompidamente lhe chamamos amfiam; e a causa dos Mouros lhe chamarem afiom ou ofiom, é porque os Arábios tomaram muitos nomes da língua grega, a qual elles chamam jhunami (casi língua joniqua): e porque os gregos lhe chamam opium, e porque ácerqua dos Arábios a letra f e a letra p sam muito hirmans, e põemse muitas vezes huma por outra, chamaramlhe elles ofium ou afium, e também á peonia chamam elles faunia, e assim muitos outros nomes, mudando o p por f” (Conde de Ficalho, 1891, vol.II, p.173).

Considerando ainda quer a virtude médica que lhes era reconhecida, quer as razões dos nomes adoptados que lhes foram dados, deixaremos aqui alguns apontamentos sobre algumas dessas muitas drogas e simples novos, deixando inevitavelmente de fora muitas e muitas dezenas deles. Folheando, sobretudo, a obra de Garcia d´Orta, referir-nos-emos, numa escolha praticamente aleatória e assente em razões de maior desconhecimento no quotidiano das nossas vidas, às cubebas, à galanga, ao folio betel, ao bangue, à àrvore triste, aos jambolões, aos tamarindos, ao turbit, à tutia e à zedoria.

As cubebas são o fruto da Piper Cubeba, um arbusto lenhoso que como a hera, se agarra às árvores que tenha na vizinhança, um fruto que se parece com a pimenta, mas que dela se distingue por um pequeno pedúnculo que possui; e também muito parecida com o mirto. A Piper Cubeba é espontânea em Java e na Sumatra. Como refere Garcia d´Orta não deve ser confundida com a pimenta, nem com o mirto agreste como o fizeram os gregos, nomeadamente Galeno e Dioscórides, que dela falaram só pelo que ouviram dizer, mas sem nunca a terem conhecido, o mesmo tendo acontecido com Serapião, Averrois e os árabes em geral. A árvore “he como macieira no tamanho, e as folhas sobem acima trepando, como nas árvores da pimenta”. Os seus frutos nascem em cachos, como as uvas. Cheiram muito bem. Pelos efeitos afrodisíacos que lhes são atribuídos, os árabes fazem com elas a festa à rainha Vénus. Eles lhe chamam cubebe ou quabeb ou quabebechini. Na Índia e na Malásia, donde é verdadeiramente originária lhe chamam cubabchini (Conde de Ficalho, 1891, vol.I, pp.287-292).

A Galanga é a lavandou dos Chineses, ou a lancuaz dos habitantes de Java. Nem Disoscórides, nem os Gregos Antigos falaram dela. Foram os Árabes quem primeiro a terão usado, com Avicena a chamá-la chamligiam ou calungiam, num dos seus escritos, e caserhendar, num outro; e Serapião, galungem. Trata-se do rizoma, com nós como os da cana, da planta descrita, em 1870 por Hance, sob o nome linneano de “alpinia officinarum”. Dela se conhecem duas espécies, uma maior, outra menor, respectivamente a galanga maior e a galanga menor. Uma e outra são “uma frutice ou mata de dois palmos em comprimento; tem folhas como a murta; dizem os Chins que nasce sem ser prantada; floresce com flor branca; deita sementes, mas não se semeia com elas; semeia-se das raízes dela mesma”. Nem Avicena, nem Serápião a terão conhecido, tendo dela apenas notícia confusa mercê do que dela ouviram dizer. O rizoma é quente e com suave cheiro, servindo de proveito para as males do estômago e os maus cheiros da boca. Muitos a confundem com o acoro, especialmente em Espanha, ou com o cálamo aromático. Porém, anda por caminhos errados quem tal faz (Conde de Ficalho, 1891, vol.I, pp.353-356). 

O folio betele, uma folha muito aromática conhecida por “folha da Índia”” produzida pela palmeira de Betel, assim chamada por existir em grande abundância nas margens do rio Betel, na costa Ocidental da Índia, também conhecida por a Areca Catechu. Tomada verde com avelã da Índia e limão é a chamada noz-areca, muito boa para fortalecer os dentes; uma vez seca não serve para nada. Os homens que a mascam regularmente, dia e noite, chegam aos oitenta anos com todos os dentes e têm óptimo bafo, mas se um dia a não tomam têm um bafo que se não pode suportar (Pires, 1516,p.456;  Veiga e Sousa, pp.167-168). No seu Colóquio XXIII, Garcia d´Orta refere-se demoradamente ao “folio indo” ou “folha da Índia” sem a referir como folio de Betel, identificando-a com a lingoa de vaca, a lingoa de pássaro ou o melam da Índia dos catálogos de Avicena, referindo que para além de poder ser usado para tratar o mau cheiro da boca, é bom para “provocar a orina” e que conserva os panos, defendendo-os da traça (Conde de Ficalho, 1891, vol.I, pp.343-348).

 O bangue, uma semente que Ruano, o interlocutor de Garcia d´Orta nos Colóquios, confunde com a do linho alcanave, o cânhamo, embora um pouco mais pequena e menos branca, que “os Índios comem pera ajudarse e comprazer às mulheres” (Conde de Ficalho, 1891, vol.I, pp.95-98). É, de facto, a semente da chamada Cannabis Sativa da nomenclatura de Linneu, espécie a que também pertence o linho em questão.  A mezinha que leva este nome faz-se do pó das folhas pisadas da planta bangue, uma planta muito parecida com o linho, juntando-lhe um pouco de areca verde. A poção assim preparada “embebeda e faz estar fora de si”. Nesta preparação, muitas boticas, particularmente entre os Mouros, usam juntar um pouco de cravo, e outros cânfora de Bornéu,  ou também ambre, almisque ou amfiam; o proveito que tiram desta mistura é levar aqueles que a tomam a “ficarem fora de si, como enlevados sem nenhum cuidado e prazimenteiros, e alguns rir hum riso parvo”. E, acrescenta Garcia d´Orta,  ter ouvido dizer a “muitas mulheres que, quando hião ver algum homem, pêra estar com choquarerias e graciosas o tomavão”, e que também “os grandes capitães, antiguamente acustumavão embebedarse com vinho ou com amfiam, ou com este bangue,  pêra se esquecerem de seus trabalhos, e nam cuidarem, e poderem dormir” (Conde de Ficalho, 1891, vol.I, p.97).

A árvore triste, uma árvore que tão bem cheira e que Garcia d´Orta diz não ter encontrado em lugar algum fora de Goa.  (Conde de Ficalho, 1891, vol.I, pp. 69-72). Cristóvão da Costa (1525-1593), no seu Tratado de las Drogas y Medicinas de las Índias Orientales (Burgos, 1578) descreve-a  em pormenor. Clusius, nas suas notas ao texto de Garcia d´Orta, apresenta o desenho de um ramo florido desta curiosa planta. Curiosa pelo nome que leva; e curiosa pelas lendas que lhe estão associadas. É uma planta que em terras da Índia, os nativos designam por mogory e têm por  planta sagrada, procedente do céu, donde Krishna a trouxe a sua mulher por causa do fino perfume de suas flores. Estas cheiram a flor de laranjeira e seus comeres são cheirosos, como cheirosa é a água que delas se prepara. Na classificação de Linneu, são flores dum jasmim, o Jasminum Sambac, usadas na preparação de  perfumes e com que as mulheres hindus fabricam coroas que colocam sobre a cabeça em ocasiões festivas. O seu estranha nome vem-lhe duma lenda em que se diz ter ela origens na filha de um grande senhor, Parizataco de seu nome, que tendo-se “enamorado do sol, a deixou depois de ter com ella conversação, por amores doutra; e ella se matou e foy queimada e da cinza se gerou esta árvore” (Conde de Ficalho, 1891, vol.I, p.71)

Os jambolões, os frutos da Eugénia jambolana, uma árvore da família das mirtáceas, muito comum na Índia. O nome vem-lhes do nome por que são comerciados em Bombaim, jambúl. A árvore que os dá tem folhas que se assemelham às folhas do medronheiro. Parecem-se com azeitonas, embora muito mais azedos que estas. A sua cor é feita de branco e vermelho, que os assemelha também a essas bogalhas grandes conhecidas por maçãs de cuco. Têm cheiro a água rosada e um sabor que embora agradável, não incita muito o gosto por se tratar de um fruto muito aquoso. Embora comestíveis, não são fruta muito sadia. Com eles se parecem os jambos e as jamgomas, frutos de feição oval, do tamanho de ameixas, de plantas da mesma espécie, respectivamente, a eugenia malaccensis e a flacourtia cataphiracta, com flores roxas e muito bem cheirosas e folhas “como hum ferro de lança, grande e larguo, e de hum verde muito aprazível”.  Duns e doutros e das flores das árvores que os dão se fazem boas conservas (Conde de Ficalho, 1891, vol.II, pp.24-26). 

Os tamarindos, os tamarindi dos Árabes que com este nome se referem às tâmaras da Índia. A árvore que os dá é grande como o freixo, a nogueira ou o castanheiro, com madeira rija e não porosa, muito folhosa e ramosa, no que se distingue das tamareiras do Norte de África. Têm dentro caroços. Quando verdes são bastante azedos mas mesmo assim de bom sabor. Os caroços não servem para nada; a polpa come-se muito bem com um pouco de açúcar e serve para preparar infusões medicamentosas, seja com água, seja com azeite de coco, com bons efeitos digestivos e laxantes, purgando, no dizer dos maometanos, o “sistema de bílis e humores adustos”, pois facilmente digerem e evacuam o humor colérico, incidem e cortam o humor freimatico. E também para preparar conservas e boas bebidas refrigerantes As folhas da árvore de que provêm servem também para preparar infusões para cura das erisipelas. Pelo seu agradável sabor azedo, estas infusões servem para substituir o vinagre nos comeres. Todavia, não se deve confundir os tamarindos com os datiles do catálogo de Dioscórides, embora possam ter com eles algumas parecenças: estes são os frutos das tamareiras do norte de África que embora diferentes, apresentam, de facto, algumas parecenças com as tâmaras da Índia. (Conde de Ficalho, 1891, vol.II,  pp.319-324).

O turbit é o tiguar dos Canarins de Goa, uma pequena planta rasteira, com uma raiz muito pequena e pouco profunda, e um tronco pouco comprido e pouco grosso, não muito maior que um dedo. Uma planta da família das convolvuláceas, a Ipomaea Turpethum. As suas folhas são lobadas como as da malva francesa. As suas flores são bastante grandes. Nasce e cresce nas terras marítimas, mas não muito perto do mar. O seu sabor é insípido quando se colhe. A droga comercializada com o mesmo nome consiste na raiz e parte inferior do caule, cortados em bocados, de cor acinzentada por fora e branca no interior, contendo uma resina amarelada. Desconhecida dos gregos e dos latinos, era um medicamento de grande reputação, nas terras do Oriente, vastamente usado como purgante da bílis e do humor fleumático. (Conde de Ficalho, 1891, vol.II, pp.327-343)

A tutia, um preparado vegetal ou um óxido metálico? Séculos antes de os Portugueses terem chegado à Índia e terem começado a trazer para a Europa nova matéria médica, especialmente a de origem vegetal, já Marco Pólo se havia referido a uma mezinha que dava pelo nome de tutia, a tutia da região de Kerman, não longe de Ormuz. Era um  preparado obtido a partir de uma certa terra que ali havia, queimada em grandes fornalhas. Nessa sua referência, Marco Pólo diz que essa mezinha outra coisa não seria  que o espodio ou  pomfolix dos Antigos Gregos, com diferente grau de pureza. Num caso e noutro, tratar-se-ia de um óxido impuro de zinco. Acontece que no século XII, Geardo de Cremona (1114-1187), ao traduzir para latim algumas obras Árabes, nomeadamente as de Avicena, traduziu por espódio o tabaxir da matéria médica arábica, uma espécie de leite ou sumo existente em certas plantas, v.g., em algumas canas que invernou durante bastante tempo. Ficou-se assim, a partir de então, a designar pelo mesmo nome duas mezinhas totalmente diferentes: uma de origem mineral, o pomfolix ou espodio dos Gregos; outra de origem vegetal, o tabaxir ou espódio dos árabes. No seu Colóquio LI (Conde de Ficalho, 1891, vol.II, pp.301-307), Garcia d´Orta  refere esta distinção e pugna pelo necessário esclarecimento para que se não confundam os dois tipos de matéria médica. E deixa claro que o termo espódio, sem mais, deve ser reservado para o espódio dos Gregos, isto é, o pomfolix que Marco Pólo identifica como sendo a tutia em grau de purificação mais elevado. Neste ponto, Garcia d´Orta discorda de Marco Pólo referindo que a tutia é um preparado vegetal que se faz na Pérsia a partir da cinza da casca de uma árvore chamada goan, uma árvore cujo fruto comestível é também conhecido por goan. Garcia d´Orta conclui este assunto afirmando que a tutia que é levada da Pérsia a Ormuz e daqui a outras parte da Arábia, a Alexandria, a Portugal e demais partes da Europa, em muitas naus, é este preparado vegetal e não o preparado mineral dos Antigos Gregos, o pomfolix com que a identificou Marco Polo  (Conde de Ficalho, 1891, vol.II, pp.359-360).

Finalmente, à míngua do espaço e tempo de que dispomos, a zedoria, essa  mezinha que Avicena trata em dois substanciosos capítulos, com o nome de geiduar e Serapio num só, com o nome de zerumbet. Trata-se de um só nome para o preparado medicamentoso feito do rizoma de duas diferentes plantas do mesmo género e família, a curcuma zedoaria e a curcuma zerumbet, ambas muito vulgares na Índia Meridional, ainda que Garcia d´Orta diga que elas se trazem de Seni, porque “na Índia não nascem estas raízes, senam na China”. A primeira é a zedoaria amarela; a segunda, a zedoaria cinzenta. O preparado medicinal que delas se faz é muito usado em casos de envenenamentos e mordeduras de cobra, e também como condimento e especiaria e outros (Conde de Ficalho, 1891, vol.II, pp.363-368).

6. Epílogo e Conclusão – Toda esta nova e exótica matéria médica descoberta e explorada nos Descobrimentos ao longo dos sécs. XV e XVI e continuada nos séculos seguintes, ocuparia um grande número de páginas da Origem da Lingoa Portuguesa de Duarte Nunes de Leão, caso ao tempo em que a preparou já estivesse suficientemente consagrada e pronta para a necessária difusão. Com toda a naturalidade, entrou rapidamente no elenco da Farmacopeia Portuguesa, e, através dela, na Farmacopeia da Europa, com seus nomes, locais de origem e mezinhas que usando-a, era possível preparar (Pina, 1939;1945;1961; Sousa Dias,1993).

De facto, em Portugal, Zacuto Lusitano na De Medicorum Principium Historia (Lusitano, 1629), na Praxis Medica (Lusitano, 1634) e na Pharmacopoea Elegantíssima (Lusitano, 1667); Duarte Madeira Arrais no Tratado das Virtudes dos Óleos de Enxofre, Vitríolo, Philosophorum, Alecrim, Salva e Agoa (Arrais, 1648) e no Método de conhecer e curar o morbo gálico (Arrais, 1674); Curvo Semmedo na já referida Polyanthea Medicinal (Semmedo, 1716) com especial relevo para a Memoria dos remédios exquisitos que da Índia e outras partes vém a este reino, em que se declaram as suas virtudes publicada como Anexo, com algumas variantes, na maioria das edições da Polyanthea, com começo na edição de 1716, na qual se enumeram mais de setenta desses remédios; e também os autores das Farmacopeias portuguesas que se seguiram à Polyanthea de Curvo de Semmedo que já acima relacionámos, todos mencionam e assumem a teriaca brasílica, africana e Oriental. João Vigier adicionou à sua Farmacopeia Ulissiponense de 1716 um Tratado das Virtudes, e descrições de Diversas plantas, e partes de animais do Brasil, e das mais partes da América, ou Índia Ocidental, de algumas do Oriente, descobertas no último século, tiradas de Guilherme Piso, Monardes, Clúsio, Acosta e outros” e ainda um Vocabulário Universal, Latino e Português, de todos os nomes dos Simples, assim dos Antigos como dos que ultimamente se descobriram na Índia Oriental, e Ocidental, ou Brasil. E, dois anos depois, faria publicar, a sua História das plantas da Europa e das mais uzadas que vêm de Ásia, de África e da América, uma obra em “dois volumes portáteis de algibeira (…) como em hum corpo abreviado, o que em obras anteriores tinha já publicado com tanta extensão” (Vigier, 1718, p.vi), nela apresentando o elenco dessas plantas, seguindo a ordem e classificação do Pinax de Gaspard Bauhino, recopilado e mandado imprimir por Nicolas Deville. Cada um dos dois Tomos desta História contém seis Livros com seis divisões cada, onde são referidas 616 diferentes plantas, consagrando na linguagem portuguesa os seus nomes indígenas. Para muitas delas, são referidos também os nomes Latinos, Franceses, Espanhóis, Italianos e Alemães. Nela encontramos não só a consagração dos nomes indígenas na terminologia da nossa Língua, como também a descrição das principais características dessas plantas, acompanhadas do respectivo desenho, o lugar donde vêm nascem e crescem e as virtudes medicinais a que podem servir. Do longo elenco, podem anotar-se os juncos aromáticos de Alexandria e o albafor da Síria e do Egipto (Liv.I, Div.II), os jacintos e os cálamos aromáticos do Oriente (Liv.II, Div.I), a mostarda e a eruca da Ásia, a salsa-parrilha das Honduras, da Índia Ocidental e da China (Liv.III, Div.I), o ruibarbo da Etiópia, das Índias Orientais e dos Chins (Liv.III, Div.IV), as dormideiras (papoilas) dos Gregos (Liv.V, Div.I), o azebre ou aloés dos Gregos, Árabes e Canarins (liv. VII, Div.V), a alcatira da Ásia (Liv.X. Div.VI), a cana fístula e a siringa da India, a noz moscada e a pimenta das Índias Orientais, os sicómoros do Egipto (Liv. XI, Div. I-III), os figos da Índia, o estoraque da Sicília e da Síria e o mirto da Alemanha (Liv.XII, Div.I-VI).

Na sequência das considerações que aqui deixamos, é-nos lícito concluir que caso Nunes de Leão tivesse querido apresentar na sua Origem da Língua Portuguesa, à semelhança do que fez para alguns dos vocábulos tomados dos Àrabes, dos Franceses, dos Alemães, etc, Tabelas com vocábulos vindos do Brasil, da África e das Índias, por via da matéria médica trazida pelos Descobrimentos ao Reino de Portugal, não lhe teria faltado por onde escolher; e o muito espaço e tempo de que dispusesse para o efeito, nunca seriam demasiados. Não era esse, todavia, o objectivo da sua obra, sem tergiversar na sua convicção de que “muitos mais são os negócios que os vocábulos e como os conceptos dos homens são infinitos e as palavras finitas, necessariamente as inventamos, ou buscamos e tomamos emprestadas de outras gentes”. Perante a “necessidade de inovar e tomar emprestados” os vocabulos da nossa língua, não sendo de todo ajuizado que “depois de achado o trigo e os manjares que oje temos, tornemos a comer a lande e bolotas, e frutos sylvestres, como a principio dizem os Poetas que fazião os primeiros homens” (Nunes de Leão, 1784, pp. 131-135).

Sem tempo nem espaço para elaborar e apresentar essas tabelas, Nunes de Leão faz questão de “dar algumas lembranças para a eleição que devemos fazer “ do grande elenco das palavras que o tempo traz e leva pelas variadas maneiras que foi enumerando no seu tratado. Ao bom falante se pede que se guarde de palavras antigas e desacostumadas caídas em desuso, como se não usam as moedas que deixaram de circular, na certeza de que a principal virtude e requisito do uso que delas se faça é a clareza: a clareza no significado, clareza na composição, clareza na pronúncia (Nunes de Leão, 1784, pp.141-142).

Ao tempo em que a matéria médica a que se referiam esses muitos e novos vocábulos objecto do presente trabalho era comercializada e usada no dia a dia, as muitas dezenas dos seus termos que encontramos nas nossas Farmacopeias dos séculos XVII-XVIII eram de utilização obrigatória. Naturalmente, com o avançar da ciência química, tornou-se um vocabulário caído em desuso, salvo algumas excepções. A história da Língua não pode, todavia, ignorá-lo.

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[1] A primeira Farmacopeia portuguesa, embora se não intitule como tal, é a  Polyanthea Medicinal, Noticias Galenicas, e Chymicas repartidas em Três Tratados de João Curvo Semmedo, com uma primeira edição ao fechar do século XVII, em 1697, reeditada, em vida do seu autor, em 1704 e em 1716. Seguiram-se-lhe a Pharmacopea Lusitana de D. Caetano de Santo António, editada em 1704 e reeditada em 1711, 1725 e 1754; a Pharmacopea Uyissiponense de Joam Vigier, editada em 1716; a Pharmacopea Tubalense de Manuel Rodrigues Coelho, editada em 1735; o Thesouro Apollíneo Galenico, Chimico e Chirurgico de Joam Vigier, editado em 1745 que não levando também o nome de farmacopeia o é de facto, pois se trata, como se lê no título extenso, de um “compêndio de remédios para ricos e pobres”, contendo a “individuação dos remédios simplices, compostos e químicos”;  a Pharmacopea Portuense de António Rodrigues Portugal, editada em 1766; a Pharmacopea Mediana do inglês Ricardo Mead, editada em 1768 pelo mesmo António Rodrigues Portugal; a Pharmacopea Dogmática do boticário do Convento  beneditino de Santo Tirso, Frei João Jesus Maria, editada em 1772; e, já depois da Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra, a Farmacopeia Lisbonense, publicada em 1785 e re-editada em 1802, a primeira farmacopeia com rótulo de oficial, organizada por Manuel Henriques Paiva.

[2] O manuscrito do Padre Fernão Cardim com este título foi roubado pelo corsário inglês Francis Cook tendo ido depois parar às mãos de Samuel Purchas, em 1601, quando o aprisionou, no seu regresso do Brasil. Tornado público por Purchas, em inglês, encontramo-lo hoje, editado em português, em 1925, no Rio de Janeiro, com o título Tratados da Terra e Gente do Brasil.


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