terça-feira, 7 de janeiro de 2020
ENTRE O TEMPO E A ENTROPIA
O tempo é a entropia, no sentido em que, nas equações da física, o único modo de distinguir passado de futuro está explicitado pela Segunda Lei da Termodinâmica: num sistema isolado, a entropia nunca pode diminuir. A entropia serve por vezes de mote literário: por exemplo no romance "Entropia" do escritor brasileiro Alexandre Rodrigues (Afrontamento). tenho entre mãos, por amável oferta do autor, o livro "Entre O Tempo e a Entropia" do poeta da Nazaré Armando Macatrão (edição da Hora de Ler, Leiria, 2019, 48 páginas), que foi apresentado na FNAC de Leiria em 20 de Abril passado.
Confesso que, não conhecendo o autor meu contemporâneo (n. 1957) fiquei agradavelmente surpreendido pela qualidade da sua produção poética de um autor. Macatrão está longe de ser prolixo pois se trata apenas do seu segundo livro de poesia, tendo o primeiro sido publicado há mais de 20 anos ("O vazio do Nada", Minerva, Lisboa). É autor também de um romance ("O Eremitão", Magno, Leiria, 2000), Teatro ("Mr Blanky", 2008, e "Largo das Letras", 2015), Linguística/Etnografia ("Expressões de Nazareth", 2006) e Fotografia ("Um poema na praia"). Encontrei também na Internet algumas suas experiências muito interessantes de poesia visual. O prefácio, curto como convém a uma obra deste tipo, é de Cristina Nobre, professora do Instituto Politécnico de Leiria e especialista na obra de Afonso Lopes Vieira, o poeta de Leiria que tinha casa em S. Pedro de Muel. A prefaciadora chama justamente a atenção para o facto de que todos os poemas, de uma forma ou de outra, versarem o vazio, o tema que já tinha aliás dado o título ao primeiro livro de Macatrão.
De facto, o vazio é um problema difícil. A física diz mesmo que não há vazio. E diz também que no vazio não pode haver entropia, que é uma propriedade que caracteriza a matéria e a energia. Tem de haver alguma coisa para se degradar. De algum modo o oposto de vazio são as estrelas compactas a que chamamos buracos negros, e uma das fronteiras da termodinâmica, é a entropia desses objectos. Segundo Stephen Hawking, os buracos negros têm entropia, que está sempre a crescer, conforme manda a célebre Segunda Lei.
A poesia é sempre uma reacção contra o vazio, que além de problema físico é metafísico, e aqui um problema literário. Escreve o autor no primeiro poema ("Existencial)" na p.7:
"Na equação da minha existência
tenho o nada sempre presente,
o existente sempre ausente...
e a dúvida como rasgo de violência."
A palavra entropia só surge no poema "Entre o tempo e a entropia", que dá título ao livro, na p. 19:
"De impulso a impulso,
a existência se agita.
Nela, nada se perde,
e nada, nela se cria.
Desarruma o espaço,
redesenha o cosmos, perpetua a entropia.
De mutação em mutação,
conduz ao esquecimento,
qualquer configuração.
E, de fotograma em fotograma,
em movimento aparente,
gera a noção de tempo,
que se reduz a uma ilusão.
Quando tudo ainda era nada,´
quem, misteriosamente,
lhe terá dado o empurrão?"
Se este poema começa por falar da mudança (talvez ninguém tenha enunciado tão bem a segunda lei, sem saber física, do que Luís de Camões, quando escreveu que "todo o mundo é composto de mudança,/ tomando sempre novas qualidades"), que está associada ao tempo, como uma ilusão (curiosamente o físico Carlo Rovelli, que esteve há pouco em Portugal, fala disso mesmo), o final remete para a inquietação metafísica das origens, que a física não pode descrever. Para um físico não faz sentido falar de um tempo antes do tempo. Quando me perguntam o que houve antes do Big Bang, digo sempre que não sei, nem sequer sei se podemos falar de um antes.
Fica a pairar a questão de Deus, que não tarda a ser explícita. O poema seguinte ("O Deus fora da equação", p. 21), no meio de uma avalanche de termos da física, fala da "singularidade total" e da partícula de Deus (o nome para o bosão de Higgs que o físico Peter Higgs, ateu, não gosta mesmo nada). O poeta conclui a respeito da singularidade primordial:
"(...) É quando,
nele, encontro lago, estranhamente, vazio, um ponto sem solução,
e, nele, tento enquadrar o formulário de Deus que criou esse bosão."
O poema seguinte ("Passagem"), na p. 23, fala do infinito, do tamanho assustador do tempo (se Pascal ficava assustado pelas distâncias infinitas, o autor fica assustado com o tempo infinito):
"Tão breve é a passagem, o caminho,
o relâmpago da minha existência
por algo que só sei designar por tempo:
tempo infinito, monstruoso; tempo...
tempo e nada mais (...)"
O autor usa na sequência a palavra "googolónico" ("é "googolónico" o caminho do tempo"), mas deve querer dizer "googólico", de um googol, que é um número que se escreve com um um seguido por cem zeros (a palavra Google derivou daí, por corrupção), em anos ou mesmo em segundos é uma eternidade. Nesse infinito do tempo a vida é nada. E daí a inevitável inquietação metafísica sobre o sentido da vida. Já Antero de Quental a explorou em belos poemas como "Evolução" ("Interrogo o infinito e às vezes choro..").
O que é a vida? Que metáforas lhe assentam melhor? O autor responde, em "Insubstâncias", na p. 31:
"Mas, diante de tantas comparações, há uma que, seriamente,
põe-me a pensar é aquela em que me dá, simplesmente,
para compará-la a uma mão-cheia de nada, entornando
o conteúdo vazio para outra mão-cheia de coisa nenhuma."
Termino, com a minha vénia ao autor pela sua poesia metafísica, transcrevendo o poema "Mecânica estóica" na p. 37 (grande título... um dos que mais gosto) :
"O universo é uma caixinha
com um relógio de ponteiros
girando nem torno da decadência.
Compasso determinado,
andamento alucinado...
tic-tac, tic-tac... o tique-ataque
estóico não cessa de pulsar!
E, em perpétuo movimento,
a mecânica, a mestria.
sem algum sentimento,
perpassa a agonia da vida.
trespassa a carne em sofrimento!"
Faz lembrar alguns poemas de António Gedeão. Como ele. Macatrão sabe combinar ciência e arte poética. Isto é,por poesia se consegue dizer o que a ciência não consegue dizer. Conforme escreveu Jacob Bronowski
"A poesia é um tema maravilhoso que deveríamos considerar sempre que falamos de ideias científicas, porque nos relembra que se pode comunicar uma verdade de indubitável valor intelectual sem necessidade de ser complementada por qualquer sistema de equações.”
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