Dei uma entrevista ao escritor João Ribeiro, director da revista "A Casa do João", que acaba por ser publicada. Republico-a aqui, depurada de pequenas gralhas:
João Ribeiro
- É um cientista divulgador e comunicador de ciência. Fá-lo por dever
profissional ou (também) por outra razão?
Carlos Fiolhais - Por dever
pessoal, mais do que profissional. Os cientistas não têm a obrigação imperiosa
de serem comunicadores de ciência. Se fizerem
ciência bem feita, já cumprirão a sua missão. Alguns não terão sequer
habilidade para falarem ou escreverem de um modo acessível. Mas a ciência é de todos e para todos: para
que o seja basta que alguns cientistas, em colaboração com outros intermediários (como, por exemplo,
jornalistas), se encarreguem de traduzir as descobertas da ciência. Mais do que
os novos conhecimentos, importa, na minha opinião, transmitir
o método da ciência, o modo como se chega ao conhecimento. Graças a esse
método, a ciência vai sempre produzindo conhecimentos novos, isto é, a ciência deve
ser considerada mais um processo do que um produto. Eu senti dentro de mim a
vocação para a comunicação de ciência após o doutoramento, feito na Alemanha em 1982 (talvez tenha sido antes,
mas não tinha tempo!). O início dos anos 80 foi a época em que
apareceu a série de TV “Cosmos,” de Carl Sagan, cujo guião foi logo traduzido em
português pela Gradiva (uma editora então criada que se focou na cultura
científica). Publicou também as edições em português de outros grandes autores de ciência como
Richard Feynman (eu traduzi dele "O que é uma Lei Física"), Paul
Davies, Heinz Pagels, Stephen Jay Gould,
Richard Dawkins, Ilya Prigogine, etc. Tiro o meu chapéu ao editor Guilherme
Valente, que soube romper com uma velha cultura portuguesa.
Foi nessa altura que senti uma voz interior que me chamava para a divulgação de ciência.
Colaborei com a Gradiva primeiro como tradutor e consultor editorial,
depois como autor e a partir de certa altura como director de colecção “Ciência
Aberta”. De onde veio essa chamada? É difícil olhar para o passado, mas julgo
que foi porque eu próprio entrei na ciência pela porta dos livros que li na minha juventude, entre os quais os livros de divulgação
científica de Rómulo de Carvalho, o professor de Física e Química que escrevia
poesia sob o nome de António Gedeão. Diziam-me, nos meus anos juvenis, que eu tinha jeito para a comunicação:
escrevi e desenhei os jornais do meu liceu, o D. João III, e da Faculdade de Ciências e
Tecnologias da Universidade de Coimbra. Mais
tarde descobri os jornais nacionais, a rádio e televisão. E também as exposições, (ajudei
no planeamento da exposição do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra no
Laboratório Chimico). Tentei, com sítios da Internet e um blogue (“De Rerum
Natura”), a divulgação na World Wide Web, a cujo nascimento assisti.
E, desde há onze anos, dirijo o Rómulo - Centro Ciência Viva da Universidade
de Coimbra, que começou por ser só uma
biblioteca, passou também a ser um sítio de palestras e hoje é também uma escola, uma
oficina e um espaço de exposições, Gosto de experimentar as várias
possibilidades de comunicar ciência e acho que as temos de usar a todas.
JR- A
ciência em geral e a física em particular são mesmo divertidas ou o adjetivo
é marketing?
CF- Reconheço que há um pouco de marketing no título
"Física Divertida", que parece paradoxal, mas talvez por isso atraiu
na época (anos 90) um público enorme. Continua hoje a atrair. A comunicação tem de se servir de uns truques de marketing: os títulos
servem precisamente para chamar a atenção do leitor. Mas, de facto, também penso que a ciência em
geral, e a física em particular, é muito mais divertida do que geralmente se
pensa. É um grande prazer intelectual
quando se percebe que a ciência é uma aventura humana, resultado do esforço
continuado de muitos seres
humanos (infelizmente, muito mais homens do que mulheres) ao longo da
história. Em vez de ser algo escrito de uma vez por todas na pedra, é uma escrita permanente, podendo
ser reconhecidas nessa escrita todas as marcas do humano: a curiosidade, a inquietação,
a paixão, o medo, o desafio, a rivalidade, etc. O livro "Física Divertida” conta histórias
de descoberta da Física, a começar pela lendária história do Arquimedes, que terá saído da banheira para correr nu pelas ruas da cidade de Siracusa. Um aspecto essencial
da comunicação da ciência é mostrar que a ciência é uma actividade
humana. É o ser humano que
arranca à Natureza o conhecimento, um conhecimento que é sempre passível de revisão,
uma vez que a ciência continua.
JR. Como
despertar nas crianças o que designou de “curiosidade apaixonada"? Ou não
é preciso?
CF- A expressão “Curiosidade apaixonada" é de Einstein. Quando lhe perguntaram qual era o seu talento especial, ele respondeu,
modesto, que não tinha nenhum talento especial, mas tinha “curiosidade
apaixonada". Curiosidade todos nós temos, curiosidade apaixonada, isto é, uma
curiosidade intensa e obsessiva como uma paixão, só estará ao alcance de poucos.
Não penso que tenhamos de despertar a “curiosidade apaixonada” nas crianças, porque
muito poucas, quase nenhumas, virão a ser Einsteins. Basta que simplesmente lhes despertemos a curiosidade. Ou melhor, uma vez que elas já vêm de nascença com curiosidade,
que lha avivemos. Como? Julgo
que se deve começar pela experimentação: as experiências a brincar são o prelúdio
das experiências a sério. É possível com materiais simples responder a perguntas simples. Por exemplo, pensando na
flutuação de Arquimedes, podemos perguntar e verificar quais são os objectos que flutuam e os que afundam na água. Uma batata
afunda, mas uma maçã já flutua. Escrevi, em parceria com colegas, uma série de dez livros intitulada "Ciência Brincar" na Bizâncio.
Na Escola do Rómulo em Coimbra fazemos algumas dessas experiências para crianças de nove
anos, que estão no quarto ano de escolaridade. O método da ciência consiste na observação, na experimentação (que é a
observação controlada) e no raciocínio lógico. Experiências convenientemente
escolhidas permitem uma iniciação no método.
E o método é tudo. Há certas afirmações a respeito da Natureza que estão certas
ao passo que há outras que estão erradas. É o método científico que as permite distinguir.
JR-
Considera possível a aproximação entre a ciência e a literatura, nomeadamente a
literatura Infantil e juvenil (sem que nenhuma se renda à outra)?
CF- A ciência, o nosso
confronto com a Natureza, é uma dimensão humana. Pode e deve dialogar
com outras dimensões humanas, como as artes, onde se inclui a literatura. Na arte tal como na ciência também se responde a questões colocadas pela
mente, mas o método é evidentemente outro. A aproximação entre ciência e arte
é possível porque ambas buscam sentido, ordem, a partir de informação
desordenada. Se olharmos para a literatura portuguesa encontramos muitos
exemplos de proximidade com a ciência. Logo numa das primeiras obras escritas
em português, os “Colóquios dos Simples”, do médico Garcia da Orta, Luís de Camões
deixou os seus primeiros versos impressos. O mesmo Camões, nos “Lusíadas”, apresenta o sistema do mundo ptolemaico,
assinala muitas plantas e descreve fenómenos
naturais como o fogo de Santelmo. Antes disso Gil Vicente tinha escrito o “Auto
dos Físicos”, onde são retratados os médicos da época. Bastante mais
tarde, Bocage escreve sobre a primeira
subida em balão efectuada em Portugal pelo italiano Vincenzo Lunardi, há 225
anos. Rómulo de Carvalho soube juntar de uma forma única ciência e literatura
na sua poesia. Muitos escritores, ao longo da história, tiveram
formação científica-técnica: é o caso de Jorge de Sena, que foi engenheiro civil
(nascido há cem anos), ou de António Lobo Antunes, que é médico. Também nas artes visuais se podem encontrar
paralelismos notáveis com as ciências. No século XV, antes da Revolução
Científica, foi a geometria que permitiu uma representarão tridimensional realista do mundo,
ao proporcionar às técnicas da perspectiva. Além disso, há uma longa tradição de matematização da beleza, onde entra
a chamada "razão dourada" ou “divina proporção”. Tal como na arte
existe harmonia e quebra de harmonia, também na ciência há elementos estéticos: simetrias e quebras
de simetria. Vendo bem, procuramos o belo por todo o lado. E o verdadeiro
muitas vezes identifica-se com o belo.
JR- O que é
necessário fazer, em seu entender, para promover uma cultura científica entre
os mais novos?
CF- Chamamos cultura
científica à relação da ciência com outras actividades do ser humano: a ciência
tem relações com a saúde, com a lei, com a filosofia, com a ética, com a lei,
etc. Já falei da iniciação à ciência que pode ser
a experimentação. Relacionada de
perto com a experimentação deve ser valorizada a colocação de perguntas. Ora o questionamento
permite imediatas ligações com outras actividades humanas. Nunca se deve aceitar sem critica as
afirmações que chegam até nós. Citando de novo Einstein, “não podemos parar de
fazer perguntas”. Ter cultura científica significa perguntar. Perguntar uma vez, outra e outra ainda.
JR- Aparece
como coautor do livro “Entre Estrelas e Estrelinhas este Mundo anda às
Voltinhas”, de José Fanha, Daniel Completo. Em que consistiu e como foi a sua
participação neste projecto?
CF- O José Fanha e o Daniel
Completo procuraram-me para eu colaborar num projecto que tinham de um livro de
poemas sobre temas de ciência a musicar depois. Achei uma óptima forma de
cultura cientifica para os mais novos. Fiz sugestões
sobre os poemas, preparei um breve prefácio e, depois do livro pronto (que é acompanhado
por um CD) temos ido a várias escola. O Daniel e o José tocam e cantam as canções eu faço duas coisas: uma e
explicar o tema de cada canção e outro é, perto do final, responder a qualquer pergunta
que os pequenos queiram colocar. E há perguntas muito curiosas… A perguntar se exercita a
curiosidade.
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