sábado, 22 de setembro de 2018

O estado do debate sobre o currículo escolar

Nas últimas duas semanas, diversos canais de televisão têm realizado programas na forma de debate sobre o Projecto de Autonomia e Flexibilidade Curricular que, a partir deste ano lectivo, passa a orientar o ensino básico e secundário em Portugal. Os jornais também lhe têm dado destaque com notícias e artigos de opinião, sem esquecer textos de apresentação desse Projecto, enviados pela OCDE e pelo Ministério da Educação.

São políticos, directores de escolas, pais e mães, alunos, empresários, professores, investigadores, sindicalistas, associações, confederações... Toda a gente opina, uma boa parte sem denotar qualquer sombra de dúvida, a partir da sua perspectiva e experiência.

Vejo e leio o que posso, o que consigo. O exercício não é fácil.

Não é fácil menos pelos erros e pela demagogia, do que pela sua persistência. Mesmo que venham a lume contribuições esclarecidas e ponderadas, elas escoam-se com gostas de água na areia quente.

Tenho-me lembrado por isso de um prefácio recente de António Muñoz Molina no qual reflecte sobre o sistema educativo da nossa vizinha Espanha. Eis o que diz:
"Imaginemos que os nossos sistemas de saúde caíam nas mãos de bruxos, gurus, homeopatas, curandeiros, astrólogos e vigaristas. Imaginemos que estes indivíduos ocupavam todos os postos de direcção, ditavam as políticas de saúde, os programas dos cursos de medicina e de outros pessoal de saúde. Apesar disso, a maioria dos profissionais tentaria fazer o seu trabalho (...) [Se isso acontecesse] a catástrofe seria tão imediata e devastadora e o clamor público tão intenso levariam a que fossem tomadas medidas correctivas imediatas (...). Está a ocorrer algo semelhante na educação espanhola, mas não estala qualquer escândalo.
O mais desolador é que essa calamidade, que de vez em quando aparece nas primeiras páginas dos jornais, não suscita nenhum debate verdadeiro (...) a não ser repetirem-se alguns dos lugares-comuns nauseabundos: a rejeição do alegado elitismo do saber por parte da esquerda, a obsessão pela competição e pelo mercado de trabalho por parte da direita (...)
O grau de disparate a que chegaram os nossos delírios verbais e, desgraçadamente, também as práticas dos charlatães e homeopatas da educação levar-nos-ia ao riso se não fosse o seu efeito sobre um dos factores mais importantes da nossa vida civil, da nossa economia, da nossa cultura, do nosso sistema democrático."
 In Royo, A. (2016). Contra da nueva educación, Barcelona: Plataforma Editorial, pp. 13, 15 e 16

5 comentários:

Anónimo disse...

No decorrer de um desses debates televisivos um dos participantes mais interventivos, que se apresentou como diretor de uma Mega Agrupamento de Escolas de Gaia, elogiou o trabalho dos seus professores em prol de uma escola altamente inclusiva referindo que, com a flexibilidade curricular, largas centenas dos seus alunos com dificuldades de aprendizagem, ligeiras e profundas, alcançaram facilmente o sucesso educativo pleno, ao nível do ensino secundário, lamentado logo a seguir que as instituições universitárias não tenham ainda aderido ao espírito da pedagogia flexível, impossibilitando que a maioria destes estudantes com deficiências mentais não prossigam com estudos superiores, apesar de terem todos o perfil cultural exigido pelo Ministério da Educação à saída do ensino secundário. Perante dislates com esta gravidade, que subalternizam o ensino e a aprendizagem em contexto escolar, ao mesmo tempo que incensam as virtudes da flexibilidade inclusiva, os restantes elementos desses painéis televisivos limitaram-se a anuir!
A esmagadora maioria dos professores portugueses não se identifica com as fantochadas da flexibilidade curricular e da pedagogia do Aprender a Aprender, mas... Quem pode, manda!...

Inocêncio disse...

Educar deveria ser uma excepção afastada das guerras económicas e dos seus proveitos. Mas como ainda estamos a aprender a explorar recursos, quem sabe se poderemos vir a ter mais uma disciplina para encaixar mais umas verbas na mercantilização dos produtos educativos e oferecer mais uns empregos. Espero que esta minha “ironia” não avolume mais as regras iniciais educativas.
Também me parece importante estimar a restante humanidade para reencontrar-se num termo sensato que equilibre a ocupação mental. A rentabilização profissional poderá ter outros caminhos e proporcionar realizações pessoais felizes sem prejudicar a competição feroz de terceiros. Bem, escapando à base educacional, nada feito. No entanto, os objectivos dos bastidores políticos aparentam sempre o interesseiro lucro. Esse malvado lucro que pode dar a explorar e aplicar ao máximo novos modelos económicos.
Em certa medida há intransigências naturais na sociedade humana que acabarão por ser observadas a olho nu e não será necessário imaginar o desgaste causado aos professores, alunos e a um sistema estupidificado.

Anónimo disse...

Sou professora do 3.º ciclo e do ensino secundário de uma escola pública. A flexibilidade é mesmo uma fantochada que ninguém sabe o que é.
A generalidade dos professores não se identifica com estas palhaçadas mas, como o medo e o sistema pidesco estão implantados nas escolas, a maioria não tem força, pelos motivos que todos sabemos, para levantar a voz. Quem o faz é ostracizado, considerado professor de segunda, colocado na prateleira. Enfim! É bom que os nossos dirigentes também saibam que outra palhaçada foi a avaliação da cidadania no ano passado. SIMPLESMENTE SURREAL. Pelo que eu vi, e sei, dependeu única e exclusivamente dos gostos e tendências dos conselhos de turma.
É urgente uma intervenção séria na escola portuguesa. O conhecimento, o ensino, o rigor e as aprendizagens estão a sucumbir!

Anónimo disse...

Ora, mas esse é precisamente o objectivo, Anónimo24 de Setembro de 2018 às 19:58!! A Escola está entregue aos mais medrosos de todos, todo o processo é apenas uma selecção, esses são os modelos perfeitos de professor, esses são os modelos perfeitos para os alunos. Não é surreal, é mesmo a realidade. Porque acham que até hoje, o Estado (e os sindicatos pagos pelo Estado) não favorecem a criação de uma Ordem de Professores sem medo?

Cláudia disse...

Anónimo de 24 de Setembro: Não se preocupe! A flexibilidade curricular e a inclusão (os famigerados 54 e 55) vão ser um sucesso na linha do Grande Salto em Frente de Mao Tsé-Tung! A ficção será tanta que teremos "excedentes" de sucesso assim como a China tinha, no papel, claro, excedentes de arroz para exportar enquanto o povo morria de fome. Entretanto, só não o que é que eu vou fazer com os meninos que não sabem ler nem escrever nas aulas de Física e Química! Se calhar sou incompetente. Dizem-me para arranjar umas quaisquer actividades experimentais, mergulhar corpos em água, por exemplo.. O pior é que são muitas aulas. Haja material e imaginação!
Ah, não desista!

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