Minha crónica no Público de hoje (na imagem, o Museu Marítimo Nacional (Het Scheepvaartmuseum) em Amesterdão com uma nau da Companhia Holandesa das Índias Orientais de 1749 (réplica):
Um português em turismo nos
Países Baixos não pode deixar de dar uma volta de barco pelo labirinto dos
canais de Amesterdão, ligados ao rio Amstel. Farid, o “capitão-guia” da minha
embarcação, era euroafricano, de pai holandês e mãe marroquina. Ao passar perto
da réplica do navio da Companhia das Índias Orientais (a VOC), que é a atracção
maior do Museu Marítimo Nacional, falou, com indiscutível orgulho, da “idade de
ouro” da Holanda, na primeira metade do século XVII, quando continuou o caminho
da globalização que tinha sido iniciado pelos portugueses. E despachou o tema
da escravatura, comentando que foi uma página negra de uma história muito rica.
Nós temos em Almada uma reconstrução do último navio da carreira da Índia, mas
fiquei a pensar na falta que nos faz um museu das descobertas e semelhante
ausência de complexos em relação a um passado, que foi o que foi, sem que possamos
interferir. Marcas da primitiva globalização estão por todo o lado na grande metrópole
holandesa, seja na toponímia (por exemplo, a Praça de Suriname), seja na
restauração (por exemplo, a gastronomia indonésia).
O viajante luso não podia deixar
de visitar a Sinagoga Portuguesa de Amesterdão. Foi mandada construir em 1670 pela
comunidade sefardita portuguesa na que é hoje a Mr. Visserplein (Praça do Sr.
Visser, um juiz que defendeu os judeus na Segunda Guerra Mundial). Perto, na
Sint Antoniesbreesstraat (Rua Larga de Santo António), fica a Huis de Pinto, a casa de Isaac de Pinto
(1717-1787), um rico judeu português, accionista da VOC, economista e filósofo.
Karl Marx, que está a fazer 200 anos,
cita Pinto no Capital para criticar o
liberalismo económico.
Não se pode falar dos judeus holandeses
sem nomear o filósofo Bento de Espinosa (1632-1677), que era filho de um mercador
expulso de Portugal pela intolerância religiosa. Espinosa nasceu e viveu em
Amesterdão, mas foi banido da Sinagoga Portuguesa em 1656, tendo de abandonar a
cidade. O chérem que sofreu é a
punição máxima da religião judaica, mas, de início, nada fazia prever a heresia.
Aprendeu o cânone hebraico, preparando-se para ser rabi. Conheceu aos 14 anos o
Padre António Vieira, quando este visitou a comunidade portuguesa de
Amesterdão. O abandono da tradição religiosa familiar deveu-se à sedução pelas
ideias de Descartes (quando Espinosa nasceu, Descartes vivia em Amesterdão).
Não admira, portanto, que na sua Ética
a moral seja tratada no estilo da geometria cartesiana. Além de filosofar,
Espinosa polia lentes para telescópios e microscópios, numa terra que viu nascer
esses instrumentos. Morreu de doença pulmonar associada à poeira do vidro e está
sepultado em Haia, que o homenageou com uma estátua no centro histórico.
Ramalho Ortigão escreveu em A Holanda:
“Quem nos dissesse no século XVI que o obscuro e desprezível judeu, pai de Espinosa,
ao emigrar de Lisboa nos arrebatava uma riqueza comparável à dos imensos
territórios do país brasileiro teria o ar de um utopista em delírio”. Mas foi mesmo
assim: “Espinosa, tornado holandês pela intolerância do nosso despotismo
católico, funda no país a que o rejeitámos as bases de um novo critério que põe
a Holanda à frente de todo o grande movimento filosófico do mundo moderno.”
Sobre o Brasil: no coração de
Haia está a casa de João Maurício de Nassau (1604-1679), de cognome “O
Brasileiro” por ter sido governador de Pernambuco, a “Nova Holanda”. Ao serviço
da Companhia das Índias Ocidentais (a WIC), edificou o Recife à maneira
holandesa. Foi ele que, depois de ter tentado tomar a Bahia, enfrentou uma poderosa
armada luso-hispânica em 1639. Em 1640 Vieira pregou na Bahia o Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de
Portugal contra as de Holanda, onde ameaçava deixar Deus se ele deixasse os
portugueses. Como é sabido, Deus não deixou os portugueses. Em 1641 foi
celebrado um primeiro tratado de paz em Haia entre a Holanda e Portugal, que
conduziria a outro, ainda em Haia, vinte anos depois, pelo que João Maurício
não tardou a regressar a casa. Hoje o turista pode ir, na capital holandesa, à Mauritshuis, que alberga um belo museu.
É lá que pode ver a obra maior de Vermeer, Rapariga
com o Brinco de Pérola, de 1665. A rapariga, cujo brinco resultou de duas breves
mas geniais pinceladas, vale por si só uma visita à Holanda.
2 comentários:
Os holandeses dos nossos dias, muito ricos, educados e cultos, devem uma grande parte do seu desenvolvimento socioeconómico à rapinagem das populações e territórios portugueses ultramarinos, levada a cabo pelos seus antepassados hereges e piratas.
Nós demos novos mundos ao mundo, eles roubaram o mais que puderam!
Se os portugueses não estão interessados em reconhecer e aprofundar o fenómeno dos descobrimentos, ímpar empresa de pouca gente e de menos dinheiro, revolução tecnológica de viajar à volta do mundo pela força do vento, com caravelas e naus, que funcionaram, mas cujos princípios e técnicas de construção, em grande parte, ignoramos, tudo como se nada fosse, como é típico dos portugueses poetas e sonhadores, que o não eram apenas os Cães e os Gamas e os Dias e os Magalhães...Alguém, por amor à verdade (filósofo com certeza), de qualquer nacionalidade, projectará e projectar-se-á, esse momento único da história da humanidade, que sempre fará sonhar quem o estudar.
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