Do ensaísta e académico Eugénio Lisboa, querido Amigo, transcrevo o seu último artigo, publicado recentemente no "Jornal de Letras", análise profunda de um tema por si excelentemente documentado e, como ele próprio defende, "sem complexos de culpa", sobre uma temática que tem despertado uma acesa polémica por parte dos que discordam da sua criação em homenagem a marinheiros portugueses de antanho que deram "novos mundos ao Mundo".
Descoberta – acto ou efeito de
descobrir (algo),
retirando-lhe
a protecção, a cobertura, a capa
ou invólucro
que cobre, esconde;
descobrimento.
(Dicionário Houaiss de
Língua Portuguesa)
A América exporta muitas e variadas folias que, depois de levantarem poeira e fazerem não poucos estragos, internamente, vão, de seguida, agitar o “milieu” europeu e, com um pouco de atraso, acabam por aterrar, gulosas, na pátria lusíada.
Entre as folias que os americanos produziram, com grande alarido, primeiro para consumo caseiro, depois, para exportação urbi et orbi, encontra-se a famigerada “political correctness” com, a tiracolo, o vigilante policiamento da linguagem.
Falar, escrever, nomear passou a ser o mesmo que pisar terreno minado. Cada palavra passou a ser escrutinada com lupa vigorosamente selectiva e duramente punitiva. Nada escapa a esta folia vigilante, obtusa e omnipresente.
A obra-prima de Mark Twain – As Aventuras de Huckleberry Finn – foi compulsivamente retirada das escolas porque alguns personagens, no romance, se referiam aos negros, tratando-os por “nigger”. Não é, obviamente, Mark Twain quem é o racista: o racista, se o for, será, quando muito, o personagem do romance, apresentado ou não – conforme o caso – como vilão.
Não importa: a “political correctness” é implacável, na sua vigilância eriçada e pidesca.
Vem isto a propósito da ridícula celeuma recentemente levantada entre nós, relativa a um futuro Museu das Descobertas que a Câmara Municipal de Lisboa teria em projecto. Imediatamente após ventilar-se a ideia, as vestais da “political correctness” puseram-se ruidosamente ao alto:
“Descobertas”, “Descobrimentos”? Que horror! Que abominação! O que aquelas palavras temíveis não escondem de ignomínias perpetradas pelos descobridores lusíadas! O colonialismo, a escravatura, a exploração desenfreada… Celebrar as descobertas? Nunca! Descobrimos o quê? Se os povos até já lá estavam…
As tontices, já se vê, atraem-se umas às outras, em corrupio foleiro.
Claro que houve, em séculos que já lá vão, descobertas, muitas e variadas e de enorme valor. Um mundo deslumbrantemente novo se foi destapando, aos olhos impreparados dos atrevidos navegantes portugueses.
Nesse magnífico livro, Ensaio sobre a Essência do Ensaio, de Sílvio Lima, que veementemente recomendo não só aos arautos da “political correctness”, mas a todos que ainda o não tenham lido, glosa-se, magistralmente, o que foi esse encontro fascinado com o novo:
“O espaço terrestre dilatara-se. À dimensão marinha mediterrânea e báltica – própria da Idade Média – acrescentara-se agora a dimensão atlântica, índica e pacífica: o infinito «mar-oceano». No formoso dizer de Humboldt, os portugueses e os espanhóis duplicaram para os habitantes da Europa a obra da criação.”
Esta ampliação do universo disponível causava vertigens:
“Suponde”, observa o filósofo Sílvio Lima, no seu livro fundamental, “[suponde] uma pessoa, posta num imóvel aposento claro, cercado de seis grossas paredes e que as visse de repente tornarem-se elásticas, móveis, fugirem vertiginosamente, como que sem fim, para longe, para a direita e para a esquerda, para cima e para baixo, para a ferente e para trás. Sensação de desprendimento físico, de queda ponderal, e de estonteamento visual dinâmico.”
Tal como este aposento, o universo, no tempo das descobertas, alargava-se irresistivelmente, física e mentalmente, trazendo espaços e gentes novas e ensinamentos também novos:
“À vivência do atordoamento físico junte-se o vinho, de picante agulha, do exotismo. Não só o espaço terrestre se dilatara; o planeta complicara-se também com outras «novidades»: faunas, floras, minerais, meteoros, estrelas, etc. Como se fosse um «leitmotiv», a palavra novo ressoa a cada passo, vibrante e cálida, na sinfonia geral.” (Sílvio Lima, opus cit.)
O filósofo dá-nos exemplos de textos em que a palavra novo cintila constantemente, com orgulho deslumbrado:
“Foi descoberto um novo mundo e novas terras numa Nova Espanha ou Índias Ocidentais e nas Orientais.” (Francisco Sanches) “El descubrimiento deste nuevo indiano mundo.” (Bartolomé de las Casas) … A nova do achamento desta vossa terra nova.” (Pero Vaz de Caminha) “Outro mundo novo vimos / Per nossa gente se achar.” (Garcia de Resende) “Eis aqui as novas partes do Oriente / Que vós outros agora ao mundo dais.” (Camões) “Un monde nouveau et si enfant” (“Um mundo novo e tão criança.” (Montaigne) E, entre outros, o grande matemático Pedro Nunes: “Descobriram (os portugueses) novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos; e o que mais é: novos céus e novas estrelas.” E Garcia da Orta, que proclama com incontido orgulho: “que se sabe mais em um dia agora pelos Portugueses do que se sabia em cem anos pelos Romanos.” Todo este “novo” surpreendente causava espanto (“Cousa certa de alto espanto”, dizia Camões) e surge como grande “maravilha” (“Grandes cousas estranhas / Outras muitas maravilhas!” – Garcia de Resende)
Estas maravilhas vistas, experimentadas, vividas pelo homem novo vão dar ao conhecimento científico uma ousadia nova: o que está escrito nos livros dos antigos deixa de ser sagrado: ao que está escrito sobrepõe-se agora, com orgulho, o que é “claramente visto” e experimentado criticamente. Nas palavras de Sílvio Lima:
“O perípato, o «magíster dixit», o comentarismo medievo eram vencidos pelos factos concretos. «Rien n’est plus écrasant qu’un fait.» (Broussais). As necessidades comerciais e industriais de Florença e Veneza, as necessidades lusas de navegação ou pilotagem matemático-astronómica, por outras palavras, o económico e o técnico, em íntima conexão, arrastavam o varão renascente ao contacto e ao exame directo do real. A natura substituía a escritura, a experiência derrubava a glosa, a ciência desterrava a erudição. Os regimentos, os roteiros, a nova teórica do céu, os progressos da hidrografia, da cartografia, da oceanografia, a inesperada colheita de factos novos e exóticos, a contrastaria de erros de observação do pretérito, etc., não consentiam já o jugo mental de Aristóteles (…)”. Por outras palavras, “à natureza amortalhada nos textos, sucedera o experimentalismo crítico.”
O homem novo acreditava, orgulhoso e deslumbrado, no que via e experimentava e não no que os livros antigos diziam: “Eu o vi certamente (e não presumo / Que a vista me enganava)”, como dizia, atrevidamente, Camões. O filósofo inglês Bertrand Russell observou, a propósito, que Aristóteles poderia ter evitado afirmar que as mulheres têm menos dentes do que os homens, pelo expediente simples de pedir à Senhora Aristóteles que abrisse a boca.
As descobertas trouxeram precisamente isto: um homem novo, curioso de ver e registar o que via (“Vi claramente visto o lume vivo”), rejeitando as “escrituras” e atento apenas à “natura”.
Com as descobertas, o mundo do conhecimento alargou-se enormemente e afirmou-se decisivamente uma nova forma de adquirir esse mesmo conhecimento: não, glosando textos antigos e obsoletos, mas, antes, vendo, muito claramente e muito criticamente, o que ali estava para ser visto.
Venha, pois, sem complexos de culpa ridículos, um bom Museu das Descobertas, que testemunhe, com vigor, aquela aventura humana tão prenhe de consequências.
Eugénio Lisboa
1 comentário:
“Suponde”, observa o filósofo Sílvio Lima, no seu livro fundamental, “[suponde] uma pessoa, posta num imóvel aposento claro, cercado de seis grossas paredes e que as visse de repente tornarem-se elásticas, móveis, fugirem vertiginosamente, como que sem fim, para longe, para a direita e para a esquerda, para cima e para baixo, para a frente e para trás. Sensação de desprendimento físico, de queda ponderal, e de estonteamento visual dinâmico.”
Sensação inicial e imediata do impacto...
Com o tempo, a nudez torna-se opaca, inflexível e arrogante, sem caminho de retorno à roupa, por opção consciente. Assume-se uma espécie de esgar oblíquo perante a ilegitimidade do olhar dos outros que se julgam vestidos e uma postura de liberta liberdade. A ponta do dedo grande do pé no vértice da pirâmide em equilíbrio perfeito com todo o resto de vazio. Como um pombo deificado a borrar as estátuas.
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