sábado, 11 de fevereiro de 2017

ACORDO HORTOGRÁFICO

Artigo recebido de Manuel Alte da Veiga, a quem agradecemos:

«A Língua portuguesa é património de todos os povos que a falam».
 Jornal de Angola, 9/2/2012

 As circunstâncias da «aprovação política» do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90) são grave exemplo de oportunismo político-financeiro, de pretensiosismo e leviandade científica e de falta de respeito pelos portugueses e pelas comunidades lusófonas, situadas em contextos político-geográficos muito diversos, logo, com tendências, necessidades e experiências próprias da sua respectiva cultura. Com efeito, o AO 90 revela percepção confusa de «identidade nacional» e desconhece o apreço pelas potencialidades (e beleza) das diferenças, para além de o seu próprio texto de apresentação – «Nota Explicativa do Acordo Ortográfico de 1990» – sofrer de contradições e de incorrecções científicas e pedagógicas, já sobejamente mencionadas e exemplificadas em livros, artigos, intervenções. Mais um exemplo político de querer «pôr a assinatura», «impor» e deixar marca, sem necessária consideração dos prós e contras; de querer impor o prestígio da língua portuguesa por decreto, «mudando palavras» e na utopia de uma Língua unificada. No Parlamento, quantos deputados haveria com o mínimo de competência para votar uma proposta deste tipo? Como podiam avaliar da sua fundamentabilidade e da gravidade de efeitos secundários? Quantos seriam verdadeiros conhecedores das virtualidades da língua escrita? E como se pôde falar em «consenso» sem ouvir sobretudo todos os organismos representativos da cultura portuguesa? E com que seriedade e independência se procedeu aos «estudos de terreno» e se tiraram ilações?

 As tomadas de posição contra o AO, e têm sido inúmeras, reflectem sobretudo a resistência a uma «lei» que de facto desestabiliza a comunicação escrita e também a oral. Em nome da unificação da Língua, impôs-se a desunião. Em nome da facilitação da sua aprendizagem, impôs-se a confusão e a incoerência interna: contra a família de palavras; contra o parentesco com as línguas europeias e matriz latina; contra a aceitação das diferentes «variantes», unidas por uma matriz já bem estruturada; contra a diversidade de pronúncia; contra o próprio conceito de Língua escrita que é diferente de Língua oral (uma tem dimensão histórica, a outra fica-se pela comunicação imediata). A escrita, como «monumento histórico», não pode mudar caprichosamente, quando muito, alguma «limpeza» que não a desfigure.

A ortografia do português europeu, nas últimas décadas, apresentava uma coerente estruturação interna, juntando a riqueza das características fonéticas e da sua história à das principais línguas da Europa. Note-se que a língua inglesa, como a alemã, têm uma fortíssima componente latina e grega. Não se pode subestimar a importância de fácil reconhecimento de vocábulos, com o mesmo sentido ou sentido afins, a partir da identidade de radicais que se mantêm na forma escrita. Facilitando a identificação de famílias de palavras e a sua história, obtém-se uma visão muito mais ampla da realidade, pois nos damos conta dos numerosos matizes que a nossa inteligência e sensibilidade foram descobrindo e diferenciando a partir da percepção original. Não só se aumenta a riqueza vocabular, como também se facilita a vocalização de palavras estrangeiras com o mesmo radical.

Como país europeu, temos ligações especiais à matriz cultural europeia. Esquecê-lo ou, pior ainda, destruí-lo será empobrecer e infantilizar o idioma de cada país. Para que a diversificação não se transforme numa «torre de Babel», é necessário preservar, quanto possível, a raiz comum da esmagadora maioria das línguas europeias (sobretudo os radicais greco-latinos). De outro modo acelera-se perigosamente a alteração fonética, perdendo-se o ponto de referência que garante a unidade e coerência da língua de base.

 Manuel Alte da Veiga
 (Professor universitário aposentado)

4 comentários:

Anónimo disse...

Um grande cumprimento a todos os que lutam pelo fim do A090, a hortografia é um crime público, e como sempre, os Governos raramente usam o bom senso e há interesses que o interesse não entenderá jamais. Só uma posição profundamente ideológica pode justificar o AO90. Que os políticos não sejam um elemento de complicação!!

Cisfranco disse...

O que é estranho na forma como se chegou ao AO/90 é que parece que a maioria dos pareceres técnicos não preconizavam o que acabou por ficar acordado. Como foi possível uma aberração destas? Interesses editoriais? O que pensar dos deputados que o votaram? Analfabetos funcionais ou servidores de interesses obscuros? Leram o acordo antes de o votarem? Entregue-se o assunto à Academia.Está a surpreender-me que o Presidente não tenha levantado já o problema. O Governo devia trazer o assunto à Assembleia. Esse estranho acordo precisa duma adenda que o torne aceitável.
Francisco Correia

António Pedro Pereira disse...

Caro Prof. Carlos Fiolhais:
Melhor nome do que Acordo Hortográfico será Acordo Heterográfico, pois fez aumentar as duplas grafias, ao contrário do que prometeu, como muito bem referiu a Prof.ª Maria Regina Rocha, no artigo no Público «A falsa unidade ortográfica», de 19 de Janeiro de 2013.
Aqui: https://www.publico.pt/opiniao/jornal/a-falsa-unidade-ortografica-25921941
Para além da incoerência interna, espelhada, por exemplo, nestes dois excelentes artigos de Nuno Pacheco, igualmente no jornal Público.
Aqui: «Pirâmides, futebóis e ortografia», Nuno Pacheco, Público, 26 de Janeiro de 2017
https://www.dropbox.com/s/g9czfeqf27ofqne/Pir%C3%A2mides%2C%20futeb%C3%B3is%20e%20ortografia.docx?dl=0
«Cerá ke istu tambãe ce iskreve acim?», Nuno Pacheco, Público, 9 e Fevereiro de 2017
https://www.dropbox.com/s/7wj1c7w8uc3i0fs/Publico-20170209.pdf?dl=0

Anónimo disse...

Eu até acho que devia ser Acordo Hidrográfico. Porque mete muita água.

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