Extracto do posfácio do livro de Manuel Nunes com o título de cima, que acaba de sair na Gradiva (trata-se de uma obra de ficção, fazendo o prefácio uma conexão com a realidade):
"E assim, a propósito do que de comum existe entre mim e ele, passo ao outro assunto que preciso de esclarecer. É este: assim como, numa reunião de pais, aquele professor precisou de se desnudar em relação ao campo político no qual militava (capítulo 11), também eu preciso de o fazer perante os leitores deste livro. Como ele, o campo político no qual eu me situo é a Esquerda. Ele precisou de o dizer perante um pai que o acusava de «reaccionário». Eu preciso de o dizer por escrito perante um governo (o actual) que legitima a sua política educativa a partir dos valores da Esquerda e que eu não considero valores da Esquerda.
A primeira medida retumbante do Ministério da Educação do actual governo, prontamente aplaudida pelas forças partidárias de Esquerda que o apoiam, foi o fim das provas nacionais no 4.o e no 6.o ano e a introdução das provas de aferição nos 2.o, 5.o e 8.o anos. Foi, na minha perspectiva, uma medida apressada, precipitada, reveladora de ligeireza intelectual e ético‑moral, não apenas porque o ano lectivo já ia em andamento, nem apenas porque, pouco depois, o senhor ministro da Educação, ao dar‑se conta dos problemas provocados pela decisão, acabou por deixar ao critério das escolas a realização ou não das provas de aferição, mas principalmente pela mentalidade que esta decisão revela: uma mentalidade de frouxidão na exigência educativa.
Antes de explicar o sentido daquilo que acabo de escrever, preciso de salientar bem o seguinte: tenho quase 63 anos e, ao longo da minha vida, nunca precisei de que as pessoas de quem fui professor (principalmente na disciplina de Filosofia A, do 12.o ano) necessitassem de se sujeitar a um exame nacional para mostrarem que alcançaram os objectivos que o sistema educativo lhes exigia, pois as classificações que obtinham nos exames nacionais eram fundamentalmente iguais às que tinham obtido na classificação interna. Esta minha experiência mostra‑me que, em condições normais, os alunos não precisariam de realizar um exame nacional para cumprirem os seus objectivos de alunos normais.
Em condições normais, acabo de escrever. E preciso de insistir nesta expressão, porque a verdade é que, como fui mostrando ao longo das páginas deste livro, a escola, em Portugal, tem vindo a funcionar, desde há anos, em condições cada vez menos normais.
Ora, nestas condições menos normais, por vezes e em certas disciplinas estruturantes, talvez o facto de o aluno saber, à partida, que se trata de disciplinas sujeitas a exame nacional lhe proporcione uma mais viva consciência da importância do rigor no estudo destas disciplinas e, por outro lado, permita aos professores um trabalho pedagógico mais profícuo. Em alguns casos, tem sido assim. O facto de o processo de aprendizagem culminar num exame nacional tem sido, infelizmente, o único argumento que alguns alunos têm levado a sério para se disporem a acolher algumas aprendizagens elementares.
A gravidade da decisão do actual governo reside, em grande parte, aqui: no facto de não ter tido em conta as condições menos normais em que a escola portuguesa tem tentado conduzir ao conhecimento quem despreza o conhecimento. No ambiente pantanoso de incultura em que vivemos, esta decisão é acolhida com o alívio indolente de quem estava sob a pressão de ter de subir até ao alto de uma colina ou de uma montanha e a quem é dito Afinal, já não é preciso subires lá acima!... A reacção é de alívio, mas será legítimo contrapor: Que pena! Nem sabes o que perdeste! Se tivesses ido lá acima, talvez tivesses vivido uma experiência muito gratificante!...
Ao escrever isto, penso na minha experiência de exame da antiga quarta classe: aquela expectativa tensa, aquela vontade de brilhar, aquele receio de falhar e, no fim, a alegria de ter conseguido e que tanta confiança me deu para o resto da minha vida!... Claro que qualquer pessoa pode contra‑argumentar: Então, e aqueles que não conseguiram?! As lágrimas, o choro, a humilhação, a fragilização da auto‑estima... É verdade. Mas também é verdade que aqueles que não conseguiram à primeira, conseguiram à segunda ou à terceira. E, sobretudo, aprenderam a lutar contra as adversidades, a auto‑superar‑se... E a merecerem ser respeitados. E hoje vemos o quê? A infantilização a prolongar‑se, a incapacidade de lidar com os fracassos, a desistência fácil, aquilo que Lipovetsky caracteriza como ética indolor, crepúsculo do dever, era do vazio...
Ser de Esquerda é, no campo da educação, assumir a responsabilidade de criar condições para que os mais débeis, os mais carenciados, os mais desfavorecidos, os mais humilhados, os mais brutalizados pelos que se julgam «grandes senhores deste pequeno mundo» (como escreveu o Professor Rómulo de Carvalho / Poeta António Gedeão), subam às alturas mais elevadas do humano e toquem os horizontes mais longínquos e mais exaltantes da vida (ou seja, que alcancem os grandes cumes e os grandes horizontes da vida e do saber‑acerca‑da‑vida a que os «grandes senhores deste pequeno mundo» se consideram exclusivamente destinados).
Ora, o que estes «grandes senhores deste pequeno mundo», que nos desgovernam, fizeram, ao agir desta forma infantilmente impaciente, com esta premência de adolescente apressado (Tem de ser já, tem de ser agora, não podemos esperar mais uns meses ou mais uns anos, tem de ser já!), com esta ligeireza de adulto imaturo, foi dizer aos alunos com mais dificuldades que estão condenados a permanecer atolados nos lamaçais e nos pântanos para onde a velha desordem da Injustiça os atirou!
A partir desta decisão, aquele professor que estava a lutar por um aluno destroçado, fragmentado, estilhaçado pela maldade daqueles que engordam o corpo e embrutecem a alma à custa dos débeis e dos pobres já perdeu a possibilidade de se socorrer do último argumento que lhe restava:
— Olha que, se tu não estudares, não vais conseguir tirar positiva no exame! (Ou — Vá lá, tens de saber isto e aquilo e aqueloutro, porque vai sair no exame, que é para depois conseguires tirar uma boa nota e podermos fazer uma festa...)
Argumento pobre? Sem dúvida, argumento pobre, muito pobre! Argumento falacioso? Sem dúvida, argumento falacioso, muito falacioso (a falácia do recurso à força, pois aquele professor está a exercer pressão psicológica sobre o aluno). Mas este argumento pobre, fraco, falacioso é, infelizmente, o último dos argumentos a que alguns alunos, na situação de estilhaçamento da dignidade em que se encontram, ainda dão alguma importância! É, por isso (infelizmente! Repito: infelizmente! E mais uma vez: infelizmente! E ainda outra vez, com a raiva a agitar‑me e a convulsionar‑me: infelizmente!), o último dos argumentos (juntamente com outros, como o argumento falacioso da misericórdia — Vá lá! Por favor! Estou a pedir‑te por favor!...) a que o professor tem necessidade de recorrer, a fim de tentar salvar alguma coisa de uma vida, a vida concreta daquele aluno concreto, que é uma pessoa concreta, com um nome concreto, com uma história concreta, que está ainda atrofiada e aprisionada nas subcaves subterrâneas do edifício da dignidade da vida humana. E aquele professor está a lutar, desta forma imperfeita e falaciosa (e ele sabe que é uma forma imperfeita e falaciosa), por um aluno concreto, na esperança de que ele consiga sair das subcaves subterrâneas do edifício e possa depois subir ao rés‑do‑chão, depois ao primeiro andar, depois ao segundo andar e depois ao terceiro e depois... E depois às montanhas exaltantes da vida, às mais altas, às mais altas das mais altas... Para que, depois, quando a morte chegar, possa dizer: Valeu a pena! Foi difícil, às vezes foi brutalmente difícil, mas valeu a pena!
Pois bem, aquilo que esta decisão deste governo veio mostrar a este aluno concreto é que ele não precisa de se esforçar, não precisa de estudar, não precisa de se aplicar naquelas matérias chatas com que o professor andava a massacrá‑lo, porque não vai haver exame nenhum!
Não foi esta a intenção do senhor ministro da Educação e daqueles que o apoiam e aplaudem? Não, claro que não! Bem sei que não! Mas esta é a interpretação que o aluno concreto faz, e lamento muito o facto de, segundo parece, o senhor ministro da Educação e aqueles que o apoiam e aplaudem não a terem tido em conta nem as implicações que daqui decorrem para a desgraça deste aluno.
Estás a referir‑te a um número residual e marginal de alunos — poderá alguém, com razão, objectar. Talvez. Talvez esteja a referir‑me a um número residual e marginal de alunos, talvez. O problema é que esta objecção é reveladora de uma mentalidade típica da Direita, para a qual os coitadinhos estão condenados a ser, pela fatalidade das leis da Natureza e da História (e alguns até têm o desplante e o despudor de embrulhar tudo isto no manto da vontade de Deus, Senhor da Natureza e da História!), sempre e perpetuamente coitadinhos, mentalidade que muito convém aos «grandes senhores deste pequeno mundo» alimentar, para que possam apaziguar o incómodo da voz da consciência (que chatice, a voz da consciência ser tão incómoda!) com umas migalhinhas que, da sua farta e opulenta mesa, vão deixando cair (às vezes, só quando as circunstâncias exteriores apertam) para os coitadinhos. Ora, este governo e as forças partidárias que o apoiam dizem‑se de Esquerda, e, portanto, temos aqui uma grosseira, monstruosa e assustadora contradição!
Ser de Esquerda exige, no campo da educação, que tenhamos educado (e continuemos a educar) o nosso olhar de modo a conseguirmos ver a organização social a partir do ponto de vista do mais desfavorecido de entre todos os mais desfavorecidos. E exige, concomitantemente, que tenhamos educado (e continuemos a educar) a nossa atitude (isto é, as nossa tendência interior) e o nosso comportamento (a nossa acção) em atenção e cuidado para com os mais desfavorecidos dos mais desfavorecidos. Pois bem (ou antes: pois mal), o actual governo e as forças partidárias que o apoiam e aplaudem, que se dizem de Esquerda, ao tomarem a decisão que tomaram, esqueceram este princípio elementar da Esquerda.
E, ao esquecerem este princípio elementar, esqueceram‑se do aluno, talvez o mais desfavorecido dos mais desfavorecidos, que, a partir de agora, já não encontra nenhuma pressão que o obrigue a esforçar‑se por superar as suas dificuldades a fim de subir no edifício e nas montanhas do conhecimento. E desrespeitaram o professor que, nas margens do desespero, se apegou a uma frágil bóia de salvação para tentar salvar o aluno! Terrível!
E mais terrível tudo isto se torna quando um dos argumentos de quem assim procedeu é precisamente o de defender o aluno e outros como ele! Mentira! Gravíssima mentira! Este aluno e outros que estão numa situação idêntica à sua reagem de modo muito diferente daquele que está na imaginação fantasiosa e irrealista dos autores desta decisão: Não é preciso estudar, não é preciso esforçar‑me, porque, afinal, já nem exames vai haver! Este aluno foi, na verdade, defendido? Não, não foi. Este aluno foi, isso sim, ofendido na sua dignidade. Uma aparência de defesa torna‑se, na realidade, uma ofensa. Porque, muito provavelmente, foi negada a este aluno a última oportunidade de acesso a possibilidades de, no futuro, poder ascender a lugares e posições aos quais a maioria das crianças da sua idade vai poder ascender. Em nome da fruição facilitada do presente, foi‑lhe roubada a potencialidade de futuro.
Os outros, os que fazem parte da maioria que não precisa de exames para alcançar os objectivos que o sistema educativo exige, ir‑se‑ão safando. Alguns, aqueles cuja inteligência é mais adequada às aprendizagens que o sistema educativo exige e que são alunos motivados, honestos, trabalhadores, briosos, eram bons alunos com exames e continuarão a ser bons alunos sem exames. Para alguns, com algumas dificuldades específicas ou pontuais, haverá sempre a possibilidade de recorrer a explicadores, que, para isso, há‑de haver dinheiro. Para uma minoria de privilegiados, haverá a possibilidade de estudar em colegiozinhos particulares (é assim que alguns membros e apoiantes deste governo têm vindo a proceder, pelos respeitáveis motivos que, nas últimas semanas, têm divulgado). Mas, para o tal aluno e para aqueles que estão numa situação idêntica à dele, nada disto será possível. É assim, é a lei da vida.
De facto, é a lei da vida e é ela que constitui o argumento fundamental que sustenta o liberalismo, o capitalismo e outros «ismos» que, por sua vez, sustentam a Direita. Este governo e as forças partidárias que o apoiam e aplaudem dizem‑se de Esquerda e até usam alguma roupagem exterior típica da Esquerda mas, na realidade, são seguidores e aplicadores dos princípios da Direita.
Estás a exagerar! — dir‑me‑ão algumas pessoas e facilmente reconheço que têm razão ou, pelo menos, alguma razão. Já afirmei e repito: em condições normais, alunos normais não precisariam de se sujeitar a provas ou exames nacionais. Bem sei que a obsessão pelos resultados nestes instrumentos de avaliação externa pode produzir efeitos perversos e nefastos no processo de ensino‑aprendizagem, principalmente nas crianças que frequentam os primeiros ciclos de escolaridade. O argumento de que tal sistema de avaliação não existe na maioria dos países europeus é importante e deve ser tido em consideração.
Só que isto não nos deve fazer esquecer que a nossa realidade cultural é muito diferente de outras realidades culturais de outros países europeus. Dou um exemplo: os hábitos de leitura. Enquanto, em alguns países que conheço, as crianças são, desde muito cedo, habituadas à leitura, no nosso país isto só acontece com uma minoria. Isto é uma enorme desvantagem, que dificulta o trabalho dos professores: perante alunos, desde pequeninos imersos na cultura da passividade, a apodrecerem mentalmente diante da televisão (que está sempre ligada em casa, nos cafés, nos restaurantes e até nas salas de espera dos centros de saúde e hospitais), que dizem Não gosto de ler! e que se recusam a recuperar o tempo perdido em termos de motivação para a leitura e para a reflexão, o trabalho do professor está, à partida, muito condicionado. Neste contexto, é compreensível que, infelizmente, talvez não baste o recurso aos normais instrumentos de avaliação interna. Talvez seja necessário recorrer, desde muito cedo, a instrumentos complementares de avaliação externa.
Pois, é para isso que existem as provas de aferição! — responder‑me‑ão. Sim, as provas de aferição são muito importantes, mas poderão não ser suficientes. Na mentalidade vulgar à qual estão submetidos muitos alunos, aquilo que não conta para a nota não é importante e não mobiliza os alunos (ou, pelo menos, os alunos que mais precisam de ser mobilizados) para o rigor no processo de aprendizagem. Os alunos precisam, em todo o processo educativo, logo desde o primeiro ciclo, de aprender, com normalidade, que as aprendizagens a que vão tendo acesso têm de ser testadas através de instrumentos seguros de avaliação. É normal que assim seja: faz parte de um sistema de ensino‑aprendizagem sério, seguro, sólido — aprendizagens seguras, por meio de metodologias seguras, avaliadas através de instrumentos seguros e segundo critérios seguros.
Será isto assim tão difícil de entender?! Será que as pessoas que têm especial responsabilidade na condução da política educativa não vêem as traições que, ano após ano, década após década, têm vindo a ser feitas às gerações mais jovens por um sistema de ensino líquido, mole, preguiçoso? Por exemplo, detentores de diplomas do ensino superior (alguns até são professores!) escrevem, hoje, com erros ortográficos!... Como é que isto é possível?! E, no entanto, é isto mesmo que acontece! Por culpa deles? Claro que sim, por culpa deles! Mas também (e sobretudo!) por culpa nossa! Por culpa de nós, professores, que não fomos rigorosos, exigentes e sérios! E por culpa daqueles que, a partir do Ministério da Educação, não foram rigorosos, exigentes e sérios na criação de condições para que nós, professores, fôssemos para com os alunos, para com cada aluno, rigorosos, exigentes e sérios! Fomos traidores de sucessivas gerações de alunos. Tenho receio de que, com as actuais decisões do actual Ministério da Educação, continuemos a ser traidores da actual geração de alunos portugueses. Terrível!"
Manuel Nunes