quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Conhecimento, currículo e o futuro da educação

Michael Young, sociólogo da educação, estará em Coimbra na próxima sexta-feira, dia 19, para fazer a conferência inaugural do "I Congresso do Programa do Doutoramento em Ciências da Educação" da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação.

Nessa conferência, intitulada "Knowledge, Curriculum and the Future of Education" explicará porque é que o currículo escolar tem de manter o "conhecimento poderoso" organizado, primeiramente por disciplinas.

Reproduzo abaixo extractos de uma entrevista que deu, em 2014 à revista Educação e Pesquisa (aqui)
Em 1971, Michael Young editou uma obra que se tornou a expressão de uma importante mudança na forma de compreender o currículo no contexto europeu. Intitulado Knowledgeand Control: New Directions for the Sociology of Education, reuniu textos de autores que compunham o denominado movimento da Nova Sociologia da Educação (NSE), entre eles Pierre Bourdieu, Geoffrey Esland, Neil Keddie, Basil Bernstein e o próprio Michael Young. A perspectiva a que se opunham esses autores era a que defendia uma concepção técnica do currículo, centrada em questões como: quais os melhores métodos (…) para garantir que se atinjam os resultados esperados em relação [à] escolarização e quais as melhores formas de organizar o currículo para esse mesmo fim. Nessa abordagem, não havia espaço para discutir o que se ensinava, que era tomado como um dado sobre o qual seria desnecessário reflectir (…). 
A NSE introduziu uma nova forma de analisar o currículo, que incidia exatamente sobre as escolhas que se faziam para definir o que deveria ser ensinado, afirmando que a seleção de conhecimento era expressão dos interesses dos grupos que detinham maior poder para influir nessa definição. Assim, de uma visão de currículo supostamente neutra, não problematizadora das escolhas realizadas em torno do conhecimento, passava-se a uma visão crítica dessas escolhas, que claramente assumia o viés político (…). É nesse contexto de identificação das relações de poder incrustradas no currículo, de denúncia do silenciamento de muitas vozes na definição do que é relevante, em especial daquelas oriundas das classes economicamente menos favorecidas, que Michael Young apresenta sua primeira forma de abordagem do currículo (…). 
Passadas algumas décadas, assume outra perspectiva, ao afirmar que o que importa nas discussões sobre currículo é saber se o conhecimento disponibilizado na escola é conhecimento poderoso, ou seja, se permite que os alunos compreendam o mundo em que vivem (…). Para crianças de lares desfavorecidos, a participação na escola pode ser a única oportunidade de adquirirem conhecimento poderoso e serem capazes de caminhar, ao menos intelectualmente, para além de suas circunstâncias locais e particulares. 
Não há nenhuma utilidade para os alunos em se construir um currículo em torno da sua experiência, para que este currículo possa ser validado e, como resultado, deixá-los sempre na mesma condição (…). Sua preocupação passa a ser a de firmar uma posição contrária à defesa de um currículo por resultados, instrumental e imediatista, ressaltando a necessidade de garantir acesso ao conhecimento, em especial para crianças e jovens dos grupos sociais desfavorecidos; defende que a escola não se afaste de sua tarefa específica, disponibilizando o conhecimento especializado, que não se acessa na vida cotidiana e que pode oferecer generalizações e base para se fazer julgamentos, fornecendo parâmetros de compreensão de mundo. 
Entende que, para o desenvolvimento dessa compreensão de mundo, é importante dispor de conhecimentos e formas de pensamento que permitam (…) aprofundar o entendimento das múltiplas relações envolvidas nos fenômenos naturais e sociais (…). Em contraste com a visão tradicional, as disciplinas não são vistas como parte de algum cânone fixo definido pela tradição, com conteúdos e métodos imutáveis. [...] 
Ao adquirirem conhecimentos das disciplinas, [os estudantes] estão ingressando naquelas “comunidades de especialistas”, cada uma com suas diferentes histórias, tradições e modos de trabalhar (…). Assume e defende, portanto, o valor social de uma distribuição mais justa do conhecimento poderoso, cujo acesso deveria ser possibilitado a todos: a escolarização representa (ou pode representar, dependendo do currículo) os objetivos universalistas de tratar todos os alunos igualmente e não apenas como membros de classes sociais diferentes, grupos étnicos diferentes ou como meninos e meninas (…). 
Sua perspectiva sobre o currículo mudou dos anos 1970 para cá. O senhor poderia descrever brevemente essas duas perspectivas e explicar como se deu a mudança? 
Como sociólogo, quando comecei a pensar sobre o currículo, eu queria ver quais teorias sociais que poderia trazer para essa discussão. Em meu primeiro livro, Knowledgeand Control, publicado em 1971, no primeiro capítulo “O currículo e a organização social do conhecimento” (…) basicamente, eu entendia o currículo como um conjunto de relações de poder. Isso era importante, porque, se fosse possível entender o currículo assim, então seria possível mudá-lo. Era uma reação à ideia de que o currículo era algo fixo e de que todo mundo deveria se adaptar a ele. Eu queria expor a ideia de que, na verdade, o currículo é uma construção social, que reflete certos tipos de interesses, inclui algumas coisas e exclui outras, estratifica o conhecimento, valoriza algumas coisas em detrimento de outras, e que você pode explorar os diferentes interesses envolvidos em todo esse processo. Essas ideias tiveram um grande impacto na época, porque constituíram a primeira tentativa de abordar o currículo dessa maneira (…). Aos poucos, percebi que, no fundo, ela não se apoiava numa boa noção de conhecimento. Tendia a vê-lo como qualquer coisa (…) as relações institucionais de poder, a burocracia, ou o que acontece em uma fábrica, ou numa família, tudo era considerado conhecimento. Mas percebi que essa talvez não fosse uma ideia muito adequada para definir o conhecimento, porque há um tipo de conhecimento que é produzido em qualquer sociedade, e que, na verdade, é o melhor que se desenvolveu para explicar o mundo. E há uma razão para que seja considerado melhor. Pensando dessa forma, por que não trazer esse conhecimento para o currículo? Isso me levou a estudar diferentes teorias do conhecimento. No início, estudei a fenomenologia, a sociologia do conhecimento de Max Weber, um pouco a respeito da produção dos interacionistas simbólicos americanos e voltei a Durkheim (…) que me ajudou a entender que, na verdade, todo conhecimento, inclusive o currículo, é uma construção social, mas o que a sociedade faz é legitimar certos conhecimentos como verdadeiros e confiáveis, e considerar outros como ideologicamente inclinados ou ligados a interesses específicos (…) O que Durkheim me ensinou foi que o que a sociedade faz com o conhecimento não é função apenas de ideologia e interesses, mas também depende de objetividade e fidedignidade (…) A pesquisa sociológica anteriormente produzida abordava o currículo com o intuito de identificar os seus vieses: um viés que o opunha aos interesses dos trabalhadores (…) aos interesses das mulheres (…) aos interesses dos negros... Tudo isso é importante, mas também é importante verificar se o currículo disponibiliza de fato um conhecimento relevante, porque seria necessário que o fizesse. 
Houve alguma experiência concreta que influenciou essa mudança de perspectiva, tal como o trabalho que desenvolveu na África do Sul, por exemplo? 
Certamente. A experiência sul-africana foi muito importante para mim. Estive lá depois do fim do apartheid, depois de instaurado o primeiro governo democrático. Eu estava trabalhando com várias organizações democráticas, que reuniam professores e educadores, sindicatos etc., para tentar elaborar um novo currículo. A primeira tentativa de elaboração de um novo currículo foi por meio da adoção de uma versão da minha teoria do conhecimento anteriormente apresentada, que basicamente sugeria que o currículo era a expressão das relações de poder. Nós não queríamos que as pessoas no poder tomassem decisões sobre o melhor conhecimento; portanto, a conclusão a que se chegou foi de que isso deveria ser decidido pelos professores. Assim, não se impôs nenhum tipo de currículo aos professores; esperou-se que eles fossem capazes de criá-lo. Mas é claro que isso não funcionou, porque os professores tinham sido mal formados, não tinham recebido formação adequada para aquilo e não sabiam o que fazer com a autonomia que lhes havia sido concedida. E, com isso, dei-me conta de que era preciso pensar novamente sobre o conhecimento e descobrir um jeito melhor, particularmente porque se desejava que o currículo de fato oferecesse oportunidades para o desenvolvimento das pessoas (…) 
Sua produção mais recente trata do “conhecimento poderoso”. O que quer dizer com essa expressão? 
A teoria do currículo estava estudando o currículo com uma abordagem que eu chamei de “conhecimento dos poderosos”, mostrando quem tomava as decisões, quem selecionava o que entrava ou não no currículo. Num certo sentido, o conceito de “conhecimento poderoso” foi uma mudança de perspectiva, pois dizia: “não olhem apenas para os que estão decidindo sobre o currículo, olhem para o próprio conhecimento e se perguntem como esse currículo específico pode incorporar um conhecimento que, uma vez adquirido pelos jovens, será poderoso para eles, em termos de como eles verão o mundo, como poderão interpretá-lo e possivelmente transformá-lo”. Quando comecei a usar o conceito de “conhecimento poderoso”, no bojo de uma tensão com o conceito de “conhecimento dos poderosos”, não era um conceito isolado, era um conceito dual. Hoje, acho que qualquer pesquisa sobre o currículo precisa estar baseada nos dois conceitos, pois o currículo sempre tem relações de poder embutidas nele. Numa sociedade cheia de desigualdades, aqueles que detêm o poder sempre tentam fixar o currículo de maneira a atender seus interesses. Isso é uma característica do mundo em que vivemos, não podemos escapar dela e é importante expô-la e torná-la explícita (…). Esse é um ponto. Outro é tentar tornar explícitas as premissas do que queremos dizer com conhecimento poderoso – e isso é muito importante, porque se trata de saber se os jovens estão tendo acesso a um conhecimento que pode ser de grande valor para eles (…) muitas vezes, como os professores não têm uma noção clara do que é conhecimento relevante, tentam adaptar o currículo aos interesses dos jovens e, quando estes chegam ao final de seus estudos, não adquiriram nenhum conhecimento adicional (…). Minha teoria parte da premissa de que um currículo que incorpore o conhecimento poderoso é um currículo que se concentra no conhecimento ao qual os jovens não têm acesso em casa. É distinto da experiência pessoal deles e, essencialmente, desafia essa experiência. Esse é o ponto principal de onde parto.

2 comentários:

Anónimo disse...

Parece que já se começa a ver uma luzinha ao fundo do túnel!
Enquanto houver investigadores como Michael Young e Helena Damião, haverá a esperança de que a escola nunca deixe de ser um lugar privilegiado para ensinar e aprender. Nesta luta pela educação, temos de começar por derrotar os maluquinhos do eduquês, cuja petulância já vai ao ponto de obrigarem um licenciado, à antiga portuguesa, em Física, como eu, a ensinar a alunos finalistas do liceu que o valor da aceleração da gravidade terrestre é 10 metros por segundo quadrado, quando o valor correto é 9,8 metros por segundo quadrado! Depois, para justificarem disparates como estes, vêm com teorias delirantes de que os alunos filhos de burgueses seriam beneficiados se eu ensinasse o valor correto porque esses têm telemóveis de última geração e os filhos dos pobres não!

Anónimo disse...

O senhor anónimo de 19 de janeiro tem muito patuá a criticar os cientistas da educação que, imperturbáveis nas suas torres de marfim, estudam e acumulam mestrados e doutoramentos que os fazem subir na carreira e contribuem decisivamente para a escola de excelência que o nosso povo "exige e merece", como diziam os militares em abril de 74 e 75, mas se é assim tão racionalista porque é que não traz a terreiro as suas alternativas de resolução do problema da educação, como quem se põe à frente de um par de cornos de um touro, tarado em uma tonelada, e o pega de caras?!
A sociedade portuguesa nunca conseguirá pagar a grande dívida de gratidão que tem para com milhares de especialistas em Desenvolvimento Curricular e Aprendizagem que, enxameando as nossas universidades e institutos politécnicos equivalentes, fabricaram com o néctar das suas floridas teorias uma escola melada, onde todos têm lugar nas carteiras, dispostas em filas tradicionais, ou em círculos modernos, para aprenderem a aprender, enquanto o bom-senso não regresse ao ensino em sala de aula!...

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