domingo, 26 de janeiro de 2025

Como se divertiam! Um conto de Isaac Asimov

     Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião  
 
Tradução do conto The fun they had, de Isaac Asimov, publicado em 1951 e a que fizemos alusão aqui.

Nessa noite, Margie fez uma anotação no seu diário. Na página de 17 de Maio de 2157, escreveu: “Hoje o Tommy encontrou um livro. Um livro de verdade!”
Era um livro muito antigo. O avô de Margie contou-lhe uma vez que, quando era pequeno, o seu avô lhe tinha contado que tinha havido um tempo em que as histórias eram sempre impressas em papel. Viravam-se as páginas, que eram amarelas e se enrugavam, e era muito divertido ver que as palavras se mantinham paradas em vez de se deslocarem no ecrã. E, quando se voltava à página anterior, lá estavam as mesmas palavras que se tinham lido antes.
— Caramba, – disse Tommy - que desperdício! Suponho que quando acabares o livro, o deitas fora. O nosso ecrã de televisão já mostrou um milhão de livros e dá para muitos mais. Eu nunca o deitaria fora.
— O mesmo acontece com o livro, - respondeu Margie.
Ela tinha onze anos e não tinha visto tantos telelivros como o Tommy. Ele tinha treze anos.
— Onde é que o encontraste?
— Em minha casa - Tommy apontou sem olhar, porque estava ocupado a ler - no sótão.
— De que trata?
— Da escola.
— Da escola? O que é que se pode escrever sobre a escola? Eu odeio a escola.
Margie sempre detestou a escola, mas agora mais do que nunca. O professor automático dava-lhe testes de geografia, uns atrás dos outros, e os resultados eram cada vez piores. A mãe de Margie tinha abanado tristemente a cabeça e chamado o inspetor do condado.
Era um homenzinho rechonchudo, de rosto rubicundo, que trazia uma caixa de ferramentas com puxadores e fios. Sorriu a Margie e deu-lhe uma maçã, depois desmontou o professor.
Margie esperava que ele não conseguisse voltar a montá-lo, mas ele conseguiu e, passada uma hora, lá estava ele outra vez, grande, negro e feio, com um ecrã enorme onde se mostravam as lições e apareciam as perguntas. Mas isso não era o pior. O que Margie mais detestava era a ranhura através da qual tinha de inserir os trabalhos de casa e os testes.
Tinha sempre que os escrever num código que foi obrigada a aprender quando tinha seis anos, e o professor automático calculava a classificação num instante.
O inspetor sorriu ao terminar a tarefa e deu uma palmadinha na cabeça de Margie.
— A culpa não é da menina, Sra. Jones. - disse ele à mãe - Acho que a secção de Geografia estava demasiado rápida. Às vezes acontece. Sintonizei-a para um nível adequado a uma criança de dez anos. Mas o padrão geral de progresso é muito satisfatório. – e voltou a acariciar a cabeça da Margie.
Margie ficou desiludida. Tivera esperança que o professor fosse afastado. Uma vez, levaram o professor de Tommy durante um mês inteiro porque a secção de História tinha sido completamente apagada.
Então, ela disse a Tommy:
— Quem é que quer escrever sobre a escola?
Tommy olhou para ela com ar de superioridade.
— Porque não é uma escola como a nossa, tonta. É uma escola como a de há centenas de anos – e acrescentou com altivez, pronunciando a palavra muito lentamente – séculos...
Margie sentiu-se magoada.
— Bem, não sei que escola é que eles tinham há tanto tempo – leu o livro por cima do ombro de Tommy e acrescentou: - de qualquer modo, tinham um professor.
— Claro que tinham um professor, mas não era um professor normal. Era um homem.
— Um homem? Como é que um homem pode ser professor?
— Ele explicava as coisas aos miúdos, dava-lhes trabalhos de casa e fazia-lhes perguntas.
— Um homem não é suficientemente inteligente.
— Claro que é. O meu pai sabe tanto como o meu professor.
— Não é possível. Um homem não pode saber tanto como um professor.
— Aposto contigo que sabe quase o mesmo.
Margie não estava disposta a discutir o assunto.
— Eu não gostaria que um homem estranho viesse a casa ensinar-me.
Tommy soltou uma gargalhada.
— És tão ignorante, Margie. Os professores não viviam na casa. Tinham um edifício especial e todos os miúdos iam para lá.
— E aprendiam todos a mesma coisa?
— Claro que sim, desde que tivessem a mesma idade.
— Mas a minha mãe diz que um professor tem de estar sintonizado para se adaptar à idade de cada criança e que cada criança deve ser ensinada de forma diferente.
— Bem, antes não era assim. Se não gostas, não tens de ler o livro.
— Eu não disse que não gostava - apressou-se a dizer Margie.
Na verdade, ela queria ler tudo sobre aquelas escolas estranhas. Ainda não tinham terminado quando a mãe de Margie a chamou:
— Margie! Escola!
Margie olhou para cima.
— Ainda não, mãe.
— Agora! – gritou a senhora Jones - E também deve ser a hora de Tommy.
— Posso continuar a ler o livro contigo depois da escola? - perguntou Margie a Tommy.
— Talvez - disse ele de modo petulante, e foi-se embora a assobiar, com o livro velho e poeirento debaixo do braço.
Margie entrou na aula. Era ao lado do quarto e o professor automático já estava ligado e à espera. Ligava-se sempre à mesma hora todos os dias, excepto aos sábados e domingos, porque a mãe dizia que as raparigas aprendiam melhor se estudassem com horário regular. O ecrã estava iluminado.
— A lição de aritmética de hoje - disse o professor- é sobre a adição de fracções. Por favor, insere o trabalho de casa de ontem na ranhura adequada.
Margie obedeceu, com um suspiro. Estava a pensar nas antigas escolas, quando o avô do avô era pequeno. Todas as crianças da vizinhança iam para lá, riam e gritavam no recreio, sentavam-se juntas na sala de aula, iam juntas para casa ao fim do dia. Aprendiam as mesmas coisas e, por isso, podiam ajudar-se uns aos outros a fazer os trabalhos de casa e a falar sobre eles. E os professores eram pessoas... O ecrã do professor automático piscou.
— Quando adicionamos as fracções ½ e ¼...
Margie pensava que as crianças deviam adorar a escola dos tempos antigos. Pensava como elas se deviam divertir.

FIM

11 comentários:

Anónimo disse...

O que é ser um excelente professor?Como se avalia um professor sem supervisão direta?
Que referencial para avaliar um professor? O atual? (Ah ah ah)
Qual a diferença entre um 9,99 e um 10? Onde foi a falha? O que teve 10 nunca errou durante um ano letivo inteiro? Como saber? Surrealismo percetivo?
O que é a amizade? Uma ordem?
O que é um relatório de autoavaliação? Um exercício de homenagem ao eu?
O que são aulas observadas? Preparadas, copiadas, ensaiadas? Serão todas assim, todos os dias?
O que é um avaliador externo? Tem legitimidade profissional para exercer essa função? Como prova e fundamenta a sua avaliação se ninguém é obrigado a facultar-lhe qualquer evidência?
O que é um avaliador interno? Um coordenador de departamento que avalia relatórios de autoavaliação de colegas, os tais que se auto elogiam?
O que é esta treta?

Anónimo disse...

Errata: autoelogiam.

Anónimo disse...

Mesmo hoje, em 2025, os professores de carne e osso já pouco, ou nada, estão autorizados a ensinar! Na escola inclusiva, a todo o custo, apenas são tolerados os professores que cumprem as ordens de avaliarem muito positivamente todos os seus alunos, incluindo os pobrezinhos e os que preferiam ser mais bem avaliados, com verdade e justiça. Se o triste rumo atual se mantiver, na escola do futuro de Asimov, que se aproxima a passos largos, os professores feitos de lata e plástico, com luzinhas a piscar, não substituirão eficientemente os professores humanos na complexa, e humana, tarefa que é ensinar, mas estarão programados para avaliar qualquer aluno à velocidade da luz, ou quase!...

Anónimo disse...

Eu já me disfarcei de lata e plástico, pus umas luzinhas nas laterais e toda eu pisco, pisco, que já vejo muita mal. Faço bip, bip o dia todo porque tb não é preciso ensinar mais do que isso e todos passamos de ano e de escalão. E mesmo com este brilhante facilitismo, ninguém quer ser professor, portanto, deixemos passar o rio, Lídia, porque a vida boa resume-se a comer chocolates e a deitar o papelucho para o chão porque a voz de Deus grita num poço tapado ao Esteves sem metafísica. Pessoa era um sábio.

Carlos Ricardo Soares disse...

Lembro, entre outras situações, de uma conversa ao intervalo, em que um colega professor, mais velho, em tom de desabafo, dizia que não era só a escola que estava cada vez menos divertida, o mundo também e que, quando não nos divertimos com o que fazemos, pouco ou nada há a fazer.
O director, presente, retorquiu que a escola não é, não tem de ser, nem deve ser divertida, porque o que é divertido não é bom e que, por ele, até decretava que se acabasse com o divertimento. Eu ri-me como se tivesse ouvido a anedota do pregador que era pago à razão da quantidade de vezes que fosse capaz de dizer do púlpito o nome do santo da festa sem se tornar enfadonho para os dóceis paroquianos. Foi mesmo divertido.
Hoje, reconheço que há certas formas de alguém ter razão pelo simples facto de as suas sentenças serem insindicáveis, como essa de “o mundo está cada vez menos divertido”. Uma tal consideração é do foro absoluto das razões de cada um, mesmo que não seja uma declaração sincera. É uma espécie de prerrogativa poética do indivíduo e não é influenciada pelo facto de acharmos que era melhor ou pior que não fosse proferida.
Se alguém diz que as coisas estão cada vez menos divertidas, não há como lhe retirar razão. Não encontraremos outra razão para o que afirma, senão a dele próprio o qual, provavelmente, nem é capaz de conhecer as causas ou de apresentar justificações, de que, aliás, está absolutamente desonerado. E se essa pessoa for à procura das causas do desenfado patente no seu interlóquio e tentar contrariá-las, por exemplo, escrevendo uma história de amor, logo encontrará razões adicionais e forças maiores para tropeçar reforçando-se na suprema instância do seu desalento, quiçá poético.
A arte de ter sempre razão é das mais difíceis de apreciar e de criticar por ser da essência da crueldade, mas duma crueldade da linguagem associada e potenciadas pelo domínio de linguagens de crueldade.
Sócrates não teria ficado famoso se, em vez de afirmar o irredutível, e sábio na “arte de ser eu”, “só sei que nada sei”, tivesse afirmado, desavisadamente, “só sabes que nada sabes”.

Mário R. Gonçalves disse...

Estas ficções são úteis para nos alertar, para que estejemos preparados; mas não deixam de ter um perfume de mofo, de velhos do restelo, antigamente é que era bom , o futuro é catastrófico. è possível que tenha havido bos momentos históricos no passado, como o famoso fin de siècle XIX ou os anos 30, ou até o reinado de Louis XIV; mais próximo, o final do século XX parece uma miragem de bem estar e esperança. Talvez sejam tudo ficções também; eu não trocava. Quando se analisa mais em detalhe, tudo, mas TUDO, era pior dantes; não há nada de bom no passado que não esteja melhor agora. A qualidade de vida, a saúde, a limpeza, a segurança, a higiene alimentar, a habitação, os transportes, etc etc , e a educação também. O que há, sim, é muita gente ranhosa empenhada em piorar tudo isso, mas a história mostra que são vencidos pelo, aham aham, progresso. Tenho a certeza que o futuro da educação não é nenhum pesadelo: terá ainda defeitos. claro, mas será certamente um passo à frente melhor que hoje.

Anónimo disse...

Eu farto-me de rir no trabalho e é bom. Cada vez que um aluno me responde, eu desprego-me. Cada vez que filosofam sobre o ensino, eu escavaco-me. Sempre que fazemos reuniões de avaliação de alunos, eu entro em convulsão. Sempre que leio leis educativas que não batem a bota com a perdigota e permitem que as pessoas se perpetuem nos cargos como se fossem primogénitos do rei, eu mando-me pro chão; quando os sindicatos marcam greves, eu fico imensamente feliz; sempre que avalio professores ou me avaliam, eu vou às lágrimas e mais não digo… Vou sempre com a minha mochila para a escola e um sorriso emancipado de orelha a orelha à espera de mais anedotas.

Anónimo disse...

Para o mês que vem, vou gargalhar à brava porque passarei para o penúltimo escalão. É mesmo um sentimento de pura alegria infantil.

Anónimo disse...

Não há senão estados de alma! Sejam do poeta, do pensador, ou do professor.

Anónimo disse...

Com certeza!

Anónimo disse...

Vossa Excelência fala de barriga cheia!
Vá dizer aos palestinianos da Faixa de Gaza que agora "ESTEJEMOS" melhor!

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