Meu prefácio ao livro Como Perder Amigos Rapidamente, de David Marçal (Gradiva):
Em 1936, saiu um dos livros mais influentes do século passado: Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas. Foi seu autor o self-made man norte-americano Dale Carnegie (de facto, chamava-se Carnegey, mas mudou o nome para ficar com o apelido do magnata e filantropo Andrew Carnegie). Warren Buffett, um dos homens mais ricos do mundo, diz que o leu com proveito aos 20 anos, ostentando no seu escritório o diploma do curso que fez no Carnegie Institute (o Carnegie é do autor do best-seller e não do filantropo). O livro enriqueceu o autor ao vender para cima de 30 milhões de exemplares em mais de 30 línguas. Há uma edição corrente em português, o que mostra a intemporalidade do género de autoajuda. De facto, as pessoas continuam a precisar de ajuda e muitas autoajudam-se, aumentando o pecúlio dos herdeiros do autor.
O título do David Marçal parece situar-se nos antípodas dos objectivos preconizados por Dale Carnegie. Mas é evidentemente irónico. De facto, há amigos e amigos. Uns podem-se perder sem prejuízo de maior e outros convém manter. Hoje, no tempo das redes sociais, a palavra «amigo» ganhou novos significados: eu, por exemplo, tenho 5000 amigos no Facebook e só não tenho mais porque essa rede não deixa. Vou perdendo alguns, lentamente, o que permite a entrada de quem está na fila de espera. Mas, embora esteja na lista dos 5000, o David é um amigo real e não virtual. Um amigo que não conto perder.
Conheci-o pouco depois de, há 20 anos, Mark Zuckenberg ter criado uma maneira inovadora de fazer amigos. Eu era membro do júri de um concurso do jornal Público que escolhia cientistas para trabalhar alguns meses na redacção da sua secção de ciência. A iniciativa, no tempo de José Mariano Gago (que falta nos faz!), visava aproximar a ciência do público, desenvolvendo a cultura científica. O David, na altura a doutorar-se em Bioquímica, era já um claro talento na divulgação científica. Distinguia-se não só pelo seu conhecimento das matérias e pelo raciocínio arguto, mas também pela sua originalidade e pelo seu sentido de humor. Uma marca dessa qualidade foi o seu projecto «Cientistas de Pé», no qual uma trupe de cientistas fazia comédia sobre temas de ciência: ver o livro Toda a Ciência (menos as partes chatas), que ele e os seus companheiros publicaram na Gradiva em 2013. Um assunto em que se especializou, com proveito para a cultura nacional, foi a pseudociência: a Fundação Francisco Manuel dos Santos publicou em 2014 um ensaio dele precisamente com esse título. Temos feito muitas coisas juntos, na divulgação científica e não só (já velejei no Tejo no seu barco com um nome estapafúrdio), incluindo quatro livros na Gradiva (o primeiro foi Darwin aos Tiros e Outras Histórias de Ciência, em 2011). E tem sido sempre uma festa trabalhar com ele. Quando o reencontro, há sempre uma observação criativa e, muitas vezes, uma piada nova. Criámos o podcast Mais Lento do que a Luz, hoje no Público, depois de termos feito no mesmo jornal um outro podcast chamado Assim Fala a Ciência, com o patrocínio da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Ainda no quadro desta Fundação, criámos o GPS - Global Portuguese Scientists, a rede de cientistas portugueses no mundo, e o Mês da Ciência e Educação.
O David insistiu num meu prefácio para este livro. Ainda retorqui que os meus prefácios estavam algo desvalorizados pela relativa abundância, mas a um amigo nada se recusa. Num livro que fala da perda de amigos, quero esclarecer que, depois de o ler, não perdi esse amigo, bem pelo contrário: passei a admirá-lo mais. A obra que o leitor tem entre mãos é o David no seu melhor: sábio e corajoso. Estou convencido de que, contrariando o título, ele vai não só reforçar os muitos amigos que já tem, mas também fazer novos. Trata-se de uma análise o mais racional possível de um rol de desvarios do mundo actual. Vivemos tempos estranhos: por um lado a capacidade criativa do Homo sapiens permite-lhe viver melhor do que jamais viveu desde que há 300 000 anos começou, em África, a sua jornada na Terra. Mas, por outro lado, nunca foi tão ampla a aparição e tão rápido o espalhamento da irracionalidade. Todos temos dois lados – um racional e outro irracional, mas muitas pessoas esforçam-se alegremente por dar a conhecer o segundo. O paradoxo maior está em que a irracionalidade brota e corre através de meios de comunicação, criados precisamente pela moderna ciência e tecnologia que a nossa espécie desenvolveu nos últimos 300 anos. Não esqueçamos que as redes sociais, nas quais hoje podemos ser cancelados por dizer algo que não seja politicamente correcto, têm por base a ciência. Basta reparar que a World Wide Web foi criada há pouco mais de 30 anos no CERN, o laboratório europeu de Física de Partículas, porque os cientistas queriam partilhar os seus dados, para melhoria do conhecimento comum. No entanto, por essa rede global, passam hoje tanto a verdade como a mentira, sendo, nestes dias de explosão da inteligência artificial, difícil de distinguir entre as duas. Talvez passe mais mentira do que verdade.
Num acto de verdadeiro serviço público, David ajuda a distinguir quem tenha dúvidas. Assim, num certo sentido, este é um livro de autoajuda. Se alguém se sentir perdido na avalancha de palavras, sons e imagens que nos invadiu, o autor dá-lhe aqui um GPS para orientação. A ciência serve de modelo e é muito simples: observar a realidade (ou, quando é possível e conveniente, experimentar), apurar os factos e usar a lógica. E extrair as devidas conclusões. Se algumas das conclusões que o David fundamentadamente tira são polémicas, não há mal nenhum nisso. Pode haver uma discussão cordata, respeitando o outro, o que, infelizmente, nem sempre acontece. Espero que isso aconteça com este livro, até porque a discussão ajuda a desfazer eventuais erros. Claro que há assuntos que são mais de opinião do que de facto e, nesse caso, só há que respeitar, com tolerância, as opiniões de uns e de outros. Meus caros amigos, não se percam!
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