sábado, 1 de junho de 2024

LITERACIA FINANCEIRA: SOMOS BONS, MAUS OU NEM POR ISSO?

 
Tive há pouco tempo conhecimento de um relatório do Conselho Europeu no qual, com base nos resultados do Eurobarómetro - 2023, se afirma que os europeus têm, em geral, um baixo nível de literacia financeira. Declarando-se esta dado muitíssimo preocupante, solicita-se aos Estados que introduzam a educação financeira, como disciplina obrigatória, no currículo da escolaridade obrigatória em todos os anos, no nosso caso, desde o 1.º ao 12.º. O ensino superior não está excluído.
 
Reconhecendo esse Conselho, como não poderia deixar de ser, "disposições constitucionais e competências pelo conteúdo do ensino e pela organização dos seus sistemas educativos" não se coíbe, como é apanágio de entidades supranacionais congéneres, de "sugerir" que os sistemas educativos/ escolas:
1) colaborem com agentes, parceiros, stakehoders, partes interessadas... na matéria em causa como, claro está, as instituições financeiras;
2) usem determinados programas, materiais e metodologias.
Isto é:
“... desenvolvam ou facilitem o desenvolvimento pelas partes interessadas de programas de literacia financeira tradicionais e digitais e de materiais didáticos para atividades escolares e extra-escolares, incluindo jogos de educação financeira.” (ver aqui).
Os adultos também devem ser abrangidos. Não todos, apenas os "mais vulneráveis" à "exclusão financeira e fraudes": "pessoas de baixos rendimentos, migrantes, com deficiências e idosos". Estando fora da escola serão incluídos em seminários, workshops e campanhas de sensibilização". A abordagem é a mesma que acima reproduzi.

Portugal, acusa o dito barómetro, está numa péssima posição: a nossa literacia financeira é a segunda pior da União Europeia, só a mítica Roménia tem pior desempenho. E eu, que, por dever de ofício, estou por dentro do assunto, digo que há nesta avaliação vários equívocos. Eis três deles:
1.º A literacia financeira está integrada no currículo da escolaridade obrigatória e na educação de adultos – antes na Educação para a Cidadania, agora na Cidadania e Desenvolvimento – haverá duas décadas. O seu Referencial é de 2013, mas a área é anterior. No momento é obrigatória no ensino básico, podendo ser objecto de projectos, disciplinas e outras iniciativas eleitas pela escola em todos os anos. E também está no ensino superior, conforme mostra o exemplo, entre muitos que poderia ir buscar: Universitários, há um novo concurso de literacia financeira (para todos) (2024)

2.º Os nossos alunos têm andado num rodopio, de concurso em concurso de literacia financeira, que não faltam, e têm ficado muito bem classificados, nos europeus. A passada década foi gloriosa e esta não vai mal. Por exemplo, no passado 2023, que os dados do Eurobarómetro davam como negro, tivémos a seguinte notícia: "Portugal conquista o 3.º lugar no maior concurso europeu de literacia financeira.
 
3.º O último Inquérito à Literacia Financeira, da responsabilidade do Conselho Nacional de Supervisores Financeiros (parte interessada, e coautor do mencionado Referencial), publicado em 2023, mostra que o nosso índice de literacia financeira subiu em 2023, em virtude, por certo, da excelente aprendizagem que a escola tem proporcionado nesta matéria.
Nota: Escrevi este texto por vontade própria, mas preferia não o ter feito, sinal de que me passava despercebida a intromissão, na educação pública, de uma multiplicidade de "partes interessadas" e de entidades supranacionais com mandato político, financeiro ou outro. 
 
Custa-me pensar que enquanto a História de cá e de outras partes do mundo, a Literatura nacional e universal, todas as Artes, as Línguas e as Culturas Clássicas... desaparecem do currículo escolar, estas áreas ditas de Cidadania – que não o são – replicam-se e prosperam. É óbvia a pressão nesse sentido por parte de quem não tem, nem nunca deverá ter, legitimidade para se pronunciar sobre a educação escolar pública. Acontece que quem tem essa legitimidade vai deixando passar... muitas vezes alegremente.
 

2 comentários:

António Pires disse...

Professora Helena,

Infelizmente, também as ciências "clássicas" estão a desaparecer dos currículos. Uma disciplina básica, no sentido de fundamental, dos currículos "científicos" é a Física; ora, esta disciplina, mesmo depois de reduzida a quase nada pelas aprendizagens essenciais, donde foram expurgadas as mínimas referências à relatividade, ou ao movimento harmónico simples, porque consideradas matérias muito difíceis para quem vai seguir engenharias ou ciências, é uma disciplina OPCIONAL!
Ainda assim, reconheço que num país atrasado, de um modo geral, e praticamente sem indústria, de um modo particular, aprender ciência não será o caminho mais fácil para enriquecer.
O que nos faz falta, como de pão para a boca, é a Educação Financeira obrigatória desde o 1.º ao 12.º ano de escolaridade obrigatória. O regime do passa tudo, para que se não inventassem justificações para não ir à escola, permitiu, por obrigação, que todos os alunos aprendessem tudo. Agora, com a Educação Financeira, que será, certamente o alfobre de futuros ministros, lídimos herdeiros de uma das pastas do Doutor Salazar, o dinheiro encherá, obrigatoriamente, os bolsos de toda a gente escolarizada.
A educação financeira generalizada vai alavancar o empreendedorismo para todos. Virá o dia, mais cedo do que tarde, em que o perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória será a de um empreendedor-não haverá lugar para colaboradores!

Helena Damião disse...

Caro Professor
Tenho a mesma percepção acerca do progressivo aligeiramento e desaparecimento de conteúdos das disciplinas inscritas na matriz científica, mesmo daquelas que são objecto de avaliação internacional. Acontece que esse aligeiramento e desaparecimento é mais evidente nas disciplinas de matriz humanística e artística.
Saberá que no nosso sistema de ensino, neste momento, são 17 as áreas de Cidadania e Desenvolvimento, sendo que a educação financeira foi juntada à educação para o consumo, o que faz 18 áreas, todas obrigatórias no percurso escolar. E ainda pode cada escola escolher outras áreas, uma das últimas é a educação anti-corrupção.
Cordialmente,
MHDamião

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