sexta-feira, 31 de maio de 2024

CAMÕES NO «SÉCULO DOS PRODÍGIOS»



Meu artigo no último JL (número especial sobre Camões):

Foi Onésimo Teotónio Almeida quem, no seu livro «O Século dos Prodígios. A Ciência no Portugal da Expansão» (Quetzal, 2018), inspirando-se num título de Lídia Jorge, chamou ao período da expansão portuguesa entre meados do século XV e meados do século XVI o «século dos prodígios». Em 1419 os navegadores portugueses chegaram à Madeira. Em 1500 acharam o Brasil, na sequência da descoberta do caminho marítimo para a Índia dois anos antes. Haveriam de chegar à China em 1509 e ao Japão em 1543 (ou 1542, há disputa sobre a data). Na maior parte dos casos houve encontros com povos de culturas diferentes, por serem sítios habitados há muito. Nesse livro, Onésimo inclui um capítulo justamente intitulado «Camões e a sua notável modernidade». De facto, Luís de Camões (1524?-1580) foi um homem do seu tempo, um tempo de enormes transformações em Portugal e no mundo, quando fermentava a modernidade.

O poema épico Os Lusíadas, publicado em Lisboa na Oficina de António Gonçalves em 1572, relata, com laivos fantasistas pois intervêm um conjunto de deuses da mitologia greco-latina, a viagem de Vasco da Gama de Lisboa a Calecute, na Índia. Camões, que viajou para a Índia em 1553 onde passou longos anos, descreve não apenas a viagem, mas também a história de Portugal, que é contada por Gama ao rei de Melinde (cantos III a V). Por todo o poema é transmitida a visão ptolemaica da «esfera do mundo», isto é, o conjunto dos astros então conhecidos do sistema solar, com a Terra posicionada no centro. É essa «máquina do mundo» que a ninfa Tétis mostra a Gama na ilha dos Amores, como podemos ler no canto X. Para além da contemplação astronómica, os heróis são recompensados da árdua viagem com o convívio com as divindades. Ora, 1543, quando os portugueses chegaram ao Japão, foi o ano de publicação na cidade alemã de Nuremberga do famoso livro do astrónomo polaco Nicolau Copérnico Da Revolução dos Orbes Celestes, que reorganiza os dados astronómicas anteriores de uma forma mais simples e consistente ao colocar o Sol no centro do mundo em vez da Terra. Poder-se-á perguntar por que razão Camões, que estava muito bem informado (passou na sua juventude alguns anos na cidade de Coimbra, onde vivia um seu tio, prior no Mosteiro de Santa Cruz), ainda usava o sistema astronómico antigo quase três décadas volvidas após a obra revolucionária de Copérnico. Acontece que o sistema ptolemaico era o ensinado na época: o matemático Pedro Nunes (1502-1578) ensinava-o na Universidade de Coimbra, depois de o ter ensinado em Lisboa (a então única universidade nacional mudou-se em 1537 da capital para Coimbra por ordem do rei D. João III). Durou muitos anos até que o sistema copernicano passasse a ser oficialmente ensinado entre nós -– de facto. até ao século XVIII. O livro de Copérnico entrou no Índex de Livros Proibidos da Igreja Católica, criado após o Concílio de Trento, a reacção papal à reforma protestante de 1517 (os luteranos, entre os quais o próprio Martinho Lutero, não ficariam nada atrás dos católicos nas acusações a Copérnico, que morreu precisamente no ano da publicação da referida obra), por alegadamente contrariar as Sagradas Escrituras. Mesmo não adoptando a mais recente sistematização astronómica, Camões revela um conhecimento bastante pormenorizado dos céus, de acordo com os cânones então vigentes. Como fez notar no início do século XX o professor de Matemática da Universidade de Coimbra Luciano Pereira da Silva, no seu livro A Astronomia de “Os Lusíadas” (Imprensa da Universidade de Coimbra, 1915, e reeditado pela Junta de investigações do Ultramar em 1972, para assinalar os 400 anos de publicação de Os Lusíadas), o poema épico está repleto de informação astronómica fidedigna. Estando o texto de Os Lusíadas acessível na Internet é muito fácil hoje fazer contagens da frequência de termos conotados com a ciência: palavras como mundo, estrela, planeta, Terra, etc. aparecem amiúde.

Assumindo o ponto de vista da ciência, a principal marca de Os Lusíadas não é, porém, o conjunto de dados de cariz astronómico nem o conjunto de dados meteorológicos e botânicos, que mostram que a competência científica do poeta estava longe de se restringir à astronomia. É, como apontou Onésimo, a sua grande modernidade traduzida no facto de a atitude empírica – a observação atenta, a experiência cuidada e o raciocínio lógico – estarem valorizados n’Os Lusíadas. Essa atitude é a pedra angular do método científico, que haveria de ser apresentado, com convincentes exemplos, já no século XVI, entre outros, pelo astrónomo e físico italiano Galileu Galilei (1564-1642), autor de O Mensageiro das Estrelas, de 1610, que divulgou as primeiras observações realizadas com o telescópio) e pelo médico inglês William Harvey (1578-1657), autor de Estudo do Movimento do Coração e do Sangue nos Animais, de 1728, que sustentou que o coração é uma bomba de tipo hidráulico. Sendo convencional a data do início de ciência moderna, no período designado hoje por Revolução Científica, o historiador inglês David Wootton, autor do livro A Invenção da Ciência. Nova História da Revolução Científica (Temas e Debates, 2017), localiza-a em 1572, exactamente o ano dos Lusíadas, com a observação de uma supernova (uma grande estrela a morrer) pelo astrónomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), o último grande astrónomo antes da era dos telescópios inaugurada por Galileu. Embora tenha sido cultivador das letras e não das ciências, Camões foi um notável precursor do método científico. Foi ele que escreveu «vi claramente visto o lume vivo» a propósito do fogo de Santelmo e foi ele que elogiou a experiência dos «rudos marinheiros» que, nas suas viagens nos mares até então ignotos, «vêem do mundo os segredos escondidos» (canto V). O seu espírito está em consonância com o dos navegadores da expansão: foi no «século dos prodígios» que o navegador português Duarte Pacheco Pereira (1460-1533) escreveu o seu manuscrito Esmeraldo de Situ Orbis, apenas descoberto mais tarde, onde chama à experiência «a madre de todas as cousas», acrescentando que «por ela soubemos radicalmente a verdade».

O «século dos prodígios» é um período de luz da ciência portuguesa: foram contemporâneos de Camões, para além do matemático Pedro Nunes, o geógrafo e geofísico D. João de Castro (1500-1548) e os médicos (como aliás Pedro Nunes) Amato Lusitano (1511-1568) e Garcia da Orta (1501?-1568). D. João de Castro, mais conhecido por ter sido vice-rei da Índia, foi o autor de três Roteiros da Índia, eivados de espírito científico, Os dois médicos, ambos cristãos-novos, decidiram deixar o país em 1534, dois anos antes de ter sido aqui instituída a Inquisição, o primeiro para um exílio europeu que passou pelos Países Baixos, Itália, Croácia e Grécia (recorrendo aos nomes actuais) e o segundo para Goa, na Índia. Foi em Goa que Camões conheceu Orta. E, graças a esse feliz encontro, foi também nessa cidade que ele inaugurou a impressão da sua poesia com uma ode ao Conde de Redondo inserida no início do Colóquio dos Simples e Drogas e Coisas Medicinais da Índia, de Garcia de Orta, saído em 1563 do prelo de João de Endem. Trata-se de uma obra extraordinária pela sua modernidade, continuando a sair edições:  coordenei, com o botânico Jorge Paiva, uma edição incluída nas Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa (Temas e Debates, 2017), e foi publicada há pouco uma nova edição coordenada por Rui Loureiro e Teresa Nobre de Carvalho (Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, 2024). Nesse poema Camões elogia Orta, dizendo que ele está a realizar descobertas na área da botânica (a base da farmácia da época) que fariam as invejas das divindades antigas.

Camões viveu não só no Oriente como em África, ganhando uma mundividência que só o país mais ocidental da Europa não lhe podia dar. Como foi um dos protagonistas da chamada «primeira globalização», é inteiramente justo que o novo aeroporto de Lisboa tenha recebido o seu nome, neste ano de comemoração dos 500 anos do seu nascimento. Não será uma mera coincidência que o maior nome das letras portuguesas (Fernando Pessoa que me perdoe) tenha sido contemporâneo dos maiores nomes das ciências portuguesas (Egas Moniz, que este ano faz 150 anos de idade e 75 de prémio Nobel, que me perdoe). As letras e as ciências estão mais ligadas do que normalmente se julga.

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