Meu artigo no último JL (número especial sobre Camões):
Foi Onésimo
Teotónio Almeida quem, no seu livro «O Século dos Prodígios. A Ciência no
Portugal da Expansão» (Quetzal, 2018), inspirando-se num título de Lídia Jorge,
chamou ao período da expansão portuguesa entre meados do século XV e meados do
século XVI o «século dos prodígios». Em 1419 os navegadores portugueses
chegaram à Madeira. Em 1500 acharam o Brasil, na sequência da descoberta do
caminho marítimo para a Índia dois anos antes. Haveriam de chegar à China em
1509 e ao Japão em 1543 (ou 1542, há disputa sobre a data). Na maior parte dos
casos houve encontros com povos de culturas diferentes, por serem sítios habitados
há muito. Nesse livro, Onésimo inclui um capítulo justamente intitulado «Camões
e a sua notável modernidade». De facto, Luís de Camões (1524?-1580) foi um
homem do seu tempo, um tempo de enormes transformações em Portugal e no mundo, quando
fermentava a modernidade.
O poema épico Os Lusíadas, publicado em Lisboa na
Oficina de António Gonçalves em 1572, relata, com laivos fantasistas pois
intervêm um conjunto de deuses da mitologia greco-latina, a viagem de Vasco da
Gama de Lisboa a Calecute, na Índia. Camões, que viajou para a Índia em 1553
onde passou longos anos, descreve não apenas a viagem, mas também a história de
Portugal, que é contada por Gama ao rei de Melinde (cantos III a V). Por todo o
poema é transmitida a visão ptolemaica da «esfera do mundo», isto é, o conjunto
dos astros então conhecidos do sistema solar, com a Terra posicionada no centro.
É essa «máquina do mundo» que a ninfa Tétis mostra a Gama na ilha dos Amores,
como podemos ler no canto X. Para além da contemplação astronómica, os heróis são
recompensados da árdua viagem com o convívio com as divindades. Ora, 1543,
quando os portugueses chegaram ao Japão, foi o ano de publicação na cidade
alemã de Nuremberga do famoso livro do astrónomo polaco Nicolau Copérnico Da Revolução dos Orbes Celestes, que
reorganiza os dados astronómicas anteriores de uma forma mais simples e consistente
ao colocar o Sol no centro do mundo em vez da Terra. Poder-se-á perguntar por
que razão Camões, que estava muito bem informado (passou na sua juventude alguns
anos na cidade de Coimbra, onde vivia um seu tio, prior no Mosteiro de Santa
Cruz), ainda usava o sistema astronómico antigo quase três décadas volvidas
após a obra revolucionária de Copérnico. Acontece que o sistema ptolemaico era
o ensinado na época: o matemático Pedro Nunes (1502-1578) ensinava-o na
Universidade de Coimbra, depois de o ter ensinado em Lisboa (a então única universidade
nacional mudou-se em 1537 da capital para Coimbra por ordem do rei D. João
III). Durou muitos anos até que o sistema copernicano passasse a ser oficialmente
ensinado entre nós -– de facto. até ao século XVIII. O livro de Copérnico
entrou no Índex de Livros Proibidos da Igreja Católica, criado após o Concílio
de Trento, a reacção papal à reforma protestante de 1517 (os luteranos, entre os
quais o próprio Martinho Lutero, não ficariam nada atrás dos católicos nas
acusações a Copérnico, que morreu precisamente no ano da publicação da referida
obra), por alegadamente contrariar as Sagradas Escrituras. Mesmo não adoptando
a mais recente sistematização astronómica, Camões revela um conhecimento bastante
pormenorizado dos céus, de acordo com os cânones então vigentes. Como fez notar
no início do século XX o professor de Matemática da Universidade de Coimbra
Luciano Pereira da Silva, no seu livro A
Astronomia de “Os Lusíadas” (Imprensa da Universidade de Coimbra, 1915, e
reeditado pela Junta de investigações do Ultramar em 1972, para assinalar os
400 anos de publicação de Os Lusíadas),
o poema épico está repleto de informação astronómica fidedigna. Estando o texto
de Os Lusíadas acessível na Internet
é muito fácil hoje fazer contagens da frequência de termos conotados com a
ciência: palavras como mundo, estrela, planeta, Terra, etc. aparecem amiúde.
Assumindo o ponto
de vista da ciência, a principal marca de Os
Lusíadas não é, porém, o conjunto de dados de cariz astronómico nem o conjunto
de dados meteorológicos e botânicos, que mostram que a competência científica
do poeta estava longe de se restringir à astronomia. É, como apontou Onésimo, a
sua grande modernidade traduzida no facto de a atitude empírica – a observação
atenta, a experiência cuidada e o raciocínio lógico – estarem valorizados n’Os
Lusíadas. Essa atitude é a pedra angular do método científico, que haveria
de ser apresentado, com convincentes exemplos, já no século XVI, entre outros, pelo
astrónomo e físico italiano Galileu Galilei (1564-1642), autor de O Mensageiro das Estrelas, de 1610, que divulgou
as primeiras observações realizadas com o telescópio) e pelo médico inglês
William Harvey (1578-1657), autor de Estudo
do Movimento do Coração e do Sangue nos Animais, de 1728, que sustentou que
o coração é uma bomba de tipo hidráulico. Sendo convencional a data do início de
ciência moderna, no período designado hoje por Revolução Científica, o historiador
inglês David Wootton, autor do livro A
Invenção da Ciência. Nova História da Revolução Científica (Temas e Debates, 2017), localiza-a em
1572, exactamente o ano dos Lusíadas, com a observação de uma supernova (uma
grande estrela a morrer) pelo astrónomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), o
último grande astrónomo antes da era dos telescópios inaugurada por Galileu. Embora
tenha sido cultivador das letras e não das ciências, Camões foi um notável precursor
do método científico. Foi ele que escreveu «vi claramente visto o lume vivo» a propósito
do fogo de Santelmo e foi ele que elogiou a experiência dos «rudos marinheiros»
que, nas suas viagens nos mares até então ignotos, «vêem do mundo os segredos
escondidos» (canto V). O seu espírito está em consonância com o dos navegadores
da expansão: foi no «século dos prodígios» que o navegador português Duarte
Pacheco Pereira (1460-1533) escreveu o seu manuscrito Esmeraldo de Situ Orbis, apenas descoberto mais tarde, onde chama à
experiência «a madre de todas as cousas», acrescentando que «por ela soubemos
radicalmente a verdade».
O «século dos
prodígios» é um período de luz da ciência portuguesa: foram contemporâneos de Camões,
para além do matemático Pedro Nunes, o geógrafo e geofísico D. João de Castro (1500-1548)
e os médicos (como aliás Pedro Nunes) Amato Lusitano (1511-1568) e Garcia da
Orta (1501?-1568). D. João de Castro, mais conhecido por ter sido vice-rei da
Índia, foi o autor de três Roteiros da
Índia, eivados de espírito
científico, Os dois médicos, ambos cristãos-novos, decidiram deixar o país em
1534, dois anos antes de ter sido aqui instituída a Inquisição, o primeiro para
um exílio europeu que passou pelos Países Baixos, Itália, Croácia e Grécia (recorrendo
aos nomes actuais) e o segundo para Goa, na Índia. Foi em Goa que Camões
conheceu Orta. E, graças a esse feliz encontro, foi também nessa cidade que ele
inaugurou a impressão da sua poesia com uma ode ao Conde de Redondo inserida no
início do Colóquio dos Simples e Drogas e
Coisas Medicinais da Índia, de Garcia de Orta, saído em 1563 do prelo de
João de Endem. Trata-se de uma obra extraordinária pela sua modernidade,
continuando a sair edições: coordenei,
com o botânico Jorge Paiva, uma edição incluída nas Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa (Temas e
Debates, 2017), e foi publicada há pouco uma nova edição coordenada por Rui
Loureiro e Teresa Nobre de Carvalho (Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto
Benveniste, 2024). Nesse poema Camões elogia Orta, dizendo que ele está a realizar
descobertas na área da botânica (a base da farmácia da época) que fariam as
invejas das divindades antigas.
Camões viveu não só
no Oriente como em África, ganhando uma mundividência que só o país mais ocidental
da Europa não lhe podia dar. Como foi um dos protagonistas da chamada «primeira
globalização», é inteiramente justo que o novo aeroporto de Lisboa tenha
recebido o seu nome, neste ano de comemoração dos 500 anos do seu nascimento. Não
será uma mera coincidência que o maior nome das letras portuguesas (Fernando Pessoa
que me perdoe) tenha sido contemporâneo dos maiores nomes das ciências
portuguesas (Egas Moniz, que este ano faz 150 anos de idade e 75 de prémio
Nobel, que me perdoe). As letras e as ciências estão mais ligadas do que
normalmente se julga.
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