Meu artigo no último JL:
O título acima é o subtítulo do
belo livro Bibliotecas, que acaba de sair com a chancela da EntrefOlhOs
(uma edição de autor, de apenas 150 exemplares), da autoria do médico pediatra
Abílio Guimarães, residente em Cesar, Oliveira de Azeméis. Para além de uma obra
de genealogia, de circulação restrita à família e amigos, é também autor de poesia,
que reuniu no livro Trinta por uma linha. Trinta anos de poesia (ainda da
EntrefOlhOs, 2023). E é montanhista, tendo já subido aos 6961 metros do
Aconcágua, nos Andes, a mais alta montanha fora da Ásia.
A ideia de Bibliotecas é –
há que reconhecê-lo – muito original: o autor visitou 50 bibliotecas privadas,
espalhadas pelo Norte e Centro do país, com uma única excepção: a do poeta
Tiago Alves da Costa, em Barcelona. A obra abre com um texto de sentido elogio aos
livros e às bibliotecas, da autoria de um conhecido médico-poeta: Jorge de
Sousa Braga (o autor de A matéria escura e outros poemas, Assírio &
Alvim, 2021). E continua, nas suas 240 páginas de papel-couché, repletas de
fotografias a cores, com a apresentação, numa prosa de tons poéticos escrita
num português de lei, das bibliotecas pessoais, escolhidas por conveniência. Só
duas dessas bibliotecas são de acesso e interesse públicos: a do Nobel da
Medicina António Egas Moniz, na sua casa em Avanca; Estarreja, e a do poeta da
saudade Teixeira de Pascoaes (o pseudónimo de Joaquim Teixeira de Vasconcelos),
na sua casa de Gatão, Amarante (curiosamente os dois foram não só
contemporâneos como também amigos). Todas as outras são de pessoas anónimas ou
quase (o autor destas linhas é parte do «quase»: franqueei-lhe as portas da
minha casa, por sugestão de um amigo comum, o pediatra e escritor Luís Carlos Januário).
Cada descrição resumida e necessariamente subjectiva (portanto, afectiva) de
uma biblioteca pessoal é encimada por um título inspirado numa obra literária
(a mim calhou-me, não sem exagero, O Físico Prodigioso, de Jorge de
Sena) e de uma epígrafe (a mim calhou-me Rui Knopfli: «Até que no tempo cesse
anónimo o ténue sopro que ao tempo dou»). Trata-se de um meio único de conhecer
50 casas de pessoas, que se mostram através dos seus livros: «diz-me que livros
tens, dir-te-ei quem és.» Couberam, em média, quatro páginas a cada
proprietário. Como recompensa para quem conseguir chegar ao fim da «maratona»
bibliotecária, o autor presenteia-nos com a descrição das suas visitas à
Biblioteca Joanina, em Coimbra, uma das
mais belas do mundo, à Biblioteca Gabriel García Márquez, em Barcelona,
considerada a melhor biblioteca pública em 2023 pela Federação Internacional de
Associações e Instituições Bibliotecárias, e à Livrearia, em Ponte de Lima, uma
livraria inovadora pois não tem funcionários, pelo que os compradores vão
livremente pagar numa das lojas próximas. E encerra com um depoimento sobre a
sua própria biblioteca, onde a poesia impera, embora também haja romance,
medicina e montanhismo.
Penitenciando-me de não ter
providenciado amesendação ao visitante da minha biblioteca tal como fizeram
outros visitados (soube ao lê-lo…), foi este livro que há dias apresentei na
terra do autor, na antiga escola, mesmo ao lado da igreja. O nome de Cesar vem
de «Villa Cesari», o que remete para os antigos romanos. Com tradição na
latoaria, hoje é um centro industrial, sendo a fábrica mais famosa a da
Silampos. Entre os ilustres da terra estão, para além de Abílio Guimarães,
Carlos Costa, o economista que presidiu ao Banco de Portugal, Lindolfo Ribeiro,
um chef de cozinha que já fez programas na TV, e Marlene de Sousa,
hoquista do Benfica que já foi campeã europeia. A apresentação foi numa aldeia,
mas a casa estava a transbordar.
Escreve Jorge de Sousa Braga a rematar
a sua nota de abertura: «Gosto de pensar numa biblioteca como um jardim. Com as
suas árvores centenárias, as suas alamedas, os seus canteiros e as suas
estufas. E também com as suas zonas escuras, onde é muito difícil penetrar». E
escreve Abílio Guimarães, no fim do seu texto derradeiro: «Sobra-me o desejo de
crer que estas curtas narrativas possam interessar a outros, que não só aos
aqui descritos ou aos seus mais próximos, conquistando a curiosidade do leitor
mais anónimo [para obter o livro, o leitor terá de o encomendar a abilioguim@gmail.com]
(…) Em cada biblioteca e em cada leitor vive o grato prazer e a ágil surpresa.
Nada disso pode ou deve sequer ser medido. Da biblioteca que a minha mãe me lia
antes de adormecer, até estas que agora aqui vos deixo: Que sorte, que eu
tive!»
Seria injusto destacar um dos 50
capítulos, de pessoas com as mais diversas idades (desde uma menina de oito
anos a um ancião de 97 em excelente forma física e mental) e as mais variadas
ocupações. Mas, por ser o «decano» destes «bibliotecários», seja-me permitido
destacar o mais velho, Dr. Flores dos Santos Leite, médico residente em São
João da Madeira. O título, retirado a Cesare Pavese, é Ofício de Viver e
a epígrafe é de Carlos Drummond de Andrade: «(…) o mundo não pesa mais que a
mão de uma criança». Vejamos um excerto da prosa de Abílio Guimarães que
descreve a fabulosa biblioteca do Dr. Flores, que um dia passará para a
bisneta: «É linda, a biblioteca! O paraíso não deve andar longe disto. Um sítio
de prazer, satisfeito de relíquias: Arte de Furtar, que, a despeito de
se apregoar do P.e António Vieira, ainda hoje abriga a dúvida da sua autoria: Os
Lusíadas, edição do Morgado de Mateus – nem a Biblioteca Nacional o tem;
e até um livro de aforismos de 1630. Ia aos alfarrabistas (o Fumaça na capital
era o seu preferido) fisgado no gozo das primeiras edições: Florbela Espanca,
Sá Carneiro, Garrett, Torga, Almada, Eça e do génio Pessoa, uma de Mensagem.
Perdia a cabeça e tudo o que ganhava era para livros. Hoje ainda compra,
mas menos. Sobre a biblioteca, alguém nos garante que estar lá metido é a sua
maior e grata alegria.»
Alegria é mesmo a palavra certa para
o convívio com os livros escolhidos a dedo. As bibliotecas não são uma Alegria
breve, um título de Virgílio Ferreira, mas antes uma alegria duradoura, uma
Alegria para o fim do mundo, um título de Andreia C. Faria.
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