sábado, 18 de maio de 2024

UMA MARATONA DE PESSOAS E LIVROS


 Meu artigo no último JL:

O título acima é o subtítulo do belo livro Bibliotecas, que acaba de sair com a chancela da EntrefOlhOs (uma edição de autor, de apenas 150 exemplares), da autoria do médico pediatra Abílio Guimarães, residente em Cesar, Oliveira de Azeméis. Para além de uma obra de genealogia, de circulação restrita à família e amigos, é também autor de poesia, que reuniu no livro Trinta por uma linha. Trinta anos de poesia (ainda da EntrefOlhOs, 2023). E é montanhista, tendo já subido aos 6961 metros do Aconcágua, nos Andes, a mais alta montanha fora da Ásia.

A ideia de Bibliotecas é – há que reconhecê-lo – muito original: o autor visitou 50 bibliotecas privadas, espalhadas pelo Norte e Centro do país, com uma única excepção: a do poeta Tiago Alves da Costa, em Barcelona. A obra abre com um texto de sentido elogio aos livros e às bibliotecas, da autoria de um conhecido médico-poeta: Jorge de Sousa Braga (o autor de A matéria escura e outros poemas, Assírio & Alvim, 2021). E continua, nas suas 240 páginas de papel-couché, repletas de fotografias a cores, com a apresentação, numa prosa de tons poéticos escrita num português de lei, das bibliotecas pessoais, escolhidas por conveniência. Só duas dessas bibliotecas são de acesso e interesse públicos: a do Nobel da Medicina António Egas Moniz, na sua casa em Avanca; Estarreja, e a do poeta da saudade Teixeira de Pascoaes (o pseudónimo de Joaquim Teixeira de Vasconcelos), na sua casa de Gatão, Amarante (curiosamente os dois foram não só contemporâneos como também amigos). Todas as outras são de pessoas anónimas ou quase (o autor destas linhas é parte do «quase»: franqueei-lhe as portas da minha casa, por sugestão de um amigo comum, o pediatra e escritor Luís Carlos Januário). Cada descrição resumida e necessariamente subjectiva (portanto, afectiva) de uma biblioteca pessoal é encimada por um título inspirado numa obra literária (a mim calhou-me, não sem exagero, O Físico Prodigioso, de Jorge de Sena) e de uma epígrafe (a mim calhou-me Rui Knopfli: «Até que no tempo cesse anónimo o ténue sopro que ao tempo dou»). Trata-se de um meio único de conhecer 50 casas de pessoas, que se mostram através dos seus livros: «diz-me que livros tens, dir-te-ei quem és.» Couberam, em média, quatro páginas a cada proprietário. Como recompensa para quem conseguir chegar ao fim da «maratona» bibliotecária, o autor presenteia-nos com a descrição das suas visitas à Biblioteca Joanina, em  Coimbra, uma das mais belas do mundo, à Biblioteca Gabriel García Márquez, em Barcelona, considerada a melhor biblioteca pública em 2023 pela Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias, e à Livrearia, em Ponte de Lima, uma livraria inovadora pois não tem funcionários, pelo que os compradores vão livremente pagar numa das lojas próximas. E encerra com um depoimento sobre a sua própria biblioteca, onde a poesia impera, embora também haja romance, medicina e montanhismo.

Penitenciando-me de não ter providenciado amesendação ao visitante da minha biblioteca tal como fizeram outros visitados (soube ao lê-lo…), foi este livro que há dias apresentei na terra do autor, na antiga escola, mesmo ao lado da igreja. O nome de Cesar vem de «Villa Cesari», o que remete para os antigos romanos. Com tradição na latoaria, hoje é um centro industrial, sendo a fábrica mais famosa a da Silampos. Entre os ilustres da terra estão, para além de Abílio Guimarães, Carlos Costa, o economista que presidiu ao Banco de Portugal, Lindolfo Ribeiro, um chef de cozinha que já fez programas na TV, e Marlene de Sousa, hoquista do Benfica que já foi campeã europeia. A apresentação foi numa aldeia, mas a casa estava a transbordar.

Escreve Jorge de Sousa Braga a rematar a sua nota de abertura: «Gosto de pensar numa biblioteca como um jardim. Com as suas árvores centenárias, as suas alamedas, os seus canteiros e as suas estufas. E também com as suas zonas escuras, onde é muito difícil penetrar». E escreve Abílio Guimarães, no fim do seu texto derradeiro: «Sobra-me o desejo de crer que estas curtas narrativas possam interessar a outros, que não só aos aqui descritos ou aos seus mais próximos, conquistando a curiosidade do leitor mais anónimo [para obter o livro, o leitor terá de o encomendar a abilioguim@gmail.com] (…) Em cada biblioteca e em cada leitor vive o grato prazer e a ágil surpresa. Nada disso pode ou deve sequer ser medido. Da biblioteca que a minha mãe me lia antes de adormecer, até estas que agora aqui vos deixo: Que sorte, que eu tive!»

Seria injusto destacar um dos 50 capítulos, de pessoas com as mais diversas idades (desde uma menina de oito anos a um ancião de 97 em excelente forma física e mental) e as mais variadas ocupações. Mas, por ser o «decano» destes «bibliotecários», seja-me permitido destacar o mais velho, Dr. Flores dos Santos Leite, médico residente em São João da Madeira. O título, retirado a Cesare Pavese, é Ofício de Viver e a epígrafe é de Carlos Drummond de Andrade: «(…) o mundo não pesa mais que a mão de uma criança». Vejamos um excerto da prosa de Abílio Guimarães que descreve a fabulosa biblioteca do Dr. Flores, que um dia passará para a bisneta: «É linda, a biblioteca! O paraíso não deve andar longe disto. Um sítio de prazer, satisfeito de relíquias: Arte de Furtar, que, a despeito de se apregoar do P.e António Vieira, ainda hoje abriga a dúvida da sua autoria: Os Lusíadas, edição do Morgado de Mateus – nem a Biblioteca Nacional o tem; e até um livro de aforismos de 1630. Ia aos alfarrabistas (o Fumaça na capital era o seu preferido) fisgado no gozo das primeiras edições: Florbela Espanca, Sá Carneiro, Garrett, Torga, Almada, Eça e do génio Pessoa, uma de Mensagem. Perdia a cabeça e tudo o que ganhava era para livros. Hoje ainda compra, mas menos. Sobre a biblioteca, alguém nos garante que estar lá metido é a sua maior e grata alegria.»

Alegria é mesmo a palavra certa para o convívio com os livros escolhidos a dedo. As bibliotecas não são uma Alegria breve, um título de Virgílio Ferreira, mas antes uma alegria duradoura, uma Alegria para o fim do mundo, um título de Andreia C. Faria.

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