sexta-feira, 11 de agosto de 2023

DIZ-ME O QUE LÊS, DIR-TE-EI QUEM ÉS

Por Eugénio Lisboa
Na literatura, como no amor,
ficamos admirados com 
as escolhas que os outros fazem. 
André Maurois

Temos sempre curiosidade de saber o que os outros, em especial, os nossos amigos ou simples conhecidos, andam a ler. Como se, a partir de aí, pudéssemos ficar a conhecê-los melhor. Ou por simples curiosidade, sem segundo sentido. Seja como for, temos frequentemente grandes surpresas. De algumas dessas escolhas, partilhamos, outras deixam-nos simplesmente perplexos. 

Vejo constantemente, nos jornais, questionários dos mais variados formatos, nos quais acaba por aparecer a inevitável pergunta “quais os seis ou os dez livros que o marcaram” ou “quais os personagens de ficção que mais o impressionaram”. As respostas, na maioria dos casos, são, no mínimo, inquietantes, não pelo que indicam de leituras feitas, antes pelo que indiciam de leituras, mais do que provavelmente, não feitas. Outras vezes, as respostas – as menos interessantes – revelam apenas um exibicionismo provinciano, como o caso do entrevistado que dá, como personagem de ficção que mais o marcou, o Bloom, do ULISSES, de James Joyce! Como se alguém pudesse acreditar em tal tolice! Como se Joyce tivesse jamais pretendido ou conseguido criar qualquer verdadeiro personagem de ficção! Muito menos, um personagem minimamente atraente! Como se, de uma tão rica panóplia de gente ficcional propiciada pelas grandes literaturas de todos os tempos, alguém se pudesse lembrar de Bloom, como seu personagem preferido!

Mas o que verdadeiramente me surpreende e não pouco me inquieta são certas escolhas, não só por se referirem a obras mais do que insignificantes, como, sobretudo, por dizerem respeito apenas a obras publicadas nos nossos dias: como se o riquíssimo passado não existisse. Como se a literatura tivesse começado ontem ou anteontem. Quando se interroga toda uma coorte de notáveis da nossa praça, acerca de poetas preferidos, fica-se com a ideia perturbante de que a poesia portuguesa começou com a Sophia: antes dela, nada houve a assinalar. 

Eu tive e tenho ainda hoje um grande problema: tento acompanhar, o melhor que sei e posso, a literatura do meu tempo, mas sempre com a angústia de estar a ignorar uma obra-prima do passado, que ainda não tenha visitado. É talvez isto mesmo que se reflecte no atrevido aforismo do conhecido ensaísta e moralista francês, Joseph Joubert (Século XVIII/XIX), quando diz: “O pior que há nos livros novos é impedirem-nos de ler os velhos.” 

Não se diga que é reacionarismo, porque não é. Quantos nunca tiveram, por exemplo, o prazer de ler essa extraordinária obra-prima do romance psicológico e autobiográfico, que é o ADOLPHE, de Benjamin Constant, ou essa perturbante descida aos abismos da condição humana, que é A CONFISSÃO DE STAVROGUINE, de Dostoiewsky, por não quererem perder a última novidade, de que "se“fala”. 

Quantos nunca leram o sábio, cândido e eternamente saboroso Montaigne, por causa da premência que faz um best-seller aparecido na semana passada. Eu sei que a tentação é grande, porque eu próprio a sinto. Mas há que encontrar um “equilíbrio delicado” entre as riquezas do passado e as do presente. A pólvora foi inventada pelos chineses, há muitos séculos, e não por qualquer moderno aprendiz de feiticeiro.

Eugénio Lisboa

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