Por Eugénio Lisboa
Os clássicos mudam muito
de opinião para agradar
os que os interpretam.
Millôr Fernandes
Publiquei aqui, há dias, um texto sobre interpretações assanhadamente ideológicas de obras literárias, praticando verdadeiros estupros interpretativos de grandes obras clássicas.
Não é, diga-se de passagem, um mal nacional: grassa por todo esse mundo literário e universitário, com particular incidência no Brasil, onde todas as tontices importadas do estrangeiro assumem variantes de infecção aguda. Mas não só a ideologia leva ao crime.
Outras modas em vigor inflectem de modo abusivo e desastrado a integridade dos textos. As redes sociais deram a esta incipiente epidemia dimensões assustadoras de pandemia. A ponto de o egrégio Umberto Eco ter declarado que “o drama da internet foi ter promovido o idiota da aldeia a portador da verdade.” Ou, noutra passagem igualmente contundente, que “as redes sociais deram voz aos imbecis”.
E deram: vê-se isso todos os dias e nem os lugares mais privilegiados ficam isentos de serem visitados por estes parasitas, ignorantes mas atrevidos. As mais delirantes interpretações de textos são promovidas, numa orgia hermenêutica deveras assustadora.
Seja dito que, na origem deste despautério, vai muita culpa para o próprio Umberto Eco, que, na sua celebrada OBRA ABERTA, abriu imprudentemente as portas às inúmeras interpretações possíveis de um mesmo texto. Se houvesse assim tantas, o texto tornar-se-ia irrelevante ou mesmo não existente. Se o que um autor quis dizer pode não ser fácil de descodificar, por outro lado, o que o texto parece dizer já pode ser um pouco menos problemático. O próprio Eco veio a arrepender-se de ter escancarado demasiado as portas à incontinência hermenêutica e pôs a ela travões, em Os LIMITES DA INTERPRETAÇÃO.
Mas o mal estava feito e a diarreia interpretativa era demasiado convidativa, para poder ser universalmente abandonada. Os leitores passam a ser os verdadeiros “donos” do texto e o texto degrada-se até se tornar pretexto.
O eminente Tzevetan Todorov troçou de tudo isto, nestes termos: “Um texto não passa de um piquenique, em que o autor traz as palavras e os leitores o sentido.” Num vigoroso ensaio – AGAINST INTERPRETATION – a temível Susan Sontag fulminou esta tara interpretativa, afirmando: “A interpretação é a vingança dos intelectuais contra a arte.” E ainda: “Em vez de uma hermenêutica, do que precisamos é de uma erótica da arte.”
O curioso é que muitos grandes e acutilantes leitores, como Nietzsche, fulminaram há muito este abuso interpretativo: “O texto desapareceu debaixo da interpretação”, disse o filósofo alemão, no seu PARA ALÉM DO BEM E DO MAL. E o eclético e celebrado Harold Bloom, tentou mostrar que esta prática era milenar, ao dizer isto: “Penso que o Novo Testamento grego é a mais forte e mais bem sucedida desleitura de um grande texto anterior, em toda a história da influência.”
Nestes despautérios de interpretação, teve grande visibilidade a sexualidade pós-freudiana. Aí, valeu tudo. Numa ida ao Rio de Janeiro, a propósito de um congresso dedicado a José Régio, apareceu-me uma deslumbrada, com a descoberta de que o admirável romance O PRÍNCIPE COM ORELHAS DE BURRO, de José Régio, mostrava que o escritor era homossexual. Estava então muito na moda, descodificar homossexualidade escondida por todo o lado. Ora nem Régio era homossexual, nem aquele romance tinha nada a ver com sexo ou seus arredores. Mas a tese deve ter tido filhos, porque estas descobertas costumam ser muito fecundas.
Outro exemplo extraordinário foi este, acontecido com a encenação da peça de Montherlant, LE MAÎTRE DE SANTIAGO. A obra é limpamente clássica e tem como protagonista Don Alvaro, Mestre daquela Ordem, cristão sem mácula, totalmente incorruptível. Alguns nobres espanhóis querem usar o seu bom nome, para cobrir negócios sujos, na América recém descoberta. Para aliciá-lo, prometem-lhe arranjar um “bom casamento” para a filha Mariana. Mas esta é exactamente como o Pai. Num diálogo, de um sublime austero, Don Alvaro sonda a filha. Neste momento, Montherlant dá uma pequeníssima indicação de cena: a meio do diálogo, o velho Mestre, apercebe-se de um cabelo no vestido da filha e sacode-o. O autor da peça terá querido significar que a mais austera figura, e mesmo num momento de grande tensão, pode afligir-se com uma pequeníssima coisa que desfigura o vestuário da filha.
Esta ínfima indicação de cena desencadeou na crítica teatral de Paris as mais estapafúrdias “interpretações”: uma delas ia no sentido de dizer que aquele gesto significava que Montherlant tinha querido ter relações sexuais com a mãe, outro, ainda mais ousado, afirmava estar ali a prova de que o dramaturgo sofria de um complexo de castração! Eis a interpretação no seu deslumbrante pior.
No teatro, onde os encenadores “sabem mais” do que os dramaturgos, já vi desastres semelhantes com grandes encenadores. Cito um caso. Quando vivia em Londres, o grande encenador Peter Hall, resolveu encenar a grande tragédia de Ibsen, O PATO SELVAGEM. Peter Hall acabara de “descobrir” haver na peça um subtexto cómico e resolveu transformar aquela pungente tragédia numa quase comédia. Acontece que o tal subtexto não era nada cómico, mas, sim, dilacerantemente patético. Por outro lado, Peter Hall, embarcado na sua desleitura, esqueceu-se de que na peça de Ibsen uma criancinha se suicida, no final, o que não costuma acontecer nas comédias.
Dislates destes são frequentes, com as peças de Shakespeare, o que levou o impagável e genial Mel Brooks a parodiar, num seu filme, estes atrevimentos de encenadores, fazendo do sinistro Ricardo III, um invertido efeminado, grotescamente amaneirado. Haverá quem descubra na peça de Shakespeare um subtexto qualquer, que justifique a metamorfose.
Foram estas e outras que levaram Orwell a afirmar: “Se realmente existe essa coisa de se dar uma volta no túmulo, Shakespeare deve fazer uma data de exercício.”
Eugénio Lisboa
4 comentários:
Caro Eugénio Lisboa, é de louvar a disponibilização de informações relevantes como esta e que são pertinentes para uma compreensão da função e da importância do leitor, matéria, sem dúvida, facilmente descartada por quem não lhe der a atenção que requer.
Existem situações em que a interpretação de um texto adquire especial acuidade e responsabilidade, como é o caso dos textos normativos, cuja interpretação, ela própria, está subordinada a normas, tudo com o objectivo de minimizar ao máximo o subjectivo, passem os trocadilhos.
No caso dos textos, mais propriamente literários, o caso muda de figura, porque a maior parte das vezes, penso eu, é a liberdade do leitor que confere valor e significados ao texto, ainda que, literalmente, os não possuam.
Por outro lado, enquanto leitor, não há mecanismo de heterotutela interpretativa que me seja imposto, justamente porque um dos maiores gozos que me dá ler não é interpretar aquilo que o autor quis dizer, mas aquilo que está escrito, não apenas literalmente, mas aquilo que o texto me sugere, independentemente de o autor o ter pensado, ou até de ter pensado o contrário. A partir do momento em que alguém escreveu, ou disse algo, a interpretação que se possa fazer disso não é arbitrária, no sentido de atribuir significados ou sentidos que a letra não comporta, mas não deixa de ser livre, no sentido de que o leitor não está coercivamente condicionado a pensar e a imaginar o que quer que seja. Se me obrigassem a ler uma obra de Camões como quem lê um decreto-lei, eu continuaria a ler Camões e a não ler o decreto-lei. Pode haver muitas formas de matar decretos, mas não me parece que, por mais que se tente, haja forma de matar um poema. E se for um poema sobre matar decretos, a probabilidade de isso não acontecer dispara.
Caro Amigo, terá, claro, compreendido que não sou um radical contra a interpretação de textos, sou apenas contra os desmandos que transformam um texto num pretexto e o leitor mais dono do texto do que o próprio autor. Vou-lhe dar mais um exemplo (autêntico) além dos que já dei no texto que mereceu o seu civilizado comentário. Em certa altura, organizou-se um repasto internacional, de homenagem ao filósofo francês, Henri Bergson. O orador convidado foi o grande dramaturgo irlandês, George Bernard Shaw, autor de vários livros sobre bergsonismo e bergsonista convicto. À hora de falar, Shaw, sempre cheio de facúndia, começou a falar da obra do filósofo, com a enorme assertividade que o caracterizava. Por várias vezes, Bergson fez discreta menção de discordar, mas Shaw empurrou-o, suavemente, com a mão, silenciando-o. Até que, por fim, o filósofo, não se contendo mais, fez clara menção de interromper o orador. Shaw, voltou-se, furioso, para ele e repontou: "O Senhor cale-se! Quem sabe de bergsonismo sou eu e não o Senhor!"
Já vê como certos comentadores de texto se tornam mais proprietários do texto do que os autores dele.
Compreendo o problema que levanta, mas não vejo como ultrapassar o facto de um texto significar por si próprio e apenas por si próprio. Se o autor vier a terreiro, por exemplo, para explicar o que escreveu, isto já é outro texto. Se o autor vier à praça para discordar da interpretação que alguém faz do que escreveu, está no seu direito, mas não lhe assiste nenhum privilégio interpretativo daquilo que está escrito. Por exemplo, o legislador faz textos, sob a forma de normas, mas não tem competência para os interpretar vinculativamente. Isto para mim é muito claro. Se, por exemplo, alguém interpreta o que escrevo de um modo que me aparece inepto e sem apoio na letra, na lógica, no contexto e no sentido que é possível e legítimo esperar e exigir que um leitor normalmente competente reconheça, só me resta discutir isso e, embora seja eu o autor, não estou garantido só por isso de que o meu intérprete não tenha mais razão. Há inúmeros casos, alguns que ficaram célebres, de autores que acabaram interpretados de vários modos sem que, ao menos, um deles correspondesse àquilo que eles diziam pensar e defender. E pouco, ou nada puderam fazer contra isso. Estou a pensar em Karl Marx, que não se revia no marxismo, mas podia referir outros casos emblemáticos.
Agora, não deixa de ser aliciante e desafiante pensar o problema em termos de, por exemplo, alguém querer dizer, e menos ensinar, marxismo a Marx, ou cristianismo a Cristo, ou o padre-nosso ao vigário.
Nestes casos, porém, já não estamos apenas a interpretar textos, que valem o que valem e não aquilo que os seus autores queriam ou querem, mas a configurar situações em que um movimento, uma corrente de pensamento, a doutrina, enfim, já está distanciada das fontes, ao ponto de não se poder confundir o rio com a nascente.
A situação, que o E. Lisboa descreve, deve ter sido muito embaraçosa, tanto para Henri Bergson como para G. Bernard Shaw, mas mostra bem o que pode acontecer quando se defrontam autor de textos e intérprete dos mesmos. O autor dos textos não tem como impor ao intérprete a sua própria interpretação. O intérprete pode, inclusivamente, ser mais arguto, competente, culto, ter mais repertório e talento do que o autor. Normalmente, o autor ganha muito com intérpretes deste jaez e perde muito com intérpretes mais limitados.
“Eternos lacaios da Europa,
Seus escravos espirituais,
Vocês perverteram a experiência paterna
E traíram os caixões dos ancestrais.
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Você traiu a Rússia cem vezes,
confiando na mente de outra pessoa.
A Rússia te perdoou, mas
você esticou o pescoço de volta ao jugo ... "
EL
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