segunda-feira, 14 de agosto de 2023

UMA INTERPRETAÇÃO IDEOLÓGICA DE UM SONETO DE CAMÕES

Por Eugénio Lisboa

Todos conhecem aquele belíssimo soneto de Camões, que começa assim: “Alma minha gentil que te partiste”, seguindo-se-lhe treze versos, cada um mais belo do que o anterior. 

Imagem recolhida aqui.
Tem havido o mais variado leque de interpretações deste poema, que vale uma literatura, incluindo a inevitável “interpretação” biografista, que vê, na “alma minha” uma alusão à amante chinesa, morta afogada, no célebre naufrágio na foz do rio Mekong. Nesse naufrágio, cujas circunstâncias, em pormenor, se desconhecem, Camões teria salvo, a nado, OS LUSÍADAS, mas não conseguiu salvar da morte a sua Dinamene. Até aqui, tudo bem. 

As teses biografistas têm o interesse que têm, embora não sejam exactamente interpretações de um texto. Dizer que, sem o conhecimento biográfico deste episódio, o soneto ficaria incompreensível, é um rotundo disparate. O poema deve ser interpretado pelo que o poeta lá pôs e não pelas circunstâncias que estiveram na origem da sua escrita. 

Mas, à luz de uma minha experiência recente, relacionada com o modo como alguns poemas meus têm sido “interpretados” por ideólogos superaquecidos, estranho que a mesma receita ideológica ainda não tenha sido aplicada ao imortal soneto de Camões. Uma coisa deste gosto: Camões era europeu, branco; Dinamene era chinesa, amarela. Amor, amor, raça aparte. Entre salvar uma inferior chinesa e OS LUSÍADAS, o bardo não hesitou, exibindo um conhecido preconceito racista: salve-se o manuscrito, pereça a chinesa. A partir daqui, o crítico ideológico esquecia os achados poéticos, as lindas metáforas, a linguagem poética de uma inventiva sem igual, e mergulhava, a fundo, nos malefícios das “descobertas”, do racismo, do colonialismo, da exploração do homem pelo homem, do capitalismo selvagem, dando Camões como um peão de forças malévolas e um precursor mal avisado do racismo do século XXI.

Por que não? As redes sociais andam cheias deste tipo de sondagens.

Vou terminar, contando uma história verdadeira, de que tomei conhecimento, no meu tempo de estudante de engenharia. Vivia na Avenida Guerra Junqueiro, muito próxima do Instituto Superior Técnico. Frequentava então uma Pastelaria Mexicana, que ainda existe, a qual era também frequentada por um ideólogo da esquerda dura, obcecado com a ideologia e com Marx. Conta-se que, na sua primeira noite de núpcias, quando finalmente se libertou dos amigos e se fechou no quarto com a noiva, depois de se meter na cama com ela, debruçou-se carinhosamente sobre a amada e perguntou-lhe: “Você já leu O CAPITAL, de Karl Marx?” Consta que o casamento durou poucos dias e até se percebe porquê. Aquela pergunta cabia tanto naquela circunstância, como o racismo cabia no imortal soneto de Camões. 

Eugénio Lisboa

5 comentários:

Anónimo disse...

https://arquivos.rtp.pt/conteudos/comemoracao-do-dia-de-camoes-de-portugal-e-da-raca-em-lisboa-4/

Sr. Eugénio Lisboa, os racistas, em Portugal são os partidários do Estado Novo e não os comunistas portuguesas.
Com o 25 de abril, este dia passou a ser designado como Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portugueses.

Creia-me um seu admirador,

Eugénio Lisboa disse...

Caro Senhor, acho que não devemos simplificar. Em primeiro lugar, em lado nenhum do meu texto, eu digo que os comunistas são racistas, nem tal coisa me passaria pela cabeça. Em segundo lugar, que a maioria dos aderentes ao Estado Novo era racista, não me custa a acreditar, mas como as pessoas são muito contraditórias, temos, a bem da honestidade, de admitir que existiria entre os estadonovistas, alguma alma mais sensível, capaz de sintonizar com gente de outra raça. Isto não os absolve de outros pecados, mas não se pode nem deve ser categórico. A única coisa que eu digo no meu texto é que se não pode estar sempre a querer enfiar uma carapuça ideológica forçada pela cabeça abaixo do texto lírico mais nostálgico. No fim e ao cabo, Camões foi muito sensível à beleza negra e à amarela e, sobre ambas, escreveu poemas admiráveis. E isto em pleno século XVI.
Mas seja dito de passagem que não é só a carapuça ideológica enfiada à força pelos textos abaixo, que lhes faz mal e os magoa: muita teoria literária, mal digerida e enfiada desastradamente pelos textos abaixo, também os desfigura. O mais importante, nisto tudo, não é estarmos preocupados com coisas exteriores aos textos, em vez de nos preocuparmos com os textos eles mesmos: LÊ-LOS, LÊ-LOS e voltar a LÊ-LOS. Assim recomendava Spitzer e boa recomendação era esta.
De qualquer modo, agradeço a sua observação.
Um abraço do
EL

Ildefonso Dias disse...

Quando o Sr. Eugénio Lisboa afirma que "O poema deve ser interpretado pelo que o poeta lá pôs e não pelas circunstâncias da vida".

São condições que não se excluem. E explico porquê com uma Obra de João de Freitas Branco.

João de Freitas Branco, que nas palavras do professor Jorge Calado, do IST, foi o grande educador musical dos portugueses, fez um estudo pioneiro, da música e da relação da música com a poesia camoniana.

É um estudo da condição inseparável da Obra e das circunstâncias da vida do poeta Camões.

Desse estudo, publicou o livro "Camões e a Música", e ainda publicou "A música na obra de Camões".

A música entra consideravelmente na Obra camoniana, nela Camões não tem um conhecimento teórico da música, nem dos grandes autores da época, nem os instrumentos de teclas lhe eram familiares e tinha apenas conhecimento de instrumentos de corda dedilhada.

A ausência desse conhecimento, é talvez porque não frequentava os salões aristocratas, e isso corrobora uma visão diferente do Camões, homem pobre, que sobrevive em dificuldade e que é ostracizado, contrariando, a tese biográfica de Camões como um homem da classe dominante.

Mas, João de Freitas Branco foi comunista e camarada próximo de Vasco Goncalves, é certo que, no pensamento do anticomunista Eugénio Lisboa, este homem não pode ser inteligente porque identificou-se com o CAPITAL de Marx, ou é um tirano.

Eugénio Lisboa disse...

O Sr. Ildefonso Dias tinha-me enchido de felicidade ao dizer-me que não falava das minhas coisas, por elas não terem para si qualquer interesse. O seu desinteresse era o meu sossego. e o meu bem estar.
Infelizmente, voltou à carga, mais uma vez não compreendendo nada, citando incorrectamente uma frase minha (eu não escrevi "e não pelas circunstâncias da vida", mas sim: "pelas circunstâncias que estiveram na origem da sua escrita" ) e metendo a mão num assunto que já fez correr muita tinta, dentro e fora de Portugal. Aconselharia o Sr. ID a ler o célebre ensaio de António Sérgio, no qual no qual ele explicava muito bem explicadinho a um conhecido professor universitário que para se interpretar a sério um texto, o importante é ler o que está no texto e não saber se, no dia em que o autor o escreveu, tinha comido peixe ou feijoada ao almoço. No fim de contas, ninguém sabe quem foi Homero e sabe-se pouco ou nada quem foi Shakespeare. Sérgio escreveu este famoso ensaio, antes de surgir a crítica antibiografista americana. Esta teve o grande mérito de chamar a atenção para o texto e não para as conversas de barbeiro que o autor tivesse. O grande Marcel Proust escreveu um ensaio célebre, publicado postumamente, intitulado CONTRE SAINTE-BEUVE, no qual faz uma eloquente demolição da crítica biografista. Não sou um fundamentalista em matéria de usar a biografia: esta pode ajudar a confirmar ou iluminar interpretações já feitas. Eu sou um grande leitor de biografias. O exemplo que o Sr. ID dá é bem ilustrativo do bom uso que se pode fazer delas, mas é um exemplo, também, que nada tem que ver com a interpretação de um texto. Este deve ser interpretado pelo que lá está, independentemente de se saber se Camões gostava ou não de chinesas. Ou se era uma chinesa afogada na foz do Mekong que estava por detrás da escrita do ALMA MINHA. É interessante sabê-lo, mas não é necessário sabê-lo.
Sabe, Sr. ID, o Sr. continua a ter pouco respeito pelo estudo dos outros e mete frequentemente a mão em matérias que de todo desconhece. Olhe que as pessoas fora da sua ideologia também estudam.
Quanto ao Dr. João de Freitas Branco,, fui amigo e grande admirador dele, consultei-o, quando exerci o cargo de conselheiro cultural da nossa embaixada em Londres, e ele teve a gentileza de elogiar um livro meu, em público, ainda antes de nos conhecermos. Já vê que as coisas não são nunca simples nem a preto e branco.

Ildefonso Dias disse...

O Sr. Eugénio Lisboa tem colocado aqui neste blogue em variadíssimas situações um sinal de equivalência entre o Comunismo e o Nazismo.
Eu não tenho amigos Nazistas nem os admiro.
Passe bem.

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