quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Confiar, mas nem tanto



Por estes dias li, de Hernán Diáz, Confiança (Livro do Brasil, 2022). Não estava à espera de encontrar muita química, mas por acaso encontrei mais do que estava à espera.

Em geral não ligo a spoilers, mas neste caso acho que podem ser importantes e por isso não vou fazer um resumo da história. Eu, pela minha parte, como leio muitas vezes por amostragem, perdi uma parte do sentido do livro, inicialmente. Mas depois de voltar atrás, de ler as críticas e resumos, tudo de repente fez sentido. E foi bastante interessante.

Sobre a química. Um dos personagens era o acionista maioritário da Haber pharmaceuticals, uma empresa fictícia que toma emprestado o nome de Fritz Haber e que tem, com ele, como prioridade "o desenvolvimento de fármacos eficazes para o largo espetro de doenças psiquiátricas que até aqui eram tratadas com pouco mais do que morfina, hidrato de cloral, brometo de potássio e barbital." Ora isto passa-se nos anos 1920, e embora fosse verdade que só havia aquilo, as empresas farmacêuticas não tinham estas prioridades. Não se pensava num fármaco "mágico" para as doenças psiquiátricas.  O primeiro tratamento razoável para doenças mentais vai aparecer nos anos 1950 com a clorpromazina. Curiosamente, isto passa-se na primeira parte do livro e de alguma forma forma pode atribuir-se aos pequenos erros que os livros vão acumulando, tanto mais que se essa parte do livro é atribuido a outro autor.  

Tanto a principal personagem, como a sua mulher, trabalham com  "médicos e químicos farmacêuticos tendo em vista a descoberta de tratamentos mais eficazes contra os distúrbios psiquiátricos", volta a repetir-se. Pouco depois, sabe-se que è mulher cuja saúde mental se deteriora. Vai para a Suíça onde  "um estudo pioneiro de sais de lítio, que a Haber Pharmaceutical seguia com interesse" é de alguma forma parado.

É aqui que a química do livro se torna mais interessante, na minha opinião. O tratamento revolucionário proposto para a mulher do magnata e que estava a ser desenvolvido pela farmacêutica era convulsivo, usando injeções de pentilenotetrazol. É pouco conhecido. mas a ideia das terapias convulsivas surgiu nesta altura com compostos que provocavam convulsões. Só depois evoluiu para a terapia eletroconvulsiva (primeiro foi química com fármacos e depois física, com eletricidade). Tudo isto era bastante bárbaro, embora em nome da ciência, e a mulher acabou por morrer numa dessas sessões convulsivas. Deve notar-se que hoje em dia tem havido um recrudescimento das terapias eletroconvulsivas, mas não só as correntes são muito mais baixas como é feito com o paciente inconsciente. De qualquer forma continua a haver ceticismo em relação a essas terapias. E embora de forma dramática, o livro acaba por referir os vários aspetos do início da terapia.

Afinal dá-se conta de que a mulher não morreu do tratamento psiquiátrico (isto não é um spoiler, mas um teaser!) mas de cancro. Não se diz qual era o cancro, mas há várias referências à morfina e a Paracelso. O livro mostra uma trama muito mais complexa que é um retrato diferente de uma época que, através da visão de diferentes personagens, nos faz pensar na vida e na literatura. 

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