Meu artigo no último JL:
Acaba de sair em
português na Relógio d’Água O Doutor Fausto. A Vida do Compositor Alemão
Adrian Leverkühn, Contada por um Amigo, do escritor alemão Thomas Mann
(1875-1955). É uma das obras maiores do autor de Os Buddenbrooks, A
Montanha Mágica e José e os Seus Irmãos, que ganhou o Nobel da
Literatura de 1929. Já havia uma tradução do Doutor Fausto (Dom Quixote,
1996), feita a partir de uma versão brasileira, mas esta, de António Sousa
Ribeiro, um germanista da Universidade de Coimbra que já tinha traduzido A Montanha
Mágica (Relógio d’Água, 2020) e é autor de traduções dos austríacos Karl Kraus
e Hermann Broch, recomenda-se por ter sido feita de raiz no nosso português.
Contém um útil prefácio e notas, sucintas, do tradutor.
O livro de Mann, cujo
original é de 1947, inspira-se na lenda do alquimista alemão Johann Georg Faust,
que viveu entre os séculos XV e XVI, sobre o qual surgiu de autor anónimo a Historia Von D. Johan Fausten (1587), contando como Fausto vende a
alma ao Diabo em troca de dons que não tinha. Não demorou a surgir a peça do
inglês Christopher Marlowe Doutor Fausto (1604). A mesma história inspirou o poema dramático Fausto
(1808) do alemão Johann Wolfgang von Goethe, que teve uma sequela (1832). O
alquimista vende a alma a Mefistófeles em troca de saber e, portanto, poder,
mas acaba por morrer na maior agrura. No século XX, Fernando Pessoa haveria de escrever ao longo de décadas o poema
dramático Fausto, do qual há várias edições póstumas recriadas a
partir de um labirinto de fragmentos (a última é de Carlos Pitella, Tinta da China,
2018). Na mesma época, o poeta francês Paul Valéry escreveu uma sua continuação
do Fausto, Mon Faust (1946), que ficou, como o de Pessoa, inacabado.
A lenda de Fausto ficou
colada à recepção social da ciência. Marlowe precedeu de pouco o triunfo dos
grandes nomes da Revolução Científica. Nessa altura os cientistas começaram a
aparecer na ciência como charlatães… Por sua vez, a obra prima de Goethe situa-se
no Romantismo, quando a arte contesta a húbris da ciência, que tinha crescido enormemente
no Iluminismo. Já os Faustos de Pessoa e Valéry são modernos, tal como o
de Mann, sendo coevos de um tempo em que tanto a arte como a ciência explodiam em
novas formas.
A obra de Mann, escrita entre 1943 e 1947 no exílio nos EUA (Mann fugiu de
1938 da Alemanha nazi) é um romance filosófico. Aqui em vez de um alquimista há
um compositor. Mann inventou um personagem, o maestro Adrian Leverkühn, cuja
biografia é contada por um amigo. No capitulo 25, a meio do livro, o Diabo faz
a sua entrada em cena. O amigo transcreve escritos auto-biográficos do músico.
A sedução diabólica transparece neste diálogo:
“Ele [o Diabo]: ‘(…) o Alemão
é talentoso, mas lerdo – suficientemente talentoso para se irritar por ser
lerdo e superar isso com uma iluminação enquanto o Diabo esfrega um olho. Tu,
meu caro, sabias muito bem do que precisavas e não renegaste minimamente a tua
natureza alemã quando fizeste a tua viagem e, salva venia, apanhaste
aquele encantador mal gálico.’
“Cala-te!’
‘Cala-te? Olha, olha, eis um progresso da tua parte. Estás a aquecer. Finalmente,
prescindes das cerimónia do plural e tratas-me por tu, como compete entre
pessoas que estão vinculadas por um contrato e estão ajustadas no tempo e na
eternidade.’
‘Calai-vos, já disse!’ ”
O mal gálico é a sífilis. O próprio maestro se deixa infectar pela
sífilis, pensando que assim alcançaria a genialidade (o exemplo vem de Nietzsche).
Como o Diabo não se cala, Adrian também não. Páginas à frente:
“Ele: ‘Nós vamos, entretanto, servir-te e obedecer te em tudo, e
o Inferno ser-te-á propício, se renunciares a tudo o que vive, a todo o
exército celeste e a todas as pessoas, pois
assim tem de ser.’
Eu (sentindo um sopro
extremamente frio): ’Como? Essa é nova. O que significa essa cláusula?’
Ele: ‘Significa
renúncia. Que outra coisa podia ser? Julgas que o ciúme só habita nas alturas e
não também nas profundezas? Tu, delicado ser criado, estás-me prometido e
destinado. Não te é lícito amar‘ ”.
No final, Mann diz que a Alemanha se desmorona “abraçada por demónios”, “caindo
de desespero em desespero”. Há um óbvio paralelo entre a “morte” da Alemanha e
a morte do maestro, embora a alegoria que liga o país ao compositor seja uma
teia complexa. O narrador diz, na última frase do romance: “Deus tenha
misericórdia da vossa pobre alma, meu amigo, minha pátria.”
Enquanto nos Faustos de Marlowe e Goethe a crítica incide sobre o sábio,
pela sua ambição desmedida, já no Faustos de Mann ela recai sobre o artista,
que pretende talento e reconhecimento, em vez de ciência e poder. Tanto ciência
como arte são buscas humanas que tendem a ignorar os seus limites.
Veja-se, em Pessoa, como tanto a arte como a ciência podem ter por base
a loucura e o inconsciente. O poeta põe Goethe a dizer: “Do fundo da inconsciência/ Da alma sobriamente louca/
Tirei poesia e ciência,/ E não pouca/ Maravilha
do inconsciente!/ Em sonho, sonhos criei./
E o mundo atónito sente/ Como é belo o que lhe
dei.”
Aprofundando a relação
entre arte e ciência, vale a pena reparar nos paralelos entre Mann e Einstein. Para além de ambos serem alemães,
de ambos terem ganho o Nobel (Einstein em 1921, há cem anos) e de ambos terem
sido exilados nos EUA, há outras confluências: ambos estudaram em Munique e ambos
foram professores em Princeton. Tendo tido residências próximas, tornaram-se
amigos. Ao contrário de Einstein, Mann acabou por regressar à Europa,
fixando-se em Zurique, onde Einstein fez estudos superiores. Morreram no mesmo
ano.
Einstein passou por Lisboa,
em 1925. Mas o mesmo não sucedeu com Mann, apesar de o seu romance As
Confissões de Félix Krull se passar, em parte, aí. Contudo, o seu irmão mais
velho, Heinrich, também escritor, e os seus filhos, Erika e Golo, foram, na
capital portuguesa, refugiados em trânsito para os EUA em 1940. Um colega já
falecido de António Sousa Ribeiro, Ludwig Scheidl, foi também refugiado:
integrou um grupo de crianças austríacas que chegaram a Portugal na Segunda
Guerra Mundial. Tendo sido adoptado por um casal de posses modestas, acabou por
fazer carreira académica. Ele é o autor de Fausto na Literatura Portuguesa e
Alemã (1987), que aprofunda o que aqui foi dito.
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