Minha recensão do último livro de Ishiguro no I de ontem:
No seu discurso do Nobel
proferido em Estocolmo em Dezembro de 2017 o escritor inglês de origem japonesa
Kazuo Ishiguro escreveu uma passagem que de certo modo pré-anunciava o seu
oitavo e mais recente romance, Klara e o Sol, saído há pouco na Gradiva:
“E ao dobrar da esquina – ou
teremos já dobrado essa esquina? – estão os desafios colocados pelos espantosos
avanços da ciência, da tecnologia e da medicina. As novas tecnologias genéticas,
como a técnica de edição genética CRISP [que valeu o prémio Nobel da Química de
2020 às suas descobridoras] – e os progressos da inteligência artificial e da
robótica trar-nos-ão benefícios extraordinários, salvadores de vidas, mas poderão
também criar meritocracias selvagens semelhantes ao apartheid e desemprego
em massa, incluindo o daqueles que agora fazem parte das elites profissionais.
Portanto, aqui estou eu, um homem
na casa dos sessenta [Ishiguro tinha 63 anos quando recebeu o Nobel], a esfregar
os olhos e a tentar distinguir os contornos, lá fora na névoa, de um mundo que até
ontem eu não suspeitava existir. Poderei eu, um escritor cansado, de uma geração
intelectualmente cansada descobrir agora a energia para olhar para este lugar estranho?
Terei ainda algo que possa ajudar a dar um sentido de perspectiva, a fornecer
camadas emocionais aos argumentos, às lutas e às guerras que sobreviverão
quando a sociedade se debater para se ajustar a estas mudanças gigantescas?
Terei de prosseguir e dar o meu melhor.
Ainda acredito que a literatura é importante e sê-lo-á particularmente quando atravessarmos
esse terreno difícil.”
Retirei a citação, que peço
desculpa por ser um pouco longa, do livrinho de Ishiguro A Minha Noite no
Século XX e Outras Pequenas Descobertas (Gradiva, 2018). Tendo lido com bastante
gosto o novo romance de ficção científica Klara e o Sol, cujo lançamento
internacional ocorreu em Março de 2021, com edição portuguesa simultânea numa
excelente tradução de Maria de Fátima Carmo (que já tinha traduzido o discurso
do Nobel), concluo que há três anos os temas da inteligência artificial e da
robótica, em particular da criação de robôs de forma humana que interagem com
os humanos, preenchiam a mente do escritor no seu processo criativo. Ishiguro
descreve a vida numa sociedade futura, usando como é comum nele um discurso na primeira
pessoa do personagem principal, que neste caso é um andróide, pertencente à
série dos AA (Amigos Artificiais). A máquina, que tem muito de humano, embora
esteja cognitiva e socialmente abaixo dos humanos, faz de “dama de companhia” a
uma adolescente, Josie, numa época incerta num sítio incerto dos Estados
Unidos. O Sol do título explica-se porque a robô funciona com energia solar, sendo
para ela o “astro-rei” uma espécie de deus, uma entidade da qual depende
estritamente e à qual, por isso, pede auxílio quando necessita. Em civilizações
antigas, como a egípcia, a romana, a inca e a azteca, o Sol era uma divindade, pelo
que não admira que um robô primitivo seja capaz de conceber um deus solar com
base na sua experiência de vida.
Os autores de ficção científica
propõem-nos viagens no espaço e no tempo apenas à procura de ver os seres
humanos de outra perspectiva. Se vamos, como num romance de Júlio Verne, à Lua,
é para, com a distância, ver melhor como somos na Terra. Se vamos, como num
romance de H. G. Wells, a um futuro distante numa máquina do tempo, é para
observar melhor a nossa sociedade actual. Também esta visão imaginada por
Ishiguro de um futuro distópico é uma tentativa de conhecer melhor os nossos
medos e os nossos dilemas de hoje, numa época atravessada pelas questões que o
autor levantou no seu discurso de Estocolmo. A questão de fundo, quer na
ciência quer na literatura, é aquela que já estava no porta do templo de Delfos
na Antiga Grécia: “Conhece-te a ti próprio”. Quem somos? Percebemos melhor através
do pensamento de Klara, apesar das suas aparentes insuficiências (ou talvez
mesmo por causa delas), quem somos. A questão-chave do livro é: o que há de
único no homem? O que é que nos distingue de um robô? O que é que sentimentos
como o amor têm de intrinsecamente humanos? Poderá algum dia um robô revelar-se
humano, isto é, amar e ser amado?
De facto, esta novela de
antecipação reflecte não apenas os temas da inteligência artificial e da
robótica, mas também o da edição genética, outro dos grandes desafios da
ciência de hoje que vai determinar a nossa vida amanhã. O autor antecipa uma
profunda desigualdade social em resultado de manipulação genética. Há pessoas que
são “elevadas” e outras, que não tendo sido sujeitos a esse processo,
dificilmente poderão competir com elas. Klara foi comprada pela mãe de Josie, para
minorar a solidão desta. A jovem padece de uma estranha doença (talvez por
falha do processo de “elevação”) e, no mundo em que vive, o ensino faz-se à distância
(uma premonição, pois o romance foi concluído antes da actual pandemia!). A
robô é muito simpática e faz o melhor que pode (e a sua tecnologia lhe permite)
para cumprir a sua missão de dialogar com a “dona” e demais humanos em redor.
Tem um interior cheio de electrónica, mas um exterior de forma humana (está já
a ser preparado um filme e vamos ver como Klara vai ser no cinema). É muito boa
observadora, tirando partido das imagens que a sua visão focalizada em
pormenores lhe proporciona, e tira constantemente conclusões de tudo aquilo que
observa. É capaz não só de manter agradáveis conversas mas também de congeminar,
construindo concepções um pouco ingénuas, como mostra a sua confiança na boa
influência do Sol para todos, robôs e humanos.
Na sociedade onde vive Josie, uma
parte da população foi alienada por ter sido substituída por máquinas nos seus
empregos. Pairam claras tensões sociais e políticas. A animosidade contra os
robôs transparece: uma pessoa que vê Klara ir ao teatro com Josie comenta que
os robôs até já tiram os lugares do teatro.
Não contando muito do enredo,
sempre digo que o clímax se atinge quando se percebe que a mãe de Josie tinha
comprado aquela andróide à filha, na esperança de que a máquina a substituísse no
caso de desfecho fatal da doença da jovem (já tinha morrido outra filha). E,
para isso, encomenda a um engenheiro-artista um modelo 3D de Josie que pudesse ser
“habitado” por Klara, se Josie morresse. A pergunta é óbvia: se Klara for igualzinha
à filha poderia a mãe amá-la do mesmo modo? O pai de Josie, que está separado
da mãe, questiona Klara: ”Acreditas no coração humano? Não me refiro
simplesmente ao órgão, como é obvio. Estou a falar no sentido poético. O
coração humano. Achas que tal coisa existe? Algo que torna cada um de nós
especial e único? Vamos supor que existe. Nesse caso, não achas que, para
conheceres verdadeiramente a Josie, terias de aprender não apenas seus maneirismos,
mas também o que existe no mais profundo deles? Não terias de conhecer o seu coração?”
Qualquer obra é sempre o resultado
da vida do autor. Ishiguro nasceu em Nagasáqui, o sítio onde deflagrou a bomba
atómica que terminou a Segunda Guerra Mundial. O pai era um oceanógrafo que, trabalhando
para o governo do Reino Unido, se fixou em Inglaterra quando o filho tinha
cinco anos. O regresso ao Japão foi sendo adiado até não mais acontecer. Ishiguro
fez a escolaridade britânica, interiorizando a língua inglesa, que não era
falada em casa, e a cultura ocidental, que também era mais da rua do que de
casa. Na sua adolescência, nos anos 70, sonhou ser músico, seduzido pelas
canções de Bob Dylan (Nobel da Literatura de 2016) e Leonard Cohen. Tocou em vários clubes, mas
as suas gravações de guitarra e voz não tiveram êxito. Hoje alimenta a sua
paixão pela música escrevendo letras para a cantora de jazz Stacey Kent. Estudou
Inglês e Filosofia na Universidade de Kent e fez um mestrado em Escrita Criativa
na Universidade de East Anglia, em Norwich, sob a orientação de Malcolm Bradbury
e Angela Carter. O seu primeiro romance foi a sua tese: As Pálidas Colinas
de Nagasáqui (Gradiva, 2019). Seguiram-se: Um Artista do Mundo Flutuante
(Gradiva, 2018); Os Despojos do Dia (Gradiva, 1995), vencedor do Booker Prize e adaptado ao
cinema; Os Inconsolados (1995; Gradiva), vencedor do Cheltenham
Prize; Quando Éramos Órfãos (Gradiva, 2000), nomeado para o Booker Prize; Nunca Me Deixes (Gradiva,
2005), uma obra de ficção científica também nomeada para o Booker Prize e
adaptada ao cinema; e O Gigante Enterrado (Gradiva, 2015). Acresce uma
colectânea de contos: Nocturnos: Cinco Histórias Sobre Música e o Cair da
Noite (Gradiva, 2017).
Voltando ao tema dos robôs, Klara é uma
robô terna e submissa, que não tem nada do Frankenstein imaginado há pouco mais
de 200 anos por Mary Shelley. Bem mais inteligente do que os nossos actuais robôs,
é uma boa companhia. Tem um corpo móvel parecido com o nosso (a mãe na loja escolhe-a porque ela consegue
imitar Josie a andar). É, porém, muito diferente do robô Adam do romance de
ficção científica Máquinas como Eu (Gradiva, 2019), do inglês Ian
McEwan, cujo nome tem aparecido nas listas dos nobelizáveis. O dono de Adam tem
uma namorada e vive um triângulo amoroso quando Adam se intromete na relação. No
mais recente romance de Ishiguro não há sexo, mas apenas sentimentos fortes. Não
deixa de ser curioso, que dois séculos após Frankenstein, os robôs se tenham
tornado personagens plausíveis de romance. O futuro vem aí e a literatura
costuma ser muito boa a anunciá-lo.
Sem comentários:
Enviar um comentário