domingo, 10 de setembro de 2017

OS ROBERTOS


Vêm aí os Robertos! Gritava o meu irmão Mário, ofegante de dois andares a subir de um pulo, vindo da rua.

Era assim que nós nos referíamos a esta herança cultural portuguesa que é o teatro de fantoches ou de marionetas, dito “de luva”.

Descemos de um salto e, já na rua, a correr, ouvíamos a voz de “palheta” do bonecreiro. Lá estavam eles, gesticulando, no topo de uma guarita instalada naquele passeio mais alargado da Rua João de Deus, em frente da mercearia do Anselmo, rodeada por uma muito razoável assistência de miúdos e graúdos.

Já montada, a guarita era uma armação de madeira forrada com chita barata, a fazer as vezes de palco virado a todos os quadrantes. De pé, escondido lá dentro, o bonecreiro, falando sem parar, manipulava os figurantes, simples bonecos ou fantoches reduzidos a uma tosca cabeça de pau, vistosamente pintada, agarrada a um meio corpo que não era mais do que a respectiva roupa.

Diz-se fantoches “de luva” porque o operador mete o dedo indicador na cabeça do boneco e usa o polegar e o dedo médio para fazer os braços, enfiando-os nas mangas terminadas por mãos igualmente vistosas. Testemunho de uma das tradições mais antigas das artes cénicas europeia e portuguesa julga-se ter ido buscar heróis populares ao oriente.

Deste teatro de rua reduzido à sua expressão mais simples, recordo, sobretudo, as cenas de conflito, resolvidas à cacetada, e os sons muito especiais que, só mais tarde soube serem conseguidos com a “palheta” um instrumento adaptado à boca do operador e lhe confere uma voz metálica e bem audível, de que ressaltam, em especial, os “rrrrrr” contidos em muitas das palavras-chave do texto (rapaz, rosa, torre, porrada, Rita, Roberto,…), só possíveis através do uso deste instrumento. Eram os sons estridentes, assim conseguidos, que todos guardamos na memória, que captavam a atenção do público, além de que realçavam o discurso e a acção, tão importantes na transmissão de “vida” aos bonecos.

Os estudiosos desta expressão artística, dizem que este teatro de rua remonta à “Commedia dell Arte” italiana, do século XVI, construída à volta de situações padronizadas e com certos personagens-tipo, sendo provável que tenha absorvido algumas tradições orientais. Acredita-se que, durante o século XVII, este tipo de representação se alastrou à Europa, em especial, a França, evoluindo em função das especificidades culturais dos locais por onde andou. O carácter, a um tempo, caricatural, burlesco e subversivo do discurso falado e a utilização da voz de palheta no falar de todos os personagens são duas constantes neste teatro de rua.

Em Portugal, o herói popular deste teatro de fantoches chegou aos dias de hoje com o nome de Dom Roberto, apesar de, no século XVIII, terem sido várias as designações deste personagem. Roberto é apenas uma das suas muitas designações conhecidas, ao longo o séc. XVIII, que acabou por se impor e generalizar.

Na origem deste nome poderá estar o grande êxito alcançado pela representação de uma Comédia de Cordel intitulada “Roberto do Diabo”, uma importante peça do reportório clássico europeu de fantoches, baseada na história do Grande Roberto, Duque da Normandia e Imperador de Roma.

Outra origem poderá estar associada a um célebre empresário de Teatros de Fantoches, chamado Roberto Xavier de Matos que, em começos do século XIX, dirigia o Teatro do Bairro Alto. Uma certeza existe, porém, a palavra Roberto tem uma sonoridade ideal para ser produzida pela voz do bonecreiro que utiliza a palheta.

A. Galopim de Carvalho

1 comentário:

Graça Sampaio disse...

Oh como me lembro dos Robertos, lá em Algés, anos 50! Era dos poucos divertimentos que tínhamos. Aliás, como os saltimbancos que apareciam pelas ruas. Que deprimente era ver as suas habilidades, as suas marcas da fome, da miséria, dos maus tratos de um país cinzento escuro... :(

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