No dia 12 de Setembro foram apresentadas
em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian, e, três dias depois, no Porto, na
Biblioteca Almeida Garrett, as Obras
Pioneiras da Cultura Portuguesa, uma edição exclusiva do Círculo de
Leitores que vai levar ao grande público 80 obras num total de 30 volumes que
foram reconhecidas por uma vasta equipa multidisciplinar como as primeiras que
foram escritas de raiz na língua portuguesa nos mais variados ramos do conhecimento,
da poesia à química, passando pelo teatro, história, gramática, botânica,
medicina e física. Sou coordenador da edição dessas Obras juntamente com o
historiador José Eduardo Franco, detentor de uma cátedra na Universidade
Aberta. E sou também o coordenador de um dos primeiros volumes a vir a público,
o primeiro tratado de física, que é o penúltimo na numeração da colecção: trata-se
do primeiro tomo da Recreação Filosófica
do Padre Teodoro de Almeida, publicado pela primeira vez em 1751 e republicado
em 5.ª edição (a escolhida para a nova edição) em 1786.
A publicação das Obras Pioneiras é um grande acontecimento
editorial, pois muitos destes clássicos da língua portuguesa estavam longe do
fácil acesso do público, escondidos como estão os originais em manuscritos e
incunábulos em bibliotecas e arquivos do paío estrangeiro e as transcrições em
edições esgotadas. Estas obras são o ADN da língua e cultura portuguesa uma vez
que a língua está ligada inextrincavelmente à cultura, crescendo à
medida que a cultura se vai alargando e espraiando nas várias áreas do
conhecimento.
Queria aqui, como fiz na
apresentação pública, enfatizar dois aspectos da cultura nacional que a
presente edição pretende ajudar a superar. Em primeiro lugar, a dicotomia entre
humanidades e ciências. De facto,
encontramos nas Obras Pioneiras tanto
a poesia, o conto e o teatro, escritos sobre pintura, música e arquitectura,
como a navegação, a geografia e ecologia, a marinharia e guerra marítima, e a engenharia.
De facto, a separação entre essas duas grandes áreas da criatividade humana, o
problema que o escritor e cientista inglês C. P. Snow identificou nos anos 50 do século XX sob o nome de “Duas Culturas”,
não existia no século XVI. É um bom indicador da união donhecimento dessa época
o facto de o livro de Colóquio dos
Simples e das Drogas da Índia, publicado em Goa em 1563, de Garcia da Orta,
ter sido antecedido por palavras laudatórias em versos de Luís de Camões, que em
Goa conheceu e se tornou amigo de Orta. Trata-se dos primeiros versos impressos
de Camões, sendo sintomático da unidade da cultura que eles tenham aparecido
juntos numa das obras fundamentais da ciência portuguesa e mundial. Foi preciso
um médico belga, Charles de l´Écluse, aprender português para traduzir para latim e assim revelar ao mundo
cientifico internacional as descobertas que um médico português sobre as propriedades
medicinais de plantas orientais (o Colóquio
dos Simples foi depois também traduzido para espanhol, e para inglês, esta
uma língua que estava na altura longe de ser a língua franca da ciência que é
hoje).
A unidade das humanidades e
ciências reside também no facto de a Recreação
Filosófica, aparecida em dez volumes ao longo de quase meio século (entre
1751 e 1800), estar escrita num português literário. Curiosamente o primeiro
tomo da Enciclopédia coordenada pelos
franceses Diderot e d’Alembert saiu no mesmo ano do primeiro tomo da obra
principal do Padre Almeida, tendo o último saído em 1772. A Recreação Filosófica, embora escrita na
forma popular de diálogo (ao contrário da Enciclopédia
da autoria de um homem só), pode ser vista como uma verdadeira enciclopédia
no sentido em que aborda os vários ramos do saber, começando pela física e
terminando na teologia, passando pela astronomia, pela história natural e pela
lógica. Na breve história da filosofia que o autor traz a lume na 5.ª edição é
muito claro que os cientistas, tanto internacionais como nacionais, que protagonizaram
a Revolução Científica surgiram na linha
natural da busca filosófica.
Por outro lado, estas Obras Pioneiras ajudarão a superar a
dicotomia entre o erudito e popular, ao colocar ao alcance de todas livros que
só estavam ao alcance dos mais estudiosos, pois na maoria dos casos só existiam
nas bibliotecas e nas livrarias em raras edições com um aparelho crítico que dificultava
a leitura. Mais uma vez o volume de Padre Almeida ostenta no seu título - Recreação Filosófica - todo um programa.
Aprender devia ser divertido. O subtítulo
Diálogos sobre a Filosofia Natural
para instrução de pessoas curiosas que não frequentaram as aulas indica que o autor procurava, através do seu estilo
leve, tornar fácil a aquisição do conhecimento de modo a que ele chegasse ao
maior número de pessoas. O filósofo inglês Francis Bacon, um arauto da
Revolução Científica, tinha dito no século XVII que “saber é poder”. Mas tornou-se
também claro no século XVIII que “saber é prazer” e esse prazer devia ser para
todos. Acima de tudo, o conhecimento era
entendido como a procura da verdade, sendo o erro o inimigo a abater. Neste
aspecto, o Padre Almeida é particularmente claro e certeiro. Essa mensagem é uma lição que hoje continua
válida no actual mundo da “pós-verdade” e dos “factos alternativos”. Ouçamos a
prosa saborosa deste grande autor do Iluminismo português:
“Sei que um espírito livre,
e cuidadoso em escolher de todos o que dá mais sinais de verdade, mil vezes se
enganará, abraçando a mentira disfarçada com traje alheio: conheço que é indispensável o erro; mas havendo de errar,
seja por fraqueza da natureza inevitável, não por obséquio lisonjeiro da
vontade. A verdade sempre anda acompanhada da razão, e muitas, e muitas vezes
se vê perseguida da autoridade; assim, quem for amante da verdade deve atender
mais à razão: havendo de abraçar o erro, seja antes disfarçado com a capa da
razão, do que com a da autoridade; a primeira é própria da verdade, a
segunda comua também para o erro; e há
mais desculpa, se abraçamos o erro coberto com capa alheia, do que com a que pode
ser sua. (...) Sei que a muitos faz tão grande peso a autoridade, que julgam
ser melhor errar com muitos, que acertar com poucos: nunca segui esta opinião;
sempre tive por melhor acertar, ainda só, do que errar, ainda que fosse com o
mundo todo; porque é muito melhor escapar só da tormenta, do que perecer em
comum naufrágio. A verdade, ainda que esteja só, e desacompanhada, é estimável;
e o erro, ainda que seja seguido, e acompanhado de todos os sábios do mundo,
nunca merece estimação.”
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