sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa

Meu artigo no último "As Artes entre as Letras"

No dia 12 de Setembro foram apresentadas em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian, e, três dias depois, no Porto, na Biblioteca Almeida Garrett, as Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa, uma edição exclusiva do Círculo de Leitores que vai levar ao grande público 80 obras num total de 30 volumes que foram reconhecidas por uma vasta equipa multidisciplinar como as primeiras que foram escritas de raiz na língua portuguesa nos mais variados ramos do conhecimento, da poesia à química, passando pelo teatro, história, gramática, botânica, medicina e física. Sou coordenador da edição dessas Obras juntamente com o historiador José Eduardo Franco, detentor de uma cátedra na Universidade Aberta. E sou também o coordenador de um dos primeiros volumes a vir a público, o primeiro tratado de física, que é o penúltimo na numeração da colecção: trata-se do primeiro tomo da Recreação Filosófica do Padre Teodoro de Almeida, publicado pela primeira vez em 1751 e republicado em 5.ª edição (a escolhida para a nova edição) em 1786.

A publicação das Obras Pioneiras é um grande acontecimento editorial, pois muitos destes clássicos da língua portuguesa estavam longe do fácil acesso do público, escondidos como estão os originais em manuscritos e incunábulos em bibliotecas e arquivos do paío estrangeiro e as transcrições em edições esgotadas. Estas obras são o ADN da língua e cultura portuguesa uma vez que  a língua está ligada  inextrincavelmente à cultura, crescendo à medida que a cultura se vai alargando e espraiando nas várias áreas do conhecimento.

Queria aqui, como fiz na apresentação pública, enfatizar dois aspectos da cultura nacional que a presente edição pretende ajudar a superar. Em primeiro lugar, a dicotomia entre humanidades e ciências.  De facto, encontramos nas Obras Pioneiras tanto a poesia, o conto e o teatro, escritos sobre pintura, música e arquitectura, como a navegação, a geografia e ecologia, a marinharia e guerra marítima, e a engenharia. De facto, a separação entre essas duas grandes áreas da criatividade humana, o problema que o escritor e cientista inglês C. P. Snow identificou nos anos  50 do século XX sob o nome de “Duas Culturas”, não existia no século XVI. É um bom indicador da união donhecimento dessa época o facto de o livro de Colóquio dos Simples e das Drogas da Índia, publicado em Goa em 1563, de Garcia da Orta, ter sido antecedido por palavras laudatórias em versos de Luís de Camões, que em Goa conheceu e se tornou amigo de Orta. Trata-se dos primeiros versos impressos de Camões, sendo sintomático da unidade da cultura que eles tenham aparecido juntos numa das obras fundamentais da ciência portuguesa e mundial. Foi preciso um médico belga, Charles de l´Écluse, aprender português para  traduzir para latim e assim revelar ao mundo cientifico internacional as descobertas que um médico português sobre as propriedades medicinais de plantas orientais (o Colóquio dos Simples foi depois também traduzido para espanhol, e para inglês, esta uma língua que estava na altura longe de ser a língua franca da ciência que é hoje).

A unidade das humanidades e ciências reside também no facto de a Recreação Filosófica, aparecida em dez volumes ao longo de quase meio século (entre 1751 e 1800), estar escrita num português literário. Curiosamente o primeiro tomo da Enciclopédia coordenada pelos franceses Diderot e d’Alembert saiu no mesmo ano do primeiro tomo da obra principal do Padre Almeida, tendo o último saído em 1772. A Recreação Filosófica, embora escrita na forma popular de diálogo (ao contrário da Enciclopédia da autoria de um homem só), pode ser vista como uma verdadeira enciclopédia no sentido em que aborda os vários ramos do saber, começando pela física e terminando na teologia, passando pela astronomia, pela história natural e pela lógica. Na breve história da filosofia que o autor traz a lume na 5.ª edição é muito claro que os cientistas, tanto internacionais como nacionais, que protagonizaram a  Revolução Científica surgiram na linha natural da busca filosófica.

Por outro lado, estas Obras Pioneiras ajudarão a superar a dicotomia entre o erudito e popular, ao colocar ao alcance de todas livros que só estavam ao alcance dos mais estudiosos, pois na maoria dos casos só existiam nas bibliotecas e nas livrarias em raras edições com um aparelho crítico que dificultava a leitura. Mais uma vez o volume de Padre Almeida ostenta no seu título - Recreação Filosófica - todo um programa. Aprender devia ser divertido. O subtítulo  Diálogos sobre a Filosofia Natural para instrução de pessoas curiosas que não frequentaram as aulas  indica que o autor procurava, através do seu estilo leve, tornar fácil a aquisição do conhecimento de modo a que ele chegasse ao maior número de pessoas. O filósofo inglês Francis Bacon, um arauto da Revolução Científica, tinha dito no século XVII que “saber é poder”. Mas tornou-se também claro no século XVIII que “saber é prazer” e esse prazer devia ser para todos. Acima de tudo, o  conhecimento era entendido como a procura da verdade, sendo o erro o inimigo a abater. Neste aspecto, o Padre Almeida é particularmente claro e certeiro.  Essa mensagem é uma lição que hoje continua válida no actual mundo da “pós-verdade” e dos “factos alternativos”. Ouçamos a prosa saborosa deste grande autor do Iluminismo português:


“Sei que um espírito livre, e cuidadoso em escolher de todos o que dá mais sinais de verdade, mil vezes se enganará, abraçando a mentira disfarçada com traje alheio: conheço que  é indispensável o erro; mas havendo de errar, seja por fraqueza da natureza inevitável, não por obséquio lisonjeiro da vontade. A verdade sempre anda acompanhada da razão, e muitas, e muitas vezes se vê perseguida da autoridade; assim, quem for amante da verdade deve atender mais à razão: havendo de abraçar o erro, seja antes disfarçado com a capa da razão, do que com a da autoridade; a primeira é própria da verdade, a segunda  comua também para o erro; e há mais desculpa, se abraçamos o erro coberto com capa alheia, do que com a que pode ser sua. (...) Sei que a muitos faz tão grande peso a autoridade, que julgam ser melhor errar com muitos, que acertar com poucos: nunca segui esta opinião; sempre tive por melhor acertar, ainda só, do que errar, ainda que fosse com o mundo todo; porque é muito melhor escapar só da tormenta, do que perecer em comum naufrágio. A verdade, ainda que esteja só, e desacompanhada, é estimável; e o erro, ainda que seja seguido, e acompanhado de todos os sábios do mundo, nunca merece estimação.”

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