Artigo e Guilherme Valente do DN de hoje: «Tenho o direito de pôr questões, não bombas», Kamel Daoud, combatente argelino por um islão iluminista Desde muito jovem que pratiquei e me empenhei em promover o debate de ideias. É a divergência que permite valorizar ou abandonar as convicções. Nunca percebi que alguém quisesse enganar-se a si próprio. Por isso a Gradiva fez o que fez, com os erros das obras humanas. Nunca imaginaria, no entanto, ver-me envolvido numa controvérsia com o teor desta em que impulsiva e estupidamente me envolvi, reagindo, note-se, a um ataque muito violento à minha editora, a um dos nossos Autores, aos meus critérios editoriais e a mim próprio. Embora não faltassem motivos de consciência e inteligência para ter respondido, fi-lo num registo errado. Mas em nenhum momento da minha resposta quis tocar a pessoa do editor da RA. Defendi-me. Nunca em 50 anos de edição vira um editor valorizar publicamente o seu trabalho, as obras e os autores que publica, desvalorizando os livros e o trabalho de outros editores. Foi pena que tudo não tivesse terminado com a resposta a que eu tinha direito. De facto, o editor da RA entendeu aproveitar a nova oportunidade que o DN lhe deu para voltar a atacar-me. Insultando-me de modo ainda mais directo e soez. E lendo-me mal. Espero que desta vez me leia bem. 1. Deixo passar os insultos, desde logo no título bem pouco imaginativo e grosseiro da "resposta". Refiro apenas um que me parece trazer agua turva no bico: "GV é uma variante de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, que de dia lê com convicção Dawkins e [...] Sagan e à noite se deleita com esoterias várias [...], ou nem sequer é um leitor incondicional de JRS, mas, pelas receitas que este lhe assegura...» Não sou de facto admirador incondicional de nenhum autor, mas tenho razões para admirar JRS e gosto muito de ler os seus livros. Como terá chegado o editor da RA à ideia de que não os aprecio mesmo, ou descoberto aquilo com que me deleito nas minhas noites? Quanto às receitas, limpas como são, que pecado ou desprimor pode alguém ver nelas? 2. Nunca escrevi «não publicar JRS é um acto de censura». Havendo excelentes editoras interessadas em o editar como poderia ter dito tal disparate? O que disse foi que o modo como referiu o escritor e as obras pareceu-me ser, e provavelmente terá sido assim percebido por leitores do DN, como uma tentativa de condicionar o gosto e a inteligência — de um modo para para mim repudiável, pois não se situou no registo de uma crítica fundamentada e isenta, essa mais do que legítima. Também não confundi crítica com censura, palavra que nem usei. Crítica que o editor da RA nunca fez relativamente às obras de JRS. Leia-se o que escreveu na sua "resposta" sobre algumas delas. Note-se que neste novo ataque fingiu emendar a mão: «Há muitos leitores para a ficção de entretenimento [...] alguns frequentando também a boa» -- a "boa", isto é, a única que para ele é literatura. Fingiu porque «alguns deles» só pode significar poucos, isto é, supostamente os melhores, os de gosto e inteligência superiores... Ora, há vários géneros de literatura e em cada um deles bons e maus livros. Não podendo a preferência por um, o outro, ou por ambos ser usada como tabela de identificação e discriminação de estatuto. Tive o cuidado de escrever «roubar» entre aspas, usando a expressão coloquial. Quanto ao episódio Agustina, tive o rigor de escrever que não fora uma aquisição por meios ilegítimos. Por se tratar, neste caso, de uma diferença de sensibilidades, reconheço que não devia tê-lo referido. O editor da RA fala em hipocrisia minha. Não foi. A verdadeira hipocrisia quer ocultar; a «hipocrisia» que usei foi um artifício de retórica para não dizer tão duramente o que tinha de ser dito. 3. Quanto às minhas «mentiras», nunca tolerei a mentira. Só posso ter mentido por engano, esquecimento ou compaixão. a) O editor da RA disse-me de facto que a Gradiva era o seu modelo de editora. Suponho que o terá dito a mais alguém. Foi há muitos anos, é natural ter-se esquecido; b) Ainda bem que me enganei na suposição de fragilidade da RA (a propósito: o "GV merecia pelo menos estar falido» arrepia); c) E escrevi «nunca "revelou" -- revelou --) um autor de mérito, mas estava a pensar na ficção. Devia ter verificado ou, nunca, não generalizar. 4. A edição da Ideia de Europa de Steiner «pode agora ser lida sem esse incómodo lastro de subserviência ao poder». Isto que escreveu sobre essa edição da Gradiva com prefácio do então presidente da CE, o que insinuou ou afirmou sobre nós, a ressonância inquietante subjacente na apreciação pelo menos implícita da pessoa de Durão Barroso, foi para mim o mais grave. Acontece que a sugestão de publicar esse belo livro de Steiner veio do próprio DB. (Não deixem de ler, agora na edição da RA. ) Não é pelas opções políticas que assuma que alguém deixa de poder ser culto e leitor com um largo espectro de interesses. O prefácio justificava-se especialmente no momento, por ser registo de uma circunstância histórica relevante para Portugal. A sua inclusão -- CLARO! -- foi aprovada por Steiner, que não subscreveria, estou certo, nem o conteúdo nem os termos do que o editor da RA escreveu. Não há blasfémia na Democracia. Todos têm o direito — que exige a simetria — de criticar todas as ideias, convicções, religiões e crenças. De não gostar do que outro pensa ou vai pensando, mas não de lho colar à pele. Isso chama-se ódio. E é para mim, de algum modo, uma manifestação de «racismo» ideológico, também repulsivo (no caso certamente inadvertido). A propósito, porventura, depois das lições de uma História de milénios, quando nem na física se pode afirmar nada de definitivo sobre nada, como é possível ser intolerante, ofender, discriminar, odiar ou até matar em nome de uma ideia? Criei a Gradiva para promover o debate de ideias de que Portugal tanto carece. Por isso entendemos promover o espírito científico, através dos livros de cultura científica, mas também em todas as outras áreas de conhecimento. Na Gradiva tentamos para isso isso exercitar uma tolerância e espírito de abertura estelares. Se o fazemos pior ou melhor é outra questão. Nenhum dos livros que foram editados pela Gradiva, mesmo aqueles de cujas ideias discordo, julguei poderem colidir com esse projecto crítico e plural. Pelo contrário, considerei ou admiti que todos o realizavam. O resto da «resposta» do editor da RA, mesmo não sendo urbano, é... compreensível, desculpável. Mesmo a prestidigitação dirigida à suposta ignorância de leigos no ofício. 5. «A RA excluiu do seu catálogo a paraliteratura», afirmou (com uma intenção pelo menos nada elegante). Lamento que não tenha querido entrar nesse debate que tentei suscitar: o que é a literatura? E «paraliteratura»? Este sim, um debate relevante, que poderia ser interessante para os leitores do DN. Finalmente, peço desculpa por ter escrito que o editor da RA afirmara não ter tido sucesso como escritor. Tendo sido o seu nascimento como tal registado no Expresso, como contou, nasceu mesmo! O que, tendo presente a leitura deficiente que fez da minha defesa, me permite a picardia inocente de dizer que deve, então, saber escrever bem melhor do que parece saber ler. E agradeço, claro, o interesse com que continua a seguir o trabalho da Gradiva, nomeadamente a observação dos nossos pavilhões na Feira do Livro. Queremos tentar fazer ainda melhor. Esteja atento ao que editaremos em Set./Out./Nov. Com dois novos livros de JRS, ainda melhor construídos e escritos, cada um no seu género. Tentarei, naturalmente, ir esquecendo este episódio lamentável, que preferia não tivesse acontecido. Guilherme Valente
sábado, 9 de setembro de 2017
O EDITOR DA RELÓGIO DE ÁGUA EM TODO O SEU ESPLENDOR
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