quarta-feira, 5 de setembro de 2018

NOS PAÍSES BAIXOS


Minha crónica no Público de hoje (na imagem, o Museu Marítimo Nacional (Het Scheepvaartmuseum)  em Amesterdão com uma nau da Companhia Holandesa das Índias Orientais de 1749 (réplica):


Um português em turismo nos Países Baixos não pode deixar de dar uma volta de barco pelo labirinto dos canais de Amesterdão, ligados ao rio Amstel. Farid, o “capitão-guia” da minha embarcação, era euroafricano, de pai holandês e mãe marroquina. Ao passar perto da réplica do navio da Companhia das Índias Orientais (a VOC), que é a atracção maior do Museu Marítimo Nacional, falou, com indiscutível orgulho, da “idade de ouro” da Holanda, na primeira metade do século XVII, quando continuou o caminho da globalização que tinha sido iniciado pelos portugueses. E despachou o tema da escravatura, comentando que foi uma página negra de uma história muito rica. Nós temos em Almada uma reconstrução do último navio da carreira da Índia, mas fiquei a pensar na falta que nos faz um museu das descobertas e semelhante ausência de complexos em relação a um passado, que foi o que foi, sem que possamos interferir. Marcas da primitiva globalização estão por todo o lado na grande metrópole holandesa, seja na toponímia (por exemplo, a Praça de Suriname), seja na restauração (por exemplo, a gastronomia indonésia).

O viajante luso não podia deixar de visitar a Sinagoga Portuguesa de Amesterdão. Foi mandada construir em 1670 pela comunidade sefardita portuguesa na que é hoje a Mr. Visserplein (Praça do Sr. Visser, um juiz que defendeu os judeus na Segunda Guerra Mundial). Perto, na Sint Antoniesbreesstraat (Rua Larga de Santo António), fica a Huis de Pinto, a casa de Isaac de Pinto (1717-1787), um rico judeu português, accionista da VOC, economista e filósofo.  Karl Marx, que está a fazer 200 anos, cita Pinto no Capital para criticar o liberalismo económico.

Não se pode falar dos judeus holandeses sem nomear o filósofo Bento de Espinosa (1632-1677), que era filho de um mercador expulso de Portugal pela intolerância religiosa. Espinosa nasceu e viveu em Amesterdão, mas foi banido da Sinagoga Portuguesa em 1656, tendo de abandonar a cidade. O chérem que sofreu é a punição máxima da religião judaica, mas, de início, nada fazia prever a heresia. Aprendeu o cânone hebraico, preparando-se para ser rabi. Conheceu aos 14 anos o Padre António Vieira, quando este visitou a comunidade portuguesa de Amesterdão. O abandono da tradição religiosa familiar deveu-se à sedução pelas ideias de Descartes (quando Espinosa nasceu, Descartes vivia em Amesterdão). Não admira, portanto, que na sua Ética a moral seja tratada no estilo da geometria cartesiana. Além de filosofar, Espinosa polia lentes para telescópios e microscópios, numa terra que viu nascer esses instrumentos. Morreu de doença pulmonar associada à poeira do vidro e está sepultado em Haia, que o homenageou com uma estátua no centro histórico. Ramalho Ortigão escreveu em A Holanda: “Quem nos dissesse no século XVI que o obscuro e desprezível judeu, pai de Espinosa, ao emigrar de Lisboa nos arrebatava uma riqueza comparável à dos imensos territórios do país brasileiro teria o ar de um utopista em delírio”. Mas foi mesmo assim: “Espinosa, tornado holandês pela intolerância do nosso despotismo católico, funda no país a que o rejeitámos as bases de um novo critério que põe a Holanda à frente de todo o grande movimento filosófico do mundo moderno.”

Sobre o Brasil: no coração de Haia está a casa de João Maurício de Nassau (1604-1679), de cognome “O Brasileiro” por ter sido governador de Pernambuco, a “Nova Holanda”. Ao serviço da Companhia das Índias Ocidentais (a WIC), edificou o Recife à maneira holandesa. Foi ele que, depois de ter tentado tomar a Bahia, enfrentou uma poderosa armada luso-hispânica em 1639. Em 1640 Vieira pregou na Bahia o Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda, onde ameaçava deixar Deus se ele deixasse os portugueses. Como é sabido, Deus não deixou os portugueses. Em 1641 foi celebrado um primeiro tratado de paz em Haia entre a Holanda e Portugal, que conduziria a outro, ainda em Haia, vinte anos depois, pelo que João Maurício não tardou a regressar a casa. Hoje o turista pode ir, na capital holandesa, à Mauritshuis, que alberga um belo museu. É lá que pode ver a obra maior de Vermeer, Rapariga com o Brinco de Pérola, de 1665. A rapariga, cujo brinco resultou de duas breves mas geniais pinceladas, vale por si só uma visita à Holanda.



2 comentários:

Anónimo disse...

Os holandeses dos nossos dias, muito ricos, educados e cultos, devem uma grande parte do seu desenvolvimento socioeconómico à rapinagem das populações e territórios portugueses ultramarinos, levada a cabo pelos seus antepassados hereges e piratas.
Nós demos novos mundos ao mundo, eles roubaram o mais que puderam!

Carlos Ricardo Soares disse...

Se os portugueses não estão interessados em reconhecer e aprofundar o fenómeno dos descobrimentos, ímpar empresa de pouca gente e de menos dinheiro, revolução tecnológica de viajar à volta do mundo pela força do vento, com caravelas e naus, que funcionaram, mas cujos princípios e técnicas de construção, em grande parte, ignoramos, tudo como se nada fosse, como é típico dos portugueses poetas e sonhadores, que o não eram apenas os Cães e os Gamas e os Dias e os Magalhães...Alguém, por amor à verdade (filósofo com certeza), de qualquer nacionalidade, projectará e projectar-se-á, esse momento único da história da humanidade, que sempre fará sonhar quem o estudar.

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