quarta-feira, 18 de setembro de 2024

FRANCISCO D’OLLANDA

Por A. Galopim de Carvalho

Francisco de Holanda (1517-1585) foi uma das maiores figuras do Humanismo, um vanguardista apaixonado pela arte da Antiguidade Clássica e um dos mais ilustres tratadistas no Renascimento Europeu. Foi pintor e desenhador, arquitecto, ensaísta, historiador de arte e um dos primeiros e maiores críticos de arte da Europa do seu tempo. Francisco foi isto tudo a um elevado nível de excelência. Filho de um virtuoso iluminista muito próximo da Corte, começou por ser, como o pai, um profissional da iluminura, arte que considerava “soprada por Deus”.
 
A pintura foi de todas as artes a mais desenvolvida e a que atingiu maior projeção entre nós, durante este período. Ainda predominantemente religiosa, a pintura começou a ter por clientela, não só o clero, mas alguns nobres e burgueses mais endinheirados. Executada, geralmente, sobre madeira de carvalho. A pintura destinada à clientela fora da igreja constava, maioritariamente de pequenos altares portáteis. A destinada aos altares das igrejas consistia em grandes retábulos ou painéis isolados ou múltiplos, passíveis de serem dobrados em duas, três ou mais partes, respectivamente conhecidos por dípticos, trípticos e polípticos.

Após o terrível terramoto de 1531, D, Manuel II transferiu a corte para o palácio, em Évora e, aí, o jovem Francisco, com 14 a 15 anos, foi moço de câmara do seu filho mais velho, D. Afonso, e beneficiou da proteção da sua esposa, que lhe possibilitou receber, ao lado dos infantes, a melhor educação, na escola criada por mestre dominicano André de Resende. Grande ideólogo do Humanismo e do Renascimento, doutorado em Salamanca, Resende apercebeu-se das capacidades extraordinárias do jovem e encaminhou-o para uma estadia em Roma, como bolseiro da Coroa, a fim de prosseguir a sua formação.

O século XVI foi, em Portugal, um tempo de absorção do Humanismo renascentista. A Corte teve papel importante nessa realidade, mandando vir, de Itália, humanistas credenciados, para a educação dos príncipes e promovendo a circulação de bolseiros portugueses pelos principais centros da cultura europeia de então. Francisco beneficiou desta política e, entre 1538 e 1540, frequentou o círculo de Vittoria Colonna, marquesa de Pescara, poetisa e personagem notável do Renascimento italiano, onde se relacionou com a elite dos pensadores e artistas europeus do século XVI, entre os quais o grande Miguel Ângelo, que despertou nele o fervor pelo Classicismo e de quem se fez fervoroso discípulo. 
 
Foram dois anos intensos a conviver com os grandes intelectuais do Renascimento europeu e a conhecer os maiores artistas desse século. Francisco foi ali testemunha privilegiada do trabalho dos mestres do seu tempo, e dos do passado, da arte italiana que se estava a produzir e da que se produziu no Mundo Antigo que tanto admirava.

Regressado a Lisboa, continuou a beneficiar da protecção de D. Manuel I. Com pouco mais de vinte anos, iniciou, na corte deste monarca, o “período dourado da sua vida”, cerca de duas décadas, como cortesão, escudeiro e fidalgo, artista reconhecido e intelectual escutado. Pelos muitos desenhos que foi esboçando na sua estadia em Itália, Francisco revelou-se, logo aí, um virtuoso na ilustração de "Antiguidades de Itália", importante manual para o estudo do património arqueológico da Roma antiga e da arte italiana, na primeira metade do século XVI
 
Foi nesta fase, no auge da intensa criatividade. que produziu o tratado “Da Pintura Antiga”, a primeira grande obra escrita, de que se serviu para valorizar a pintura, como trabalho intelectual, e introduzir o neoplatonismo na Teoria da Arte, ideias que foram recuperadas pelos italianos, meio século mais tarde. 
 
Este importante tratado, que dedicou ao monarca, concluído em 1549, só foi publicado no século XIX. Consta de duas partes, a primeira trata de todos os géneros e modos de pintar; a segunda, intitulada “Diálogos de Roma”, tem Miguel Ângelo por interlocutor. A sua paixão pelo Classicismo está patente neste seu tratado, no qual podemos conhecer o essencial da obra do grande artista italiano e da generalidade da arte que se produzia em Roma no segundo quartel do século XVI. Foi neste tratado que se tornou possível identificar a obra de Nuno Gonçalves. Este trabalho é ainda importante para o conhecimento e apreciação da pintura da época O respectivo manuscrito, o original, levado para Espanha por um dos Filipes, é hoje propriedade da Real Biblioteca de Madrid.

“Da Pintura Antiga” é considerado como o seu trabalho de maior consistência teórica, onde é visível a influência da obra do humanista, arquitecto, e teórico de arte genovês, Leon Battista Alberti (1404-1472). Eivado de um misticismo doentio e mergulhado nos ideais filosóficos do neoplatonismo florentino, Francisco foi também fortemente influenciado pela obra “Da Hierarquia Celeste”, do teólogo cristão e filósofo neoplatónico, Dionísio, o Areopagita, onde se diz que o artista, desde que se mantenha em pureza, qual um sacerdote, tem o privilégio de expressar, com formas visíveis, as imagens de entidades invisíveis, como os anjos ou o próprio Deus. 
 
Francisco afirmava que o pintor se baseia em ideias sublimes, algo divinas, subjacentes à criação artística. Neste tratado, há uma divinização do artista, cuja obra é vista como uma criação de Deus. Deus que ele dizia ser o primeiro pintor. Como apêndice a este tratado, “Do Tirar Polo Natural”, é o primeiro estudo europeu sobre o retrato. Imbuído do ideal estético do Renascimento, Francisco afirmava que o objectivo primordial do artista era o de “incentivar a sua íntima originalidade, e depois seguir a lição da natureza, entendida como puro espelho do Criador.

Entre as suas principais obras, “Os desenhos das Antigualhas que vio Francisco d’Ollanda, pintor português”, com desenhos e aquarelas feitos em Roma, entre 1539 e 1540, é um precioso códice versando a arquitectura, a escultura, os jardins, as fontes e os costumes populares. Outro importante trabalho que realizou, entre 1540 e 1547, foi “Antiguidades de Itália", uma série de desenhos que põem em evidência a sua grande versatilidade intelectual, valioso contributo para o estudo do património arqueológico romano e da arte italiana da primeira metade do século XVI. 
 
Entre 1543 e 1573, desenhou “De Aetatibus Mundi Imagines”, um códice com representações espiritualizadas, animadas, com aparências oníricas e flutuantes e grande quantidade de abstrações. Aqui, ele, não só concretiza os princípios que enuncia teoricamente em “Da Pintura Antiga”, como transmite a mensagem bíblica, usando todo um conjunto de imagens visuais com sentido doutrinal, fruto da sua própria reflexão, devoção e experiência contemplativa. 
 
“Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa” (1571) é um seu estudo pioneiro sobre o que falta à cidade de Lisboa, em termos de organização urbana, dedicado a D. Sebastião. É o primeiro ensaio sobre urbanismo publicado na Península Ibérica. Tem considerações inovadoras e muito inteligentes acerca deste problema nesta velha cidade, com projetos de melhoria. Nele, Francisco pretendeu, em vão, chamar a atenção do rei, mas a sua importância na Corte estava já muito apagada. 
 
A meio do mandato de D. Manuel I, por volta de 1545, Francisco começou a trabalhar naquela que foi a sua obra maior, um códice de imagens sobre a Criação do Mundo. Nos desenhos e nas pinturas que aqui nos deixou, ele, como se tem dito, “imitava-se a si próprio”. Aqui ele procurou tornar visíveis as suas convicções e teve, como também se tem dito, “a audácia de propor algo completamente diferente”. Este trabalho, de desconcertante originalidade, só ficou concluído em 1584, pouco antes de deixar este mundo.

Após quase quarenta anos de trabalho e já sem o apoio de D. Manuel, Francisco de Holanda perdeu importância, viu-se afastado da Corte e passou a ser alvo do olho censório da Inquisição. Por exemplo, em “Da ciência do desenho”, concluído em 1549), a Santa Sé corrigiu-lhe, as ideias vanguardistas.

Como Arquitecto militar, desenhou, em 1541, a planta para fortaleza de Mazagão, em Marrocos.

Nota: Areopagita era a qualificação dada aos membros do Areópago, antigo tribunal ateniense, conhecido pela imparcialidade e honestidade com que operava a justiça, cujas reuniões aconteciam a céu aberto na coluna dedicada a Marte, a noroeste da Acrópole, em Atenas.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

APRESENTAÇÃO DESTE LIVRO NAS CONVERSAS ALMEDINA NA LIVRARIA ALMEDINA ESTÁDIO EN COIMBRA A 18/9, 18 H

 


AO ROMPER DA AURORA

 Meu artigo no As Artes entre as Letras:

 Ao Romper da Aurora, expressão que me lembra o início da letras de uma canção popular da Brigada Victor Jara (“Ao romper da bela aurora, vem o pastor da choupana…»), é o mais recente título de um livro do Professor António Marcos Galopim de Carvalho (n. Évora, 1931), que saiu, tal como a maioria dos outros seus livros, na Âncora, em Lisboa, a editora dirigida por António Baptista Lopes.

Todos já ouviram falar do Prof. Galopim de Carvalho, por vezes tratado apenas por Prof. Galopim, ou, com carinho, por «avô dos dinossauros». O seu nome ficou indelevelmente ligado a uma grande exposição de dinossauros realizada em 1993 no Museu Nacional de História Natural, quando ele era director dessa instituição. Há até uma escola que ostenta com orgulho o seu nome. Mas menos pessoas terão lido os seus livros. Não sabem o que perdem.

Encontrei 134 títulos de obras da sua autoria no catálogo da Biblioteca Nacional (alguns naturalmente reedições). O mais antigo são as Notas de Mineralogia e Petrografia Portuguesa, escritas a meias com Maria de Lurdes Ubaldo e Ricardo Quadrado, saído no Porto no já recuado ano de 1954 (ainda eu não tinha nascido!). O mesmo catálogo permitiu-me saber que, no presente ano, já saiu, para além do livro mencionado logo a abrir, a 3.ª edição de Com Coentros e Conversas à Mistura, a 4.ª edição de O Avô e os Netos Falam de Geologia, e o livro de Ligório Manuel Silva, Praias – Maravilhas de Portugal (no Centro Atlântico), que tem um prólogo seu. O professor, com 93 anos, jubilado em 2001 do seu lugar de catedrático na Faculdade de Ciências na Universidade de Lisboa, continua em grande forma a aumentar a sua lista bibliográfica. E continua a fazer palestras. O El Corte Inglês de Lisboa, no Âmbito Cultural, anunciou um conjunto de lições suas para breve. Tenho tido o gosto de acompanhar a sua extraordinária actividade de divulgação científica: ele é, salvo erro, o decano dessa actividade em Portugal. Devido à grande admiração e estima que tenho por ele, não hesito quando me pede prefácios. Já fiz quatro: Conversas com os Reis de Portugal (2013), As Pedras e as Palavras. Mestre das Pedras e das Palavras (2015),  Geologia e Geografia na Toponímia de Portugal (2022), e Como Bola Colorida: a Terra, Património da Humanidade», publicado originalmente em 2007 e reeditado em 2024, que contém um outro prefácio do saudoso José Mariano Gago.

A obra de Galopim de Carvalho é, além de muito numerosa., muito variada, desde obras estritamente científicas, até obras sobre dinossauros (Dinosáurios: uma Nova Visão, 2002), livros de divulgação da Ciências da Terra, como aqueles para os quais escrevi os prefácios, livros infanto-juvenis (Contos da Dona Terra, em co-autoria, Planeta Tangerina, 2008, traduzido para castelhano), manuais escolares, um Dicionário de Geologia, livros de historias de base auto-biográfica (O Cheiro da Madeira, 3.ª edição, 2002; Fora de Portas: Memórias e Reflexões, 2008; O Preço da Borrega, 2.ª ed., 2010; Évora, Anos 30 e 40, 2021) e até livros de cozinha, pois o Professor gosta de preparar pitéus (Açordas, Migas e Conversas, 1.ª edição, 2018; Com Poejos e Outras Ervas, 2.ª edição, 2022). 

O seu livro mais recente tem dois prefácios dos seus dois filhos: o jornalista especializado em música Nuno Galopim de Carvalho e o gemólogo (uma profissão mais aparentada à do pai) Rui Galopim de Carvalho. O primeiro prefácio intitula-se «Acordar com letras a saírem»  e o segundo «É do meu pai que vou falar». O autor escreveu uma nota de abertura, que intitulou «À guisa de introdução», que sumaria a sua vida e explica o seu objectivo com os escritos agora reunidos. 

Os textos do Prof. Galopim estão dividas em capítulos: «Em família», «Um mar de experiências», «Pessoas», «Sociedade», «Filosofia, religião e arte, e «Escola pública». Os textos, em geral pequenos, que ele escreveu de madrugada, como ele próprio afirma e os filhos testemunham, pois gosta de se levantar da cama muito cedo e ir para o computador ler e escrever, foram publicados no Facebook ou noutros sítios da Internet (o livro é, aliás, dedicado aos leitores do Facebook e dos blogues) e tratam dos mais variados assuntos, como os nomes dos capítulos sugerem. Tratam da ciência e da vida, sempre numa prosa clara. Antes estavam apenas on-line, mas agora ficaram fixados em papel à disposição dos felizes possuidores do livro, entre os quais me incluo.

Não resistindo a dar um sabor da pena do Prof. Galopim, transcrevo o início do último texto, «Escola Pública», exprimindo uma opinião que é relevante salientar no regresso às aulas que as escolas estão a viver:

«Começo por reafirmar, o que já aqui escrevi muitas vezes, que considero os professores, incluindo educadores, entre os mais importantes pilares da sociedade e, uma vez mais, que é necessário e urgente conferir-lhes o estatuto, a atenção e a dignidade compatível com essa importância.»

O Professor mantém participação das redes sociais, prolongando a sua acção muito para além da escola. Ele tem feito o que pode para alargar o seu raio de acção. Em particular, tem alimentado o blogue, que mantenho há muitos anos, em colaboração com outros colegas (em especial, a Helena Damião, professora de Ciências de Educação da Universidade de Coimbra), que se intitula De Rerum Natura («Sobre a Natureza das Coisas»), tomado do célebre poema latino de Lucrécio do século I. O Professor está sempre a mandar-nos textos. Agradeço-lhe por isso. Continua, por favor, a mandar-nos a sua prosa, pois será sinal de que a sua inteligência continua não apenas ao seu serviço, mas também ao nosso.

OS 50 ANOS MAIS RECENTES DA GAZETA DE FÍSICA

 Meu artigo na Gazeta de Física (número especial de aniversário):

A «Gazeta de Física», fundada em 1946 por Armando Gibert, vai no volume 46 (normalmente saem quatro fascículos por volume, sendo este anual, embora dois fascículos surjam, por vezes, agrupados). Todos os volumes podem ser consultados no sítio da revista: http://spf.pt/magazines/gfis. 

Até Abril de 1974, durante 28 anos, saíram cinco volumes, pelo que depois dessa data saíram os restantes 41 volumes. Curiosamente, o último fascículo, o n.º 9 do vol. 5 (os volumes tinham, então, mais fascículos do que actualmente) ostenta a data de Abril de 1974, mas foi preparado antes da Revolução, pois não há qualquer menção à mudança política no país. 

A revista, subsidiada pelo Instituto de Alta Cultura e pela Junta de Energia Nuclear, era propriedade da Gazeta de Matemática Lda. A sede ainda era no mesmo sítio do número inicial: o Laboratório de Física da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. A composição e impressão eram na Tipografia Matemática Lda., em Lisboa. Havia, em vez de um director, uma Comissão de Redacção, onde ainda perduravam dois nomes da comissão de 1946: Rómulo de Carvalho (1906-1996) e Lídia Salgueiro (1917-2009), o primeiro professor do Liceu Pedro Nunes e a segunda professora da Faculdade de Ciências de Lisboa. Os outros redactores no número de 1974 eram José Gomes Ferreira, Fernando Bragança Gil, João Sousa Lopes, Maria Teresa Gonçalves, Frederico Gama Carvalho (filho de Rómulo de Carvalho), Rui Namorado Rosa, José Carvalho Soares, João Bessa e Sousa, e Mário Trigueiros.

Num tempo politicamente tumultuoso, a Gazeta conheceu uma pausa entre 1974 e 1978, mas, em Fevereiro de 1978, regressou, com o grafismo alterado. A capa do fasc. 1 do vol. 6 mostrava a medalha da Sociedade Portuguesa de Física (SPF) que tinha servido para assinalar a 1.ª Conferência Nacional de Física, realizada em 23 e 24 de Fevereiro de 1978 na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa. 

No editorial assinado por Fernando Bragança Gil (1927-2009 ), professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e então secretário-geral da« SPF (foi o primeiro a ocupar esse cargo),  dava-se conta da aquisição da revista aos anteriores proprietários,« passando a Gazeta a ser o órgão da SPF, criada um pouco  antes de 25 de Abril de 1974 com sede na Avenida da República, 37-4.º, em Lisboa. Bragança Gil dizia aí, lembrando a herança de «cinco volumes com um total de 1400 páginas que 

«a Gazeta de Física constituiu uma das primeiras publicações periódicas, a nível mundial, exclusivamente dedicada ao ensino e à divulgação da Física». 

Reafirmava a política anterior de ser uma revista de divulgação da Física e de apoio ao seu ensino, e não uma revista de divulgação de trabalhos originais de investigação: 

«O seu nível mais elevado alcança a classe dos professores do ensino médio e a dos estudantes universitários dos anos mais adiantados. Ocupa-se da divulgação dos conhecimentos da Física, ou com ela relacionados, da meditação sobre os conceitos em que essa ciência se fundamenta e dos problemas do seu ensino.» 

Mais afirma que ia naturalmente passar a noticiar a actividade da SPF. Tinha sido designado director da revista João Sousa Lopes, secretário-geral adjunto. Como que marcando a continuidade, o novo número abria com um artigo de Lídia Salgueiro, sobre Manuel Valadares (1904-1982) 

«[1], um dos físicos banidos do ensino e da investigação pelo Estado Novo, tal como Armando Gibert (1914-1985), pela purga de 1947. A autora lembrava que Valadares, para além de ter estado na origem da Portugaliae Physica, a revista científica de física criada há 80 anos [2] que, tal como a Gazeta, passou para a SPF quando esta foi criada, «com o seu entusiasmo contribuiu também para a fundação da revista Gazeta de Física.»

A história do início e desenvolvimento inicial da Gazeta, a «revista dos estudantes de física e dos físicos e técnicos-físicos portugueses», já foi contada na própria revista [3-4]. Têm de ser consideradas extraordinárias a iniciativa e a persistência dos fundadores – além do mentor Armando Gibert e dos já referidos Lídia Salgueiro e Rómulo de Carvalho, também Jaime Xavier de Brito (1893-1960), professor liceal, arrancarem e prosseguirem com o projecto editorial. 

Para além da ajuda dos seus colegas da Gazeta de Matemática, fundada em 1939, e em boa medida inspiradora, valeu a Gibert e seus companheiros a angariação de anúncios. Gibert viu a reclamação que interpôs contra o seu afastamento ser atendida, mas esperou e desesperou pelo reconhecimento da tese de doutoramento que tinha defendido  na Escola Politécnica de Zurique (ETH), sob a orientação de Paul Scherrer, o famoso físico nuclear suíço. Só em 1974, o seu título de doutor foi reconhecido e ele pôde ser contratado como professor universitário. Quando Gibert faleceu, Lídia Salgueiro escreveu um obituário de Gibert, no fasc. 4 do vol. 8 (1985) [5]. Em 2007, saíram na Gazeta dois artigos recordando Gilbert, um de Júlia Gaspar e outro da mesma autora e de Ana Simões [6-7].

Entre 1978 e 2024 passaram 46 anos, tantos quantos os volumes da Gazeta, o que dá conta da regularidade da revista, ao contrário do que, por várias razões (desde logo a falta de apoios materiais), aconteceu nos 28 anos anteriores. A publicação da revista reflecte bem a vitalidade da física e dos físicos em Portugal, que foi crescendo com a expansão da ciência em Portugal nas últimas três décadas.

Regista-se aqui o nome de todos os directores da Gazeta de Física após 1974, todos eles professores de Física de instituições universitárias portuguesas, que asseguraram a regularidade da revista:

- João Sousa Lopes, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que entrou, como foi dito no fasc. 1 do vol. 6 (1978) e só dirigiu dois fascículos.

- Carlos Sá Furtado, da Faculdade de Ciências e Tecnologia« da Universidade de Coimbra, que entrou no fasc. 3-4 do vol. 6 (1979), como anunciava o editorial de Henrique Machado Jorge, então secretário-geral da SPF, que noticiou também a formação de uma Comissão Redactorial «activa e participante» com sete nomes de docentes do ensino secundário e superior de Lisboa, Coimbra e Porto.

- Filipe Duarte Santos, da Faculdade de Ciências de Lisboa, novo secretário-geral da SPF, que entrou com o fasc. 3-4 do vol. 7 (1984), assessorado por uma Comissão de Redação renovada, agora só com docentes do ensino superior. Com esse número a revista voltou a ter um design de capa mais parecido com o que tinha vigorado entre 1946 e 1974.

- João Bessa e Sousa, da Faculdade de Ciências da Universidade« do Porto, que entrou como codirector com Filipe Duarte Santos no fasc. 2 do vol. 13 (1990), que indica uma Comissão de Redacção e Administração com novos nomes.

- Carlos Fiolhais, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, que se juntou a João Bessa e Sousa e a Filipe Duarte Santos a partir do fasc. 4 do vol. 15 (1992). A

Comissão de Redacção e Administração tinha oito nomes. A partir do fasc. 1 do vol. 16 (1993) a revista sofreu uma profunda remodelação gráfica, mudando o logotipo, passando a capa de vermelho para azul e aumentando o tamanho. A Comissão de Redacção e Administração limitava-se agora a quatro nomes, dos corpos gerentes da SPF. O editorial dizia que se procurava« «corresponder às crescentes exigências colocadas à SPF 

«na sociedade portuguesa, nomeadamente no campo da divulgação científica, contribuindo para uma crescente tomada de consciência colectiva sobre o papel essencial desempenhado pela Física nos mais variados domínios da actividade humana.» 

Como nota de irreverência, a capa ostentava a famosa fotografia de Einstein com a língua de fora. E, como sinal de continuidade, publicava-se uma entrevista com Rómulo de Carvalho [8].

- Carlos Fiolhais e João Bessa e Sousa, que foram codirectores a partir do fasc. 1 do vol. 20 (1997), dedicado aos 50 anos da Gazeta de Física. O artigo inicial é de Lídia Salgueiro, sobre o início da Gazeta, em que lembrava esses anos difíceis [3]. Uma boa parte desse número era dedicada a Rómulo de Carvalho.

- João Bessa e Sousa, que foi director único da Gazeta a partir do fasc. 2-3 do vol. 20 (1997). Registou-se uma mudança da cor da capa no fasc. 1 do vol. 21, de azul para verde, que durou cinco fascículos.

- Carlos Fiolhais, que foi director único da Gazeta desde o fasc. 2 do vol. 22 (1999). Passou a haver três correspondentes, em Lisboa, Coimbra e Porto, em vez de uma Comissão de Redacção.

Passou então a exercer as funções de editor Carlos Pessoa, jornalista do Público, e a responsabilidade pelo grafismo passou ser da Lupa Design, empresa da artista Danuta Wojciechowska.

O grafismo da Lupa durou sete números, sendo substituído pelo da empresa Mediaprimer a partir do fasc. 2 do vol. 24 (2001). O editorial, escrito pelo novo director, prometia não só «continuar uma tradição riquíssima de meio século de publicação ao serviço da Física» mas também incluir uma maior variedade de assuntos, como entrevistas (saiu nesse número uma de Alain Aspect, Nobel da Física de 2022, num exclusivo Science et Vie / Gazeta de Física) e páginas de opinião. A partir do fasc. 2 do vol. 27 (2004) Constança Providência e Lucília Brito passaram a ser directoras adjuntas. Cessou no fasc. 4 do vol. 27 (2004) a colaboração de Carlos Pessoa, substituído pela jornalista Paula Almeida, que, por sua vez, cessaria a sua colaboração com o fasc. 4 do vol. 29 (2006).

- Teresa Peña, do Instituto Superior Técnico, que começou a dirigir a revista a partir do fasc. 3-4 do vol. 30 (2007), assessorada por Gonçalo Figueira, Carlos Herdeiro, Filipe Moura e Yasser Omar. Mudou nessa altura o logotipo e o design, que passou a ser da Dossier, Comunicação e Imagem. Passaram a ser colunistas Jim Al-Khalili (investigador inglês, que assim dava um toque internacional à revista), Carlos Fiolhais, Constança Providência e Ana Simões. Foi nessa altura que se consolidou a edição on-line da revista, criando-se um arquivo digital completo. Foi nesse número que se lembrou o fundador da revista em dois artigos [6-7].

- Gonçalo Figueira, do Instituto Superior Técnico, que passou a ser o director no fasc. 1 do vol. 36 (2013), assessorado por Carlos Herdeiro e Filipe Moura, atendendo ao facto de Teresa Peña ter assumido as funções de presidente da SPF.

- Bernardo Almeida, da Universidade do Minho, que passou a ser director no fasc. 1 do vol. 41 (2018), funções que continua a exercer actualmente. Na equipa que o assessorava era constituída por Francisco Macedo, Nuno Peres, Filipe Moura e Olivier Pellegrino, existindo ainda uma numerosa comissão editorial, que integrava, entre outros nomes, os antigos directores Gonçalo Figueira, Teresa Peña e Carlos Fiolhais. Continuaram a existir três correspondentes regionais. O design desse número era da Fid’algo, que tinha substituído a Dossier a partir do fasc. 1 do vol. 38 (2015). O actual design gráfico é da DR Absolut Graphic Lda.

A Gazeta de Física tem publicado artigos de divulgação científica, pedagógica e histórica das mais diversas áreas da Física, entrevistas com físicos de nomeada (alguns deles prémios Nobel), notícias nacionais e internacionais da física, ampla informação sobre as Olimpíadas Nacionais e Internacionais de Física, recensões de livros e artigos de opinião. A Gazeta publicou, entre 1978 e hoje, alguns números especiais:

- fasc. 1, vol. 13 (1990) «Física em Portugal. Uma abordagem da situação actual»;
- fasc. 1, vol. 20 (1977), «50 anos da Gazeta de Física»;
- fasc 3, vol. 29 (2006), «À luz de Einstein»;
- fasc. 2-3, vol. 32 (2009), «Ano Internacional da Astronomia»;
- fasc. 3-4, vol. 33 (2010), «Física aplicada à biologia e à medicina.
- fasc. 1, vol. 34 (2011), «Lasers e aplicações»;
- fasc. 2, vol. 34 (2011), «História e protagonistas da física em Portugal no século XX»;
- fasc. 1-2, vol. 39 (2016), «Ano Internacional da Luz»;
- fasc. 3-4, vol. 40 (2018), «A física da Terra»;
- fasc. 2, vol. 42 (2019), «Einstein, Eddington e o Eclipse»;
- fasc. 1, vol. 43 (2020), «A física dos oceanos»;
- fasc. 2-3, vol. 44, (2021), «Buracos Negros»;
- fasc. 1-2, vol. 45, (2022), «A física do clima»;
- fasc. 1, vol. 47, (2024), «Manuel Valadares».

Em 2003 saiu como anexo o «Relatório-Síntese Global da Avaliação Externa dos Cursos de Ciência Física», redigido por uma comissão presidida por Filipe Duarte Santos.

Merecem também referência, para além dos directores, redactores, correspondentes e gráficos, que ajudaram a fazer a Gazeta de Física nos últimos 50 anos, e nem todos aqui nomeados, as funções de secretariado desempenhadas por Maria José Couceiro, em Lisboa, Florbela Teixeira, no Porto, e Carolina Borges Simões e Cristina Silva, em Coimbra. E, claro, as instituições que apoiaram financeiramente a revista, como a Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

Por último, vale a pena lembrar, por não terem perdido a actualidade, as palavras de Gibert que abriram o primeiro número da Gazeta de Física, em 1946, num artigo intitulado «Tribuna da Física,» que foram subscritas por toda a redacção:

«A Gazeta de Física tem por primeiro e grande objectivo contribuir activamente para o desenvolvimento e elevação dos estudos da Física em Portugal em todos os graus de ensino, assim como para o esclarecimento de um público mais vasto sobre a posição real da intervenção da Física na vida moderna e sobre a acção do nível científico dos físicos e técnico-físicos no ritmo e na independência do progresso industrial do nosso país.»

Referências

[1] L. Salgueiro, «Vida e obra de Manuel Valadares», Gazeta de Física, vol. 6 (1978) 2-12.
[2] C. Fiolhais, «Portugaliae Physica: A revista científica da Sociedade Portuguesa de Física», idem, vol. 46, fasc. 3 (2023).
[3] L. Salgueiro, «A epopeia do começo da Gazeta de Física», idem, vol. 20, fasc. 1 (1997), 3-5.
[4] A. Pereira e I. Serra, «A Gazeta de Física e a Física em Portugal», idem, vol. 21, fasc. 1 (1998), 7- 11.
[5] L. Salgueiro, «Armando Gibert (1914-1985)», idem, vol. 8, fasc. 4 (1985), 124-125.
[6] J. Gaspar, «Armando Carlos Gibert (1914-1985), o fundador da Gazeta de Física», idem, vol. 30, fasc. 2-3, 12-13.
[7] J. Gaspar e A. Simões, «A Recordar o Passado, a Pensar no Futuro: era uma vez uma Gazeta de Física», idem, vol. 30, fasc. 2-3, 14-16.
[8] C. Auretta e A.M. Nunes dos Santos, «Uma Conversa com Rómulo de Carvalho/ António Gedeão», idem, vol. 16, fasc. 1, 2-8.

RECOMENDAÇÕES DA TUTELA SOBRE O USO DE TELEMÓVEIS NAS ESCOLAS

O Ministério da Educação publicou no passado dia 13 um conjunto de "recomendações às escolas sobre uso de smartphones" (ver aqui). É um documento claro e muito completo, que traduz, substancialmente, a posição de vários países e de directores escolares que têm proibido ou restringido o uso de telemóveis pelos alunos, bem como a posição de organizações e grupos sociais que têm solicitado isso mesmo. Fundamenta a sua posição no essencial da investigação, digna de crédito, que tem sido publicada e que não deixa grande margem para dúvidas, pelo menos para já. Eis um extracto:

"A evidência internacional aponta para riscos do uso excessivo em vários domínios. Primeiro, na aprendizagem, prejudicando a capacidade de concentração das crianças e jovens. Segundo, na vida comunitária, favorecendo o isolamento em vez da partilha, da atividade física e da interação social. Terceiro, no bem-estar mental, potenciando situações de dependência, de ansiedade ou depressão, de falta de sono, entre outro tipo de problemas. São esses riscos que as recomendações propostas neste documento visam mitigar, em particular, em relação à utilização dos smartphones."

As escolas portuguesas, os directores e os professores, têm agora, nesta matéria, não só o respaldo da investigação mas também o respaldo da tutela para decidirem num determinado sentido, que terá de ser aquele que, a curto prazo, beneficia os alunos e, a mais longo prazo, beneficia o mundo.

Está, pois, nas suas mãos a decisão final quanto ao uso - particular e/ou "pedagógico" - de telemóveis em contexto escolar, sendo que daí decorre sempre uma responsabilidade.

Estendo este raciocínio aos "manuais digitais", esperando que o Ministério complemente as medidas que avançou com uma orientação semelhante a esta. 

Mas não posso deixar de perguntar: ao abrigo da autonomia da escola pública, não deveriam ter sido mais as escolas, todas as escolas, a fazer essa restrição, tanto para telemóveis como para manuais digitais? 

É que é impossível desconhecer perigos que lhes estão associados! Além de publicações técnicas, têm saído livros de divulgação de elevada qualidade, além de notícias e entrevistas divulgadas na comunicação social que, pelo menos, levantam a dúvida razoável. 

E, na dúvida razoável, não se avança! O que está em causa - a inteligência das novas gerações - é demasiado importante para se correrem riscos. Mesmo com a pressão da "inovação tecnológica", das autarquias, das empresas e, até, de "especialistas" - sobretudo da área tecnológica e pedagógica - que, muitas vezes, andam associadas.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

JANGADAS DE PEDRA

Por A. Galopim de Carvalho.
AOS PROFESSORES DE GEOLOGIA
Nota importante: Os conhecimentos mais recentes relativos à Teoria da Tectónica de Placas, rejeitam o essencial da explicação da movimentação das placas por efeito das correntes de convecção. Aceita-se hoje (e aqui está o essencial da nova visão da teoria) que: A PARTIR DO MOMENTO EM QUE GEOFÍSICOS E GEÓLOGOS GANHARAM CONSCIÊNCIA QUE A LITOSFERA ESTAVA FRAGMENTADA EM PLACAS, DEDUZIRAM QUE PODERIA SER O PRÓPRIO AFUNDAR DAS PLACAS NAS ZONAS DE SUBDUCÇÃO (COINCIDENTES COM A FOSSAS ABISSAIS) A CAUSAR O SEU MOVIMENTO. ISTO ACONTECE PORQUE, COM O PASSAR DOS MUITOS MILHÕES DE ANOS, AS PLACAS OCEÂNICAS VÃO FICANDO CADA VEZ MAIS FRIAS E, PORTANTO, MAIS DENSAS DO QUE O MANTO QUE ESTÁ POR BAIXO. JANGADAS DE PEDRA
 
(Do meu livro “Como Bola Colorida”. 2ª edição actualizada, Âncora, 2023)

De há muito que a quase justaposição dos contornos das costas atlânticas da África e da América do Sul despertou a atenção de alguns investigadores. Encarados como partes de um todo, estes dois continentes ter-se-iam separado e afastado entre si. Surgia, assim, a hipótese da deriva dos continentes, posteriormente formulada, em 1912, pelo alemão Alfred Wegener, na Teoria das Translações Continentais.

Esta nova visão global do planeta contradizia as ideias fixistas da época, além de que não apresentava explicação satisfatória relativamente às forças responsáveis pela movimentação dos continentes. Essencialmente mobilista, esta inovadora teoria, sem motor conhecido a suportá-la, foi abandonada por cerca de meio século, mantendo, contudo, o mérito de constituir uma antecipação à tectónica de placas, tal como hoje a concebemos.

Deve-se a este meteorologista, com uma sólida formação geológica, a concepção da Pangea, como único supercontinente, rodeado pelo também único oceano, a que se dá o nome de Pantalassa. Para o autor, este supercontinente começou a fragmentar-se a partir do final do Paleozóico, tendo os blocos resultantes dessa rotura, ou seja, os actuais continentes, migrado para as posições que ocupam. Para além da quase justaposição dos contornos das costas ocidental de África e oriental da América do Sul, a Teoria das Translações Continentais era sustentada por outros argumentos, sendo de destacar as grandes semelhanças geológicas e paleontológicas entre os continentes do hemisfério sul (América do Sul, África, Austrália, Antárctica) e entre estes e a Índia, o que testemunha evoluções geológica e biológica comuns durante o Paleozóico.

Nos tempos que se seguiram ao final desta era, tais semelhanças deixaram de existir, o que indica evoluções geológica e biológica separadas em cada um deles, isolados a partir de então. A mobilidade dos continentes foi acumulando provas sobre provas. São muitas as ocorrências geológicas separadas pelos actuais oceanos, mas que ficam em continuidade geográfica, sempre que os seus contornos se ajustam, como as peças de um puzzle. No Paleozóico conhecem-se testemunhos da existência de vastas florestas de tipo equatorial, hoje localizadas no hemisfério Norte, desde as latitudes da Península Ibérica à do Spitzbergue (a 85ºN).

Tais testemunhos são as conhecidas bacias carboníferas do Carbónico e do Pérmico, nas quais se acumulam as maiores reservas mundiais de carvão fóssil. Na mesma época, os actuais continentes total ou parcialmente localizados no hemisfério sul, assim como a Índia, tiveram uma posição mais próxima do Pólo Sul e parte das suas regiões estiveram sob intenso regime glaciário. Todos estes factos apontavam, quase sem contestação, a existência de uma deriva dos continentes, em movimentos simultâneos de afastamento longitudinal entre si, e de deslocamento para norte, com excepção da Antárctida, que permaneceu praticamente no mesmo local. A estes argumentos, embora correctos, faltou o apoio de uma explicação aceitável para o dinamismo essencial às referidas translações, pelo que houve que esperar por novos e sucessivos avanços nas ciências geológicas, até se chegar à visão tectónica global de que hoje dispomos.

Em 1931, o geólogo inglês A. Holmes, avançava com uma explicação dinâmica, igualmente vanguardista, muito próxima do modelo actualmente aceite. Segundo ele, o manto terrestre seria percorrido por correntes de convecção térmica, que podemos exemplificar com um líquido contido num vaso colocado sobre uma fonte de calor. O líquido aquecido no fundo do vaso sobe, arrefece e torna a descer, para voltar a aquecer e a subir. Segundo o autor, estas correntes de convecção teriam sido as causadoras da rotura da Pangea, bem como da separação e deriva (translação) dos continentes assim formados. A hipótese de Holmes não foi, porém, suficiente para reanimar a teoria de Wegener, que teria de aguardar mais duas décadas para se impor como precursora da actual concepção da dinâmica global da litosfera Nos anos que se seguiram à 2.ª Guerra Mundial, as investigações levadas a efeito nos fundos marinhos, puseram em evidência um acidente na topografia, que passou a ser designado por crista média oceânica ou dorsal oceânica.

Prolongada através de todos os oceanos, é sulcada em toda a sua extensão (70 000km) por uma depressão estreita e profunda, podendo atingir os 7 000m de profundidade, limitada por falhas, a que se convencionou dar o nome de rifte (do inglês rift, “fenda”). Constatou-se, depois, que o fluxo térmico, ou seja, o calor emanado do interior era relativamente elevado ao longo desta dorsal, excedendo em cerca de uma dezena de vezes o valor médio referente à totalidade dos fundos oceânicos. Verificou-se, ainda, que, nas zonas das fossas abissais, este fluxo descia muito abaixo do referido valor médio. Com base nestes conhecimentos, H. Hess (1960) sugeriu que as dorsais poderiam corresponder a zonas ou faixas de emersão de correntes de convecção no seu troço ascendente, ao contrário das fossas que corresponderiam às zonas de mergulho das mesmas correntes, depois de um percurso que, diríamos, superficial. Nascia, assim, a hipótese da expansão dos oceanos.

Segundo este geólogo, a crosta oceânica é material magmático, oriundo do manto, ascendente ao longo do rifte, que aí solidifica e se acrescenta a um e outro lado deste acidente, à medida que o processo se continua. É este mecanismo que não só conduz à expansão da crosta oceânica e, portanto, dos fundos oceânicos, mas também promove a deriva dos continentes, afastando-os entre si, para um e outro lado da dorsal. Com este avanço nos conhecimentos, as atenções dos geólogos voltaram-se, de novo, para as ideias de Wegener. As translações continentais renasciam, mas num quadro dinâmico, diferente do existente à época. Segundo Hess, os fundos oceânicos ter-se-ão expandido no decurso dos tempos que se seguiram à referida rotura, isto é, no Mesozóico e no Cenozóico, a velocidades na ordem de escassos centímetros por ano, para cada lado do rifte, um valor compatível com as dimensões das actuais bacias oceânicas.

A partir do momento em que geofísicos e geólogos ganharam consciência que a litosfera estava fragmentada em placas, deduziram que poderia ser o próprio afundar das placas nas zonas de subducção (coincidentes com a fossas abissais) a causar o seu movimento. Isto acontece porque, com o passar dos muitos milhões de anos, as placas oceânicas vão ficando cada vez mais frias e, portanto, mais densas do que o manto que está por baixo. Data de há meio século o conhecimento de que os minerais com algum ferro (olivina, piroxenas, anfíbolas) característicos e abundantes nas rochas da crosta oceânica (basaltos e rochas afins) se magnetizam por efeito do campo magnético terrestre, aquando da sua solidificação por arrefecimento do respectivo magma.

A magnetização adquirida por esses minerais regista a polaridade do referido campo magnético no momento da sua passagem ao estado sólido, ou seja, da sua cristalização. Nestes termos, as rochas magmáticas da crosta oceânica, encerram um registo da direcção e intensidade do campo geomagnético contemporâneo da sua formação, susceptível de revelar não só as suas posição e orientação relativamente aos pólos da Terra, como também as inversões de polaridade ocorridas ao longo deste período da história do planeta. Trata-se, pois, de um magnetismo fóssil (paleomagnetismo), remanescente ou residual. Devido a causas relacionadas com a actividade do núcleo terrestre, no decurso dos tempos geológicos, os pólos magnéticos, norte e sul, coincidiram e alternaram com os pólos norte e sul geográficos. Dito de outra maneira, o pólo norte magnético que, actualmente, coincide com o norte geográfico, esteve, no passado, alternadamente virado a norte e a sul.

O aperfeiçoamento de aparelhos – magnetómetros – susceptíveis de medir esses parâmetros, permite leituras de grande precisão. Este tipo de leituras por magnetómetros rebocados por navios oceanográficos, ao longo de direcções perpendiculares às dorsais, revelou, nas rochas dos fundos investigados, a existência de anomalias geomagnéticas, dispostas com assinalável regularidade, segundo faixas paralelas e simétricas em relação aos riftes, ou seja, de um e outro lado destes acidentes. Tais anomalias manifestam-se por variações bruscas na intensidade do campo geomagnético, com valores ora superiores, ora inferiores, relativamente ao valor regional previsível.

São positivas as anomalias correspondentes a valores da intensidade superiores ao valor regional e resultam do valor da intensidade do campo actual, nesse sítio, adicionado do do magnetismo remanescente com o mesmo sentido, conservado na rocha. São negativas as anomalias correspondentes a valores inferiores ao valor regional e resultam do valor da intensidade no local, subtraído do do magnetismo remanescente de um campo reverso, isto é, com sentido inverso. Aceitando a hipótese de Hess e as inversões de polaridade geomagnética ao longo dos tempos mesocenozóicos, F. J. Vine e D. H. Mathews (1963) deduziram que as faixas do fundo oceânico com anomalias, alternadamente positivas e negativas, correspondem a porções de crosta oceânica formadas em sucessivos períodos de polaridade do campo geomagnético, respectivamente, normal e reversa.

A hipótese do alastramento dos fundos oceânicos de Hess ganhava consistência e, em conjunto com a de Vine e Mathews, tornaram-se o suporte fundamental da Teoria da Tectónica de Placas, em rápida e segura ascensão. Os estudos das anomalias magnéticas estenderam-se à generalidade dos oceanos, contando-se por cerca de duas centenas o número de inversões de polaridade registado desde o início da deriva. As determinações de idade isotópica (determinada com base no decaimento de certos isótopos radioactivos, expressa, no geral, em milhões de anos) de rochas basálticas, colhidas no substrato oceânico, ao longo de direcções perpendiculares aos riftes, confirmam a existência de faixas simétricas (em relação a este acidente maior), no que se refere às respectivas idades, sendo as rochas tanto mais antigas quanto mais afastadas se encontrem do rifte, o que confirmou as hipóteses de Hess e de Vine e Mathews, contribuindo com mais uma achega na consolidação desta visão global da geologia. Pode deduzir-se a velocidade de alastramento dos fundos oceânicos achando o cociente entre a distância ao rifte de uma dada amostra e a idade isotópica da respectiva rocha.

Os valores obtidos neste tipo de determinações apontam para velocidades compreendidas entre 1 a 9 cm/ano, correspondendo os valores menores ao Oceano Atlântico e os maiores ao Pacífico. O elevado número de determinações de idades isotópicas, na generalidade dos fundos oceânicos, revela que a maior parte do seu substrato basáltico tem menos de 80 Ma, havendo, contudo, locais onde essa idade atinge os 160 Ma. Tais valores referentes à crosta oceânica são ínfimos quando comparados com os conhecidos nas rochas da crosta continental, que podem recuar aos 4000 Ma.

O alastramento dos fundos oceânicos, tal como é aceite pela comunidade de geólogos, nas suas mais diversas áreas (Geofísica, Paleontologia, Estratigrafia, Tectónica, etc.), afastou o principal obstáculo à Teoria das Translações Continentais, de Wegener, uma vez que não considera os continentes a deslizarem sobre um suporte rígido, mas, sim, com ele. O referido obstáculo consistia na difícil, se não impossível aceitação de forças capazes de vencer o atrito que se oporia a um tal deslizamento.

Na tectónica de placas, os continentes são considerados unidades isoladas de crosta continental, constituindo a parte mais superficial de porções maiores de litosfera, às quais foi dado o nome de placas, elas, sim, deslizantes sobre a astenosfera, plástica. À semelhança de um corpo sobre uma jangada à deriva, os continentes afastam-se e aproximam-se entre si, animados pela convecção do calor no interior da Terra.

A justaposição dos contornos dos continentes de que se fala na teoria de Wegener, não sendo perfeita, foi, contudo, suficiente para servir de inspiração e ser usada como argumento a seu favor. Os progressos no conhecimento da topografia submarina permitiram a E. C. Bullard e colaboradores (1965) mostrar que a justaposição, quase perfeita, tem lugar, não face ao desenho do litoral em confronto, mas, sim, ao da batimétrica de 1 000m, onde a plataforma continental faz a transição para a bacia oceânica. Esta contribuição dos investigadores da Universidade de Cambridge deu ainda mais consistência à visão tectónica global, que marca a moderna Geologia.

O DESAMOR NA EDUCAÇÃO ESCOLAR

Volta a passar na RTP2 a série documental portuguesa com o título Outra escola, que foi para o ar em 2019. Dá a conhecer escolas e experiências escolares diversificadas. A abordagem é, sob o ponto de vista educativo e pedagógico, superficial e enviesada. Ainda assim, revela alguma coisa, mesmo cinco anos passados.

O segundo episódio poderia chamar-se "desamor". Os autores entraram numa escola que aderiu ao projecto de Autonomia e Flexibilidade Curricular e auscultaram alunos, pais, director e professores. Ouvi, ao início, com atenção, depoimentos de alunos e, quase no final, o depoimento de uma professora; não consegui ouvir com atenção o que está pelo meio, por causa desse "desamor" ao "santuário" que é a instituição escolar (uso a expressão de Gert Biesta, que ele usa na conferência a que há poucos dias aludi neste blogue).

Dizem então os alunos nos primeiros segundos:

"Eu gosto da arquitectura da escola, mas não gosto de alguns docentes.
Gosto do espaço verde, mas não gosto de alguns professores.
Eu gosto do espaço verde, sim, mas não gosto das aulas (...)
Eu gosto da arquitectura das casas de banho, mas não gosto de alguns professores (...)
Gosto de espaços grandes, mas não gosto de alguns professores.
Gosto dos intervalos, mas não gosto das aulas.
Gosto dos intervalos, mas gosto dos professores.
Gosto da liberdade que nos dão na escola, mas não gosto de alguns professores."

Diz a professora nos últimos segundos, sobre a escola no seu sentido geral, com uma expressão que reforça as palavras:

"A escola parece uma coisa muito pesada (...). Há falta de coragem na educação: (...) os professores têm muito medo de não serem capazes de ensinar. E em cima do medo não se consegue construir nada, pelo menos eu não consigo, do ponto de vista criativo (...). O medo bloqueia (...). A escola está sob uma pressão muito grande, é muito negra, está longe de ser um sítio maravilhoso."

A pergunta que fica é: porquê

Porque é que os alunos dizem tão despudoradamente "não gosto"? Não gosto das aulas, não gosto dos/de alguns professores... Parece haver uma hostilidade latente, que percebemos não derivar dos alunos, ou não apenas deles; é mais uma voz plural que se vai entranhando no pensar social;

Porque é que, muitos professores, se reverão na declaração da professora? Parece não haver uma saída do cenário que ela descreve, uma possibilidade de tornar a escola ao que Biesta diz que ela deve ser.

Precisamos de pensar nesta pergunta, precisamos de encontrar uma saída.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

CAMPONESES

Por A. Galopim de Carvalho

Era assim que se dizia - camponeses. Conheci-os bem, na minha adolescência, como campista selvagem que fiz nesses anos por entre as herdades do Alentejo. Digo por entre as herdades porque todo o território que conheci nesta condição de rapaz com mais dois ou três companheiros, “por esses campos fora” era pertença deste ou daquele grande proprietário que, nesses anos eram conhecidos por lavradores ou terratenentes. Conheci-os também no Quartel, em Artilharia 3, em Évora, como oficial subalterno (fui aspirante, alferes e tenente miliciano) nas duas ou três recrutas que ministrei.

Inicialmente amedrontados e tímidos, eram jovens fortes de braços e pernas, mas, no geral, com pouca agilidade. As suas mãos, queimadas pelo sol, contrastavam com os seus corpos demasiado brancos, fruto de uma vida inteira quase sem verem a luz do dia. 

Calejadas, gretadas e de unhas grossas e duras, estas mãos eram o reflexo da rudeza dos trabalhos agrícolas. Mãos sem os movimentos finos, que a escola e a escrita desenvolvem, só funcionavam em bloco, como um todo de braços e corpo. A sua caneta era a enxada, como alguns diziam, a brincarem com a sua própria condição.

Com o advento da liberdade, mau grado as muitas dificuldades sentidas por uma franja muito significativa dos nossos concidadãos, Portugal mudou, como se diz, da noite para o dia, em muitos aspectos da nossa vida. E um desses aspectos pode ser exemplificado com base no que escrevi acima. Deixou de haver camponeses como estes meus recrutas. Não sei praticamente nada sobre o actual mundo rural que também mudou radicalmente, mas sei que já não há, entre os portugueses, mãos grossas sem os movimentos finos, que a escola e a escrita desenvolvem.

António Manuel Baptista, cem anos de um divulgador de ciência

 


Meu texto no JL:

António Manuel Baptista (1924-2015), professor de Física na Academia Militar e no Instituto Português de Oncologia (IPO), foi pioneiro em Portugal na Física Médica - designadamente na área da Medicina Nuclear –, mas ficou sobretudo conhecido entre nós como um divulgador da ciência, usando vários meios - imprensa, rádio, televisão e livros. A sua intervenção nesta área teve um papel relevante no despertar de vocações para a ciência e no alargamento da cultura científica num tempo em que esta era incipiente no país. Baptista foi pioneiro na autoria de programas sobre ciência na RTP e de vários livros, saídos principalmente na Gradiva. Homem das «duas culturas», é de salientar a sua faceta literária, manifesta no seu convívio com grandes nomes da literatura nacional como Alexandre O’Neill e Mário Cesariny.

Filho do Coronel António Manuel Baptista e D. Maria Rosa da Conceição Baptista, nasceu na vila de Almeirim, em cuja toponímia está homenageado. Estudou na Escola Primária de Almeirim, no Liceu Sá da Bandeira em Santarém e no Liceu Passos Manuel de Lisboa. No final dos estudos secundários, era seu intuito entrar para a Marinha, mas um problema de tuberculose não só o impediu o acesso a uma carreira militar como o obrigou a um tratamento no sanatório do Caramulo, que lhe atrasou a vida escolar. Para aproveitar algumas cadeiras preparatórias que tinha feiro na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, inscreveu-se na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, na Licenciatura em Ciências Físico-Químicas, que concluiu em 1948. No último ano dos seus estudos universitários, teve como professor de Física o espanhol Julio Palacios Martinez, um encontro que se revelou determinante na sua carreira. Iria trabalhar com ele primeiro no Centro de Estudos de Física, anexo ao Laboratório de Física da Faculdade de Ciências, que era apoiado pelo instituto para a Alta Cultura (IAC). 

Palacios, que tinha sido contratado como catedrático pela Universidade de Lisboa na sequência de uma purga de docentes pelo regime de Salazar, dirigiu aquele Centro de Estudos, trabalhando em electroquímica. Quatro anos depois, foi chefiar um novo centro do IAC no Instituto Português de Oncologia (IPO), denominado Centro de Física Nuclear, onde passou a trabalhar em problemas de Medicina Nuclear, levando consigo Baptista. Os dois deram um impulso a trabalhos sobre a aplicação de radioisótopos no diagnóstico e terapêutica de cancro.

Baptista foi bolseiro em Londres em 1953 e nos Estados Unidos em 1957: foi graduado pela International School of Nuclear Sciences and Engineering, no Argonne National Laboratory, Lemont, perto de Chicago, e fez pós-graduação na Universidade da Carolina do Norte. Doutorou-se, já regressado ao país, pela Academia Militar, em 1961, onde foi logo recrutado como Professor Catedrático. E no IPO dirigiu o Laboratório de Radioisótopos. Jubilou-se aos 70 anos. A sua obra em Medicina Nuclear granjeou-lhe vários prémios e distinções, a começar pelo 1.º Prémio Pfizer em 1958.

Muito apreciados foram os seus programas de divulgação da ciência na rádio e na televisão e, numa fase posterior da sua vida, os seus escritos nos jornais e nos livros. Foi autor e apresentador de muitos programas de rádio de divulgação científica e história da ciência na Emissora Nacional, (desde 1976, RDP) e na TSF (1961-1986). Fez programas da Telescola na RTP (1961). Foi autor e apresentador de programas de divulgação científica na RTP (1961-1986), entre os quais “Ciência,” “Ciência a cada Passo”, “Científicamente” e “Ciências do Homem”.  Quando a televisão ainda era a preto e branco e só existiam dois canais, influenciou muitos jovens a seguir carreiras científicas. E ganhou a atenção de um público mais alargado para a ciência, num tempo em que a divulgação científica tinha uma escala bem menor do que hoje. Foram, por isso, muitos justa a atribuição que lhe foi feita do Prémio de Imprensa (1969) e do Prémio Vídeo da Televisão (1981).

A partir da jubilação, Baptista começou a prestar maior atenção à edição de livros. Já antes tinha sido autor de três obras didácticas. mas, entre 1994 e 2004, foi o autor de sete livros de divulgação científica, cinco dos quais na Gradiva. Os dois últimos documentam uma polémica que manteve com o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, que, numa abertura solene das aulas na Universidade de Coimbra, tinha deixado fortes críticas à ciência.

Senhor de uma enorme cultura, foi também poeta: recitou poemas seus no programa “Perfil” da RTP, da responsabilidade do seu amigo Alexandre O’Neill. Manteve contactos com o surrealista Mário Cesariny e conviveu com outras grandes nomes da cultura nacional do seu tempo. Num dossiê dedicado pela revista Colóquio Letras da Fundação Gulbenkian (n.º 198, 2018) a Alexandre O’Neill vieram a lume algumas cartas trocadas com António Manuel Baptista e Luís Pedreira, cedidas pela filha do primeiro, Cristina Ovídio, para além de poemas juvenis de O’Neill e estudos sobre várias facetas da sua obra Baptista deu uma grande entrevista à revista Ler ao jornalista Carlos Vaz Marques. 

Sobre a questão das “duas culturas”, isto é a separação entre a cultura científico-tecnológica, por um lado, e a cultura artística, por outro, que o intelectual britânico Charles P. Snow abordou numa famosa conferência em Cambridge em 1959, Baptista afirmou então: «No nosso espírito é possível estabelecer pontes muito próprias. A ciência é uma delas. A poesia outra. Pontes também para um território sagrado, que é a mente humana.»

No ano do centenário do seu nascimento a herança de António Manuel Baptista na cultura portuguesa merece ser destacada, muito em particular o seu contributo para a consideração da ciência como parte da cultura. A Academia Militar homenageou-o no dia dos seus cem anos. Os CTT emitiram um selo em sua homenagem. E a Tinta da China vai reeditar o livro A Ciência no Grande Teatro do Mundo, cuja primeira edição saiu em 1998, como o n.º 97 da colecção «Ciência Aberta» da Gradiva. Vale a pena lê-lo porque mantém a actualidade, ao ligar a ciência com a história, a filosofia e poesia.

domingo, 8 de setembro de 2024

NESTE ANO ESCOLAR: PRIORIDADE MÁXIMA PARA A ATENÇÃO E A CONCENTRAÇÃO DOS ALUNOS

José María Romera, professor, articulista espanhol publicou ontem, dia 7, no Diário de Navarra (aqui) um texto que traduzimos e que, a seguir, reproduzimos. É um bom conselho. Dirá o leitor caso seja professor: impossível de acolher! A pressão do departamento, da escola, do ministério, da União Europeia, da OCDE... para cumprir, para cumprir, para cumprir... Pois é, mas, paremos e pensemos: o que é que realmente importa na educação escolar pública? O que é que um professor deve fazer para perseguir os fins que guiam (ou deveriam guiar) essa educação? Isaltina Martins e Maria Helena Damião

Caro amigo professor
que neste mês de setembro inicia um novo ano, receba, junto com a minha sincera solidariedade, um conselho que é, ao mesmo tempo, um desejo fervoroso: dirija todos os seus esforços para cultivar a atenção e a concentração dos alunos.
Se for necessário, esqueça os programas, salte partes do currículo, ignore os cantos de sereia das novas pedagogias e das antigas receitas dos professores e ria-se dos relatórios do Pisa.
Cada minuto de atenção que obtiver de seus alunos será um triunfo educativo sobre as pressões dos média e da vertiginosa dispersão mental dos videogames. Nenhuma aprendizagem é possível quando o avassalador mercado da distração proporciona aos alunos recursos ilimitados para abandonarem tarefas, passarem incessantemente de uma coisa para outra, viverem na impaciência, seguirem os ditames dos impulsos e serem escravos dos estímulos imediatos.
Não é fácil enfrentar tudo isso.
Neste mundo louco existem muitos profissionais que ganham dinheiro enfraquecendo a nossa capacidade de atenção. Ao ler estas linhas, há legiões de especialistas dedicados de corpo e alma à criação de ferramentas poderosas para reduzir ainda mais a já muito diminuída atenção das pessoas, para que se tornem mais vulneráveis às mensagens publicitárias, políticas ou recreativas das empresas para as quais trabalham. Esta perda, que geralmente consideramos um tributo inevitável do novo bem-estar tecnológico é, na verdade, uma luta feroz para dominar os nossos cérebros.
Quero dizer que se o [amigo professor] se dedicar na sala de aula a fortalecer a atenção dos meninos e das meninas que estão ao seu cuidado, não estará apenas a ajudá-los a dominar a matemática e a expressão escrita. Estará a construir pessoas livres, cidadãos conscientes, espíritos críticos.
Para isso não consigo pensar em arma melhor do que a leitura. Não desperdice a sua energia a lutar contra as telas omnipresentes, coloque as páginas nos seus devidos lugares. O ecrã do telemóvel proporciona superficialidade, imediatismo, distração, informação fragmentada, dispersão; a página de um livro é profundidade, concentração, coerência, profundidade, reflexão. Vale a pena tentar.
Tenha um ano feliz.

MELANCOLIA

Por A. Galopim de Carvalho
 
Melancolia é o nome desta extraordinária escultura do romeno Albert György (nascido em 1949), que vi ontem, na página de Luís Osório. Eu diria que esta obra me esmagou e me atirou para trás, na cadeira onde, todos os dias, me sento aqui, frente ao monitor e revivi o estado de alma que a medicina diagnostica como depressão. Senti o terror (sim, terror é a palavra certa) de que ela pudesse um dia voltar. Recuei quarenta anos. Era então um homem na pujança física da vida e, de um dia para o outro.
 
Grande melancolia, eu gosto mais de dizer amargura. Incapacidade de sentir alegria e prazer sem saber porquê. Apatia e desinteresse por tudo ou quase tudo. Por tudo e, por nada, vontade de chorar. Incapacidade de estar onde quer que esteja. Falta de ânimo Ter de sair sem saber para onde. Incapacidade de conviver, de ler, de ver televisão e de ouvir música. Incapacidade de ser, no sentido de estar consigo próprio, Incapacidade de estar acordado, de estar vivo.

Não sou médico, mas sei o que é esta penosa e angustiante enfermidade. Sendo do foro psíquico, nas suas manifestações, penso que tem causas em distúrbios nos equilíbrios químicos que regem o comportamento cerebral. Não há psicologia ou psicanálise que lhe valha. O tratamento ou, melhor, as tentativas de tratamento fazem-se com químicos, isto é, com fármacos. Aí, pelo que me foi dado vivenciar, o psiquiatra que, julgo não tem maneira de saber quais são os químicos em desequilíbrio, actua por aproximações. Começa por ensaiar, no doente, um lote de dois ou três fármacos e aguarda o resultado. Grande sorte seria acertar à primeira tentativa. Mas não, os ensaios repetem-se, por assim dizer, ao sabor do acaso, até que um dia, eureka! Os últimos fármacos experimentados tinham reposto o equilíbrio químico até então perturbado. E, aí, de um dia para o outro, foi-se a tristeza, o desânimo, a apatia e o pessimismo. Voltou o ânimo, a alegria e o prazer esfuziante de conviver, de estar vivo.

Foi um tempo difícil de viver. Nunca deixei de trabalhar. Do mal o menos, estar ocupado por obrigação desviava-me da incapacidade de estar a sós comigo próprio. Cerca de um ano depois da primeira consulta, concluídas muitas experiências com doses de psicofármacos, todos eles nunca gastos até ao fim, ia eu ao volante, na estrada, a caminho de Sesimbra, senti prazer ao olhar aqueles grandes e frondosos pinheiros mansos que aqui e ali ladeiam a estrada. Dei por mim dentro do meu corpo e sorri, creio que pela primeira vez, nesse doloroso período. Dei por mim a gostar de ver o imenso mar que se nos depara na Ponta de Argéis.

sábado, 7 de setembro de 2024

GERT BIESTA: A NECESSIDADE DE RESISTÊNCIA POR PARTE DOS EDUCADORES

A UNESCO, após publicar o seu relatório Reimaginar os nossos futuros juntos: um novo contrato social para a Educação, realizou um ciclo de conferências designado por Futuros da Educação, numa colaboração entre a Universidade de Lisboa e a Representação desta organização no Brasil. Só agora me foi possível explorar essas conferências, algumas delas de grande interesse. Partilho com os leitores a de Gert Biesta, professor das Universidades de Maynooth e Edimburgo (ver aqui a partir do minuto 15). E reproduzo abaixo uma parte substancial da entrevista que o jornalista Jorge Andrade fez a este filósofo da educação (ver aqui).
"(...) Critica os que enfatizam a importância da continuidade e os que defendem uma mudança radical. Há um outro futuro entre estes dois polos?
Sobre essa questão recordo as palavras do educador americano George Counts, que afirmou ser conservador porque acreditava na conservação de ideias radicais. Preocupo-me com as pessoas que argumentam que a educação precisa de inovação constante. Afinal, o que é novo não é automaticamente melhor. Preocupo-me com as pessoas que querem levar a educação ao encontro de algum tipo de passado romântico em que os professores tinham autoridade e os alunos simplesmente faziam o que lhes era ordenado. Se tal passado alguma vez existiu, foi um passado muito cruel para os alunos, e provavelmente também para muitos professores, e definitivamente não é o passado de que precisamos. Que tipo de mudança é necessária, e onde precisamos de trabalhar contra a mudança, depende criticamente do que consideramos ser o objetivo da educação (...).

Critica a excessiva instrumentalização da educação, enfatizando a importância da formação de sujeitos críticos e autónomos. A que instrumentalização se refere?
A instrumentalização da educação passa pela ideia de que as escolas, faculdades e universidades devem apenas fazer o que a sociedade e o governo querem que façam. Por exemplo, produzir uma força de trabalho qualificada ou transformando crianças e jovens em cidadãos obedientes. Isto não quer dizer que a educação não tenha aqui um papel a desempenhar, mas se isto é tudo o que esperamos da escola, então as crianças e os jovens são vistos apenas como objetos que precisam de ser treinados e influenciados, e esquecemos que também precisamos de ajudá-los a conduzir a própria vida. Como educadores, deveríamos, por outras palavras, preocupar-nos também com a liberdade dos nossos alunos e com o desafio que se lhes coloca, o de usarem bem a sua liberdade. Isto tem algo a ver com uma preocupação com a autonomia, desde que não pensemos que autonomia significa estar desconectado dos outros seres humanos e apenas fazer o que se quer. O desafio passa, antes, por viver a sua própria vida de tal forma que haja espaço para que as outras pessoas vivam também a sua vida, o que exige, sempre, compromissos e limitações. A ambição da educação deveria ser, portanto, encorajar as crianças e os jovens a tornarem-se indivíduos democráticos, o que não é uma tarefa nada fácil, mas é muito importante.

Como podemos garantir que a educação não se torna simplesmente um meio para fins utilitários? Por exemplo, como referiu, responder apenas à procura do mercado de trabalho.
Significa que nós, enquanto académicos e também como educadores, precisamos de oferecer resistência às tendências de fazer da educação apenas um instrumento ao serviço de interesses terceiros. É aqui que a escola tem o “dever de resistir”, como referiu o académico francês Philippe Meirieu. A questão-chave, claro, é em que base podemos oferecer tal resistência. Para isso, pode ser útil observar que a escola vive, na verdade, numa realidade dupla. Por um lado, responde a uma função das sociedades modernas que surgiu quando a vida quotidiana começou a perder a sua qualidade educativa: quando o trabalho passou de casa para escritórios e fábricas, por exemplo. Mas a escola é também o tempo que dedicamos a que uma nova geração possa conhecer o mundo e encontrar a sua relação com o mundo. E disponibilizamos este tempo porque queremos dar aos jovens a oportunidade, julgo que honesta, de entrarem na sua própria vida. Vem a propósito disto recordar que a palavra grega “escola” significa, na verdade, “tempo de ócio”, tempo que ainda não foi tornado produtivo, ainda não reivindicado por outras forças.

Destaca a importância da relação entre professor e aluno como fundamental para uma educação de qualidade. Como pode o professor equilibrar a transmissão de conhecimentos aos alunos com o estímulo ao seu pensamento crítico e à autonomia?
Na verdade, penso que a educação implica sempre uma relação triádica entre professor, aluno e o mundo, e que o gesto básico da educação é voltar a atenção dos alunos para o mundo. E neste contexto, o mundo não é apenas um “objeto” ou “área” sobre o qual se pode adquirir conhecimento. O mundo também coloca questões que nos são endereçadas. Precisa do nosso cuidado, por exemplo (...). Mais do que autonomia e pensamento crítico, talvez haja um trabalho a fazer na tentativa de sensibilizar os nossos alunos para as questões que o mundo natural e social nos endereça. Chamo a isto uma educação centrada no mundo.

Onde se situa a escola entre a necessidade de responder às demandas da sociedade e a necessidade de preservar-se desta?
Devemos reconhecer que a escola tem um “trabalho” importante a fazer no contexto da sociedade (...). Mas, como se percebe a partir do que referi anteriormente, isto não é tudo o que compete às escolas. A escola também tem a sua própria “preocupação”, a de cuidar de oferecer às crianças e aos jovens uma oportunidade justa para seguirem com as suas vidas, com a sua própria independência, rumo a iniciativas e a responsabilidades. Equilibrar estas duas exigências é bastante difícil, também porque as escolas estão sob muita pressão inútil para garantir que os seus alunos tenham avaliações “altas” em conhecimentos e competências mensuráveis. Esta pressão, que é intensificada por sistemas ridículos como o PISA da OCDE (...).

A sua teoria sobre a “emancipação” na educação destaca a importância de capacitar os alunos para se tornarem agentes de mudança. Como pode isto ser realizado na prática educativa?
Na verdade, não sou fã da linguagem do empoderamento e também não tenho a certeza sobre a mudança, porque às vezes o que é necessário é lutar contra a mudança, se essa mudança estiver a piorar as coisas. O problema do empoderamento é que ele evoca a imagem de crianças e jovens a ganharem mais poder, mas o principal desafio não é, ou não é apenas, obter mais poder. É muito mais importante ser-se capaz de julgar o que fazer com esse poder. Podemos ver isto à escala global, com políticos muito poderosos que usam o seu poder de formas horríveis. Portanto, o julgamento é, talvez, uma qualidade ainda mais importante a ser abordada. Um julgamento democrático que se concentra no valor de viver a vida na pluralidade e na diferença ou, se quiser, viver a vida com uma orientação para a igualdade e para a paz. Em vez de empoderarmos, precisaríamos, realmente, de trabalhar no oposto, o que poderíamos chamar de desarmamento: uma capacidade de permanecermos abertos e sensíveis.

Há inúmeros argumentos a favor da tecnologia e de como esta remodela radicalmente a educação. No entanto, é crítico em relação ao papel da tecnologia na educação. Considera que a escola não precisa das tecnologias?
Diria que a escola é em si uma tecnologia – a escola é artificial. O currículo, os livros didáticos, a organização das escolas em turmas são tecnologias que utilizamos para fazer a educação acontecer. O desafio das tecnologias é que devem ser vistas como meios, mas muitas vezes tornam-se fins em si mesmas. Não há nada de errado num bom livro didático, mas se pensarmos que a educação consiste em memorizar o conteúdo desse livro e passar num teste, então o livro didático torna-se um fim em si mesmo. Julgo que este é um perigo ainda maior com as tecnologias “digitais” contemporâneas, porque muitas vezes parecem muito tentadoras e trazem grandes promessas. Por causa disso, podemos rapidamente esquecer que na educação tudo começa com aquilo que procuramos – o objetivo e o propósito da educação – e é apenas em função disso que podemos decidir que tipo de tecnologias podem ser úteis e significativas. Face a isto, sou muito crítico em relação às tecnologias modernas, talvez ainda mais porque muitas pessoas esquecem-se de fazer as perguntas educativas e pensam apenas que a tecnologia deve ser usada porque está disponível."

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

AS PEDRAS E AS PALAVRAS

Por A. Galopim de Carvalho

As pedras e as palavras foram dois mares em que naveguei por longos períodos da minha vida. É o título de um livro que publiquei vai para uma dezena de anos, onde inseri o texto que agora reescrevi num tom e num ritmo como se de um poema às pedras se tratasse. Pedras e rochas são duas maneiras de dizer a mesma coisa. Só que, via de regra, são usadas em discursos diferentes. Apanhamos uma pedra do chão, mas, quando estudamos, falamos quase sempre de rochas.
As pedras acompanharam o Homem desde os seus mais remotos e primitivos ancestrais e a sua importância pode ser avaliada pelo sem-número de palavras que criou e usou para expressar esta ideia, ao longo de uma história de muitos milhares de anos.
Pedra é uma entidade natural, rígida e coesa, que se apanha do chão e faz mossa onde quer que bata.

No âmbito das ciências da Terra,
A palavra pedra, do grego pétra, tem pouco uso.
Persistiu, porém, em casos pontuais, como:
pedra-pomes,
pedra-sabão,
pedra-hume,
pedra-de-fogo e
pedra de Eirol.
Persistiu, ainda, no discurso gemológico, em:
pedra-da-Lua,
pedra-zebra,
pedra de Eilat,
pedra-paisagem e
pedra-de-sangue.

Pelos jardins deste nosso país,
são muitos os reformados
que consomem o tempo
mexendo em pedras, no jogo das damas
ou no do dominó,
enquanto em suas casas,
as mulheres, trabalhadoras que nunca tiveram férias
nem nunca se reformam,
de pedras só conhecem a pedra de sabão,
sempre em uso no tanque da roupa
e a pedra do chão e dos degraus das escadas
que varrem e lavam todos os dias.
Sopa da pedra é o nome da conhecida confecção
que se faz e se come em Almeirim,
inspirado na tradicional lenda do frade.

Em sentido figurado, pedra assente
é uma decisão tomada e
com pedra sobre pedra
se edifica uma obra material ou do intelecto.
Pôr uma pedra sobre um assunto é esquecê-lo e
dar uma pedrada no charco é denunciar
uma situação menos correcta.
Chamam-nos à pedra
sempre que fazemos algo de mal feito e
parte-se pedra naquelas reuniões
em que muito se fala e pouco se avança.
Ser firme ou insensível como uma pedra
é mau ou bom segundo as situações.
Pedra de tropeço é o obstáculo
que nos dificulta ou impede a concretização
de um projecto ou de uma obra.
Tem pedra no sapato aquele que tem um incómodo
ou um problema por resolver.
Dorme como uma pedra o justo
e tem sete pedras na mão
aquele que fala com agressividade.
Quem nunca pecou, disse Jesus, que atire a primeira pedra.
Tu és Pedro e sobre ti edificarei a minha Igreja.
Disse Jesus ao apóstolo Simão.

Pedra, do grego pétra, é entre nós, como se disse atrás, palavra antiga,
bem enraizada e corrente no dia-a-dia das populações.
Por ser antiga, está na raiz de um grande número de palavras
do léxico popular português,
de que aqui deixo uma muito pequena parte.
Pedreira é o local de onde se extraem pedras e
pedreiro, o operário que as trabalha.
Com o mesmo étimo, lembremos
pedroso, empedrar, pedrada, pedregal,
pedrisco, pedrês e pedregoso.
Despedrega é retirar as pedras do solo,
a fim de o preparar para o cultivo, e
Pedrulha é topónimo de Coimbra e
sinónimo de cascalho.
Pedrão ou padrão é o marco que deixamos
deixaram na rota dos descobrimentos e,
no Brasil, pedregulho é matacão.

São muitos os topónimos relacionados com a ideia de pedra,
Pedralva, pedra branca ou pedra alva,
é o nome de uma aldeia algarvia,
uma freguesia do concelho de Braga, e
Pedras Salgadas, no município de Vila Pouca de Aguiar.
Pedras-Talhas, para os naturais dos Almendres,
no concelho de Évora, é o cromeleque,
aportuguesamento do galês cromlech,
que significa grande pedra arredondada.
Lembremos, ainda,
Pedrela ou Padrela, uma das serras transmontanas,
Pedroso, em Vila Nova de Gaia, e Padroso, em Montalegre,
Pedrouços, em Lisboa, Pedregal, em Barcelos, e Pedrogão, na Vidigueira,
Padrela e Tazem, em Valpaços e Pedrancha, em Trouxemil, Coimbra,

Na forma peder, criámos
empedernido, para dizer coração de pedra. E
pederneira ou pedernal, nomes que demos ao sílex,
a pedra-de-fogo usada nos bacamartes.

O étimo grego, pétra, usado directamente,
foi o preferido no português, dito culto.
Petróleo é o óleo saído do chão, de dentro das pedras, e
petroquímica, a indústria que o tem por matéria-prima.
Petrologia e petrografia são disciplinas que estudam as pedras e
petrólogos e petrógrafos, os seus cultores.
Como substantivo, petrificado, é o mesmo que fóssil,
resultante de um processo natural, dito petrificação, mas
petrificado, como adjectivo, diz-se de alguém
imobilizado por uma notícia que lhe “gela” o sangue.
São Petersburgo é a antiga Petrogrado,
assim chamada, em homenagem a Pedro,
não o Santo, mas o Grande, de todas as Rússias,
Petrópolis, a cidade imperial brasileira
que evoca o Magnânimo D. Pedro II,
que lhe deu nascimento, e
Petra é a cidade da Jordânia,
rica de monumentos escavados na pedra.

Pero é o nome arcaico de Pedro e
Peres são os seus descendentes.
Pero Vaz de Caminha e Pero da Covilhã
são nomes conhecidos da nossa história e
Pero Botelho é o Diabo que não pára de rugir
na caldeira que tem o seu nome,
no sítio das Furnas, em S. Miguel.

O uso do elemento pera, a forma arcaica de dizer pedra,
Está na base de vários topónimos.
Peralta, ou pedra alta, é nome de praia na Lourinhã.
Em Castanheira de Pera, o segundo nome diz pedra, não o fruto.
Mas há mais exemplos:
Pera, em Silves,
Pereira, em Montemor-o-Velho e
Pereiro, em Mação.
Peraboa e Pera Longa na Covilhã,
Pera Velha em Moimenta da Beira e
Peroliva ou pedra verde (de oliva) em Reguengos de Monsarás.
Peramanca e Perafita, na região de Évora,
evocam grandes marcos de pedra.
Estas pedras ou estavam “mancas”, isto é, tombadas,
ou ainda se mantêm “fitas” ou erguidas, na postura fálica,
a que chamamos menhires,
do bretão, men hir ou pedra comprida.

Do castelhano peña, criámos penha, o cume rochoso,
Penhasco e Penhascoso, no concelho de Mação
e demos nome a Penha Garcia, em Idanha-a-Nova, e
Penhas Douradas e Penhas da Saúde, na serra da Estrela.

Pena, do latim vulgar penna (variante de pinna)
é outra forma de dizer pedra
e é, também, apelido de gente.
O Castelo da Pena, embeleza o alto
de uma penedia, em Sintra,
Penalva do Castelo, deve o nome
à alvura da penha que lhe serviu de base.
Penela, ou penha pequena,
é localidade do distrito de Coimbra,
Penedono é município de Viseu,
Penedo, localidade na Serra de Sintra e
Peneda, a serra minhota e transmontana.

Pina, do latim pinna, outra forma de dizer pedra,
é apelido de gente e é raiz de
pináculo, um cimo rochoso e pontiagudo
ou o ponto mais alto de uma construção.

Canto, do pré-romano, canthus, é pedra na língua de Cervantes.
Cantaria é a pedra talhada em blocos,
canteiro tanto designa o profissional desta arte,
como o quinchoso, no jardim ou na horta, e
canteira, a versão menos comum de pedreira
O mesmo canthus deu cantil,
a ferramenta do escultor, e
alcantil, o escarpado
ou cume rochoso, alcantilado.
Cântaros são aos cumes rochosos da Serra da Estrela
cantaril o vento que lá se faz sentir.

Para os romanos, lapis era pedra
e era de pedra o lápis feito de ardósia,
da nossa infância.
Deste étimo nasceram
lapiseira, lápide ou lápida,
lapídeo, que significa petrificado e insensível,
lapidoso, que é o mesmo que pedregoso.
e lapidificação, outra forma de dizer petrificação,
mas que também é uma forma cruel
e desumana de execução,
entre os fundamentalistas islâmicos,
apedrejando os condenados até à morte.
Lapidar é talhar a pedra,
quer a ornamental, em cantaria,
quer a preciosa, no âmbito da gemologia.
Como adjectivo, significa basilar, fundamental.
Lapidários são os manuscritos da Idade Média,
que falam das pedras
e das suas propriedades medicinais e mágicas.
Lapidadas são e as pedras preciosas
que enriquecem as jóias, mas também
as mulheres muçulmanas,
vítimas da sentença de morte.
Lapis-lazuli é o nome latino de uma pedra semipreciosa,
Lapidicidas são os moluscos que perfuram as pedras, para aí se alojarem,
lapidículas, as aves que fazem ninhos entre pedras e
lapilli, o termo italiano dos produtos piroclásticos,
para os quais dispomos do termo açoriano, bagacina.

Com raiz no grego lithós, surgiu um conjunto de vocábulos
maioritariamente do léxico geológico.
Litosfera é a capa rochosa da Terra,
litologia, a disciplina que estuda as pedrase
lítico, o respectivo adjetivo.
Litogénese alude às suas origens e
litografia e litogravura são termos ligados à arte gráfica.
Paleolítico, mesolítico, neolítico, calcolítico e megalítico
Referem períodos da chamada Idade da Pedra.
Pirólito, batólito, facólito, fonólito,
riólito protólito, micrólito e siderólito
são termos correntes no jargão geológico,
mas que dizem muito pouco ao cidadão comum.
Litificação é petrificação e
litoclasto, um fragmento de pedra.
Litófagos são os bivalves que perfuram a pedra,
para nela se alojarem,
e litíase é termo do jargão médico
que fala da existência de cálculos
no rim ou na vesícula biliar.

Cálculo, do latim calculu, significa pedrinha.
em que o sufixo ulu é um diminutivo.
Com cálculos ou pedrinhas se contava
e faziam contas na Antiguidade.
Hoje calculamos nas modernas calculadoras.

Sílex, do latim silex, é outra forma de dizer pedra.
É a pedra-de-fogo ou pederneira.
Silício e os seus derivados,
Sílica, silicito e silicioso,
Silicato, silicatado e silicon
são termos químicos, geológicos e mineralógicos.

Com origem no latim saxus, que tanto quer dizer pedra como seixo,
criámos o topónimo Seixal, ou terra de muitos seixos,
a cidade a sul do estuário do Tejo,
e uma freguesia na ilha da Madeira.
Ainda na toponímia, temos
Seixinho, na Guarda,
Seixal, em Viseu, e
Seixoso, no Porto.
Seixeira é a escavação de onde se extraem seixos,
Seixosos, os respectivos locais,
seixebrega, a planta usada em tisanas,
como mezinha, para dissolver as pedras dos rins, e
seixo-bravo, o quartzo de filão sem minério.
Por via culta, introduzimos as palavras
sáxeo e saxoso, duas maneiras de dizer pedroso e pedregoso,
Saxátil, o que vive entre as pedras,
Saxícola, que tanto é o que habita as penedias
como o que presta culto aos deuses de pedra, e
Saxífragas, as plantas cujas raízes
alargam as fissuras da pedra.

Fraga, do latim hispânico, fragum,
é o mesmo que penha ou penhasco, e
fragueiros, os que vivem nas montanhas,
entre fragas.
Fragoso é o mesmo que pedregoso ou penhascoso,
fragarias e fragais são penedias e
fraguedos ou penedos são fragaredos,
como se diz em Trás-os-Montes.

Com raiz no latim calx, calces,
cal designa a pedra branca que,
uma vez regada com água, dá a calda
com que ainda se caiam ou branqueiam as paredes das casas
que distinguem o Alentejo e o Algarve das restantes regiões do país.
No Alentejo, caieira ou caleira é forno de cal,
Caleira que é também um rego, inicialmente empedrado.
Caieiro ou caleiro, o homem que a fabrica e/ou a vende,
caiador, o que se serve da cal para caiar, e
caios são as ilhas rasas, feitas de areia calcária,
dos mares recifais das Caraíbas.
Cal designa, ainda, a argamassa
que se usava antes da descoberta do cimento e
Calcário é a rocha sedimentar com que se faz a cal.
Calçada é o caminho revestido com pedras, e
calceteiro, o artista que celebrizou a calçada portuguesa.
O mesmo étimo deu calçado, calcanhar e
calcâneo, o respectivo osso.
E deu cálcio e calcite um dos seus minerais.
Cal veicula a também a ideia de pedra
e com pedras, a servirem de lastro,
se calavam os barcos quando,
sem carga, se faziam ao mar.
Calado é a profundidade a que se encontra
o ponto mais baixo do casco de uma embarcação,
em relação à superfície da água
onde se encontra mergulhada.
Calçar é meter uma pedra sob o que se quer firme e
calcar o chão é dar-lhe compactação.

Calhau, do francês caillou,
tanto refere a pedra tosca que se apanha no chão
como o seixo rolado do rio ou da praia.
Calle é a rua ou a calçada dos vizinhos espanhóis,
com correspondência para português,
em calhariz e calheta que, nas ilhas, significa pequena enseada na costa rochosa, e,
no continente, é o atalho por onde passam os rebanhos

Lapa, vinda do pré-céltico,
é uma pedra que forma um abrigo natural,
lapão, o respectivo aumentativo é
lapedo, um sítio de muitas lapas.

Respectivamente, corresponde-lhes, do pré-romano,
laje, lajão e lajedo.

Cascalho e cascalheira vêm do latim quassicare,
que significa fragmentar.
São substantivos colectivos,
que designam acumulações de calhaus ou seixos,
Com a mesma origem, casca é o invólucro quebradiço do ovo,
e o nome que se dava às conchas de bivalves
dispersas nas praias,
razão de ser do nome da vila de Cascais.

De uso regional, conhos, do latim cuneus,
São os calhaus rolados,
no geral, de quartzo e de quartzito,
próprios das aluviões do Tejo, do Zêzere
e de outros rios do centro do país.
Conheiras são extensos amontoados de conhos,
deixados pela lavra do ouro, levada a efeito, nos citados rios,
ao tempo da ocupação romana.

Barroco chegou-nos do pré-romano e
tanto significa pedra como barranco.
É, ainda, o estilo artístico, que se opôs ao classicismo da Renascença.
Barrocal é a paisagem pedregosa do Jurássico calcário algarvio e
barroqueiro, a pedra que se apanha do chão e se arremessa.
A mesma a que o alentejano e o algarvio chamam bajoulo.

Do latim, rupe, alusivo a pedra, dispomos de dois adjectivos:
Rupícula refere os animais ou as plantas que vivem entre ou sobre pedras e
Rupestre, o que cresce ou o que se grava ou pinta sobre elas
pelos nossos antepassados pré-históricos.

Para os romanos, gemma era pedra preciosa,
algumas delas descritas por Plínio, o Velho,
e que continuamos a usar na versão portuguesa gema.
Sal-gema é pedra formada por halite, o mineral,
em que o elemento gema, o distingue do cloreto de sódio, extraído das salinas.
Gemologia é a disciplina que estuda as gemas e
gemólogos, os seus cultores.

Psephós, do grego, significa seixo.
Psefógrafo é o aparelho destinado à contagem de votos,
em assembleias eleitorais.
No passado antigo, essa contagem era feita com seixos.
psefologia, a disciplina que estuda os resultados desses actos,
psefólogo o estudioso desta matéria e
psefito, um seixo e o nome de uma classe de rochas sedimentares
essencialmente constituída por seixos.
 
Com o mesmo significado, temos, ainda,
rudito, vindo do latim rudus.
 
Burgau é o nome de uma praia algarvia,
assim chamada em virtude da presença significativa
de calhaus, seixos, burgos ou burgaus.

De origem obscura, dispomos de rebo e gobo
e os seus equivalentes minhotos, gode e godo,
que significam calhau rolado,
e o transmontano gogo, o grande seixo liso,
no geral de quartzito, em que o sapateiro batia a sola.

A palavra pedra já era velha,
quando nos chegou, vinda do francês,
a palavra rocha,
Embora rocha surja com alguma frequência no vocabulário popular,
Rocha da Pena,
Rocha dos Namorados,
Praia da Rocha,

é termo frequente no glossário científico e pedagógico.
Rochedo, o grande afloramento de rocha,
rochoso, o adjectivo sinónimo de pedregoso,
rochaz, o que vive entre rochas e
rochedense, o qualificativo referente a rocha.
A palavra rocha substituiu e quase fez esquecer a velha palavra roca,
vinda do pré-romano e que persistiu
nas palavras enrocamento e derrocada,
no topónimo Cabo da Roca,
ou “Focinho da Roca”, com dizem os homens do mar,
e em Rocaille, um estilo artístico, nascido em França, em finais do século XVII.

No Brasil, o étimo ita, do tupi-guarani,
traduz a ideia de pedra
e figura na composição dos topónimos em Mina Gerais,
Itabira e Itacolumi,
e de duas rochas, muito especiais,
itabirito, um arenito flexível,
e itacolumito, um importante minério de ferro.

Divergente de ita, segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, o sufixo culto ite, do grego ités, é usado, entre franceses e ingleses, na formação de nomes quer de minerais quer de rochas.
Entre nós, este sufixo é apenas utilizado nos nomes de minerais (pirite, calcite, dolomite, grafite, etc.) Para as rochas, os petrógrafos portugueses da segunda metade do século XX adoptaram a terminação ito (granito, quartzito, dolomito, antracito, etc.)”.

A. Galopim de Carvalho

FRANCISCO D’OLLANDA

Por A. Galopim de Carvalho Francisco de Holanda (1517-1585) foi uma das maiores figuras do Humanismo, um vanguardista apaixonado pela arte d...