sábado, 7 de setembro de 2024

GERT BIESTA: A NECESSIDADE DE RESISTÊNCIA POR PARTE DOS EDUCADORES

A UNESCO, após publicar o seu relatório Reimaginar os nossos futuros juntos: um novo contrato social para a Educação, realizou um ciclo de conferências designado por Futuros da Educação, numa colaboração entre a Universidade de Lisboa e a Representação desta organização no Brasil. Só agora me foi possível explorar essas conferências, algumas delas de grande interesse. Partilho com os leitores a de Gert Biesta, professor das Universidades de Maynooth e Edimburgo (ver aqui a partir do minuto 15). E reproduzo abaixo uma parte substancial da entrevista que o jornalista Jorge Andrade fez a este filósofo da educação (ver aqui).
"(...) Critica os que enfatizam a importância da continuidade e os que defendem uma mudança radical. Há um outro futuro entre estes dois polos?
Sobre essa questão recordo as palavras do educador americano George Counts, que afirmou ser conservador porque acreditava na conservação de ideias radicais. Preocupo-me com as pessoas que argumentam que a educação precisa de inovação constante. Afinal, o que é novo não é automaticamente melhor. Preocupo-me com as pessoas que querem levar a educação ao encontro de algum tipo de passado romântico em que os professores tinham autoridade e os alunos simplesmente faziam o que lhes era ordenado. Se tal passado alguma vez existiu, foi um passado muito cruel para os alunos, e provavelmente também para muitos professores, e definitivamente não é o passado de que precisamos. Que tipo de mudança é necessária, e onde precisamos de trabalhar contra a mudança, depende criticamente do que consideramos ser o objetivo da educação (...).

Critica a excessiva instrumentalização da educação, enfatizando a importância da formação de sujeitos críticos e autónomos. A que instrumentalização se refere?
A instrumentalização da educação passa pela ideia de que as escolas, faculdades e universidades devem apenas fazer o que a sociedade e o governo querem que façam. Por exemplo, produzir uma força de trabalho qualificada ou transformando crianças e jovens em cidadãos obedientes. Isto não quer dizer que a educação não tenha aqui um papel a desempenhar, mas se isto é tudo o que esperamos da escola, então as crianças e os jovens são vistos apenas como objetos que precisam de ser treinados e influenciados, e esquecemos que também precisamos de ajudá-los a conduzir a própria vida. Como educadores, deveríamos, por outras palavras, preocupar-nos também com a liberdade dos nossos alunos e com o desafio que se lhes coloca, o de usarem bem a sua liberdade. Isto tem algo a ver com uma preocupação com a autonomia, desde que não pensemos que autonomia significa estar desconectado dos outros seres humanos e apenas fazer o que se quer. O desafio passa, antes, por viver a sua própria vida de tal forma que haja espaço para que as outras pessoas vivam também a sua vida, o que exige, sempre, compromissos e limitações. A ambição da educação deveria ser, portanto, encorajar as crianças e os jovens a tornarem-se indivíduos democráticos, o que não é uma tarefa nada fácil, mas é muito importante.

Como podemos garantir que a educação não se torna simplesmente um meio para fins utilitários? Por exemplo, como referiu, responder apenas à procura do mercado de trabalho.
Significa que nós, enquanto académicos e também como educadores, precisamos de oferecer resistência às tendências de fazer da educação apenas um instrumento ao serviço de interesses terceiros. É aqui que a escola tem o “dever de resistir”, como referiu o académico francês Philippe Meirieu. A questão-chave, claro, é em que base podemos oferecer tal resistência. Para isso, pode ser útil observar que a escola vive, na verdade, numa realidade dupla. Por um lado, responde a uma função das sociedades modernas que surgiu quando a vida quotidiana começou a perder a sua qualidade educativa: quando o trabalho passou de casa para escritórios e fábricas, por exemplo. Mas a escola é também o tempo que dedicamos a que uma nova geração possa conhecer o mundo e encontrar a sua relação com o mundo. E disponibilizamos este tempo porque queremos dar aos jovens a oportunidade, julgo que honesta, de entrarem na sua própria vida. Vem a propósito disto recordar que a palavra grega “escola” significa, na verdade, “tempo de ócio”, tempo que ainda não foi tornado produtivo, ainda não reivindicado por outras forças.

Destaca a importância da relação entre professor e aluno como fundamental para uma educação de qualidade. Como pode o professor equilibrar a transmissão de conhecimentos aos alunos com o estímulo ao seu pensamento crítico e à autonomia?
Na verdade, penso que a educação implica sempre uma relação triádica entre professor, aluno e o mundo, e que o gesto básico da educação é voltar a atenção dos alunos para o mundo. E neste contexto, o mundo não é apenas um “objeto” ou “área” sobre o qual se pode adquirir conhecimento. O mundo também coloca questões que nos são endereçadas. Precisa do nosso cuidado, por exemplo (...). Mais do que autonomia e pensamento crítico, talvez haja um trabalho a fazer na tentativa de sensibilizar os nossos alunos para as questões que o mundo natural e social nos endereça. Chamo a isto uma educação centrada no mundo.

Onde se situa a escola entre a necessidade de responder às demandas da sociedade e a necessidade de preservar-se desta?
Devemos reconhecer que a escola tem um “trabalho” importante a fazer no contexto da sociedade (...). Mas, como se percebe a partir do que referi anteriormente, isto não é tudo o que compete às escolas. A escola também tem a sua própria “preocupação”, a de cuidar de oferecer às crianças e aos jovens uma oportunidade justa para seguirem com as suas vidas, com a sua própria independência, rumo a iniciativas e a responsabilidades. Equilibrar estas duas exigências é bastante difícil, também porque as escolas estão sob muita pressão inútil para garantir que os seus alunos tenham avaliações “altas” em conhecimentos e competências mensuráveis. Esta pressão, que é intensificada por sistemas ridículos como o PISA da OCDE (...).

A sua teoria sobre a “emancipação” na educação destaca a importância de capacitar os alunos para se tornarem agentes de mudança. Como pode isto ser realizado na prática educativa?
Na verdade, não sou fã da linguagem do empoderamento e também não tenho a certeza sobre a mudança, porque às vezes o que é necessário é lutar contra a mudança, se essa mudança estiver a piorar as coisas. O problema do empoderamento é que ele evoca a imagem de crianças e jovens a ganharem mais poder, mas o principal desafio não é, ou não é apenas, obter mais poder. É muito mais importante ser-se capaz de julgar o que fazer com esse poder. Podemos ver isto à escala global, com políticos muito poderosos que usam o seu poder de formas horríveis. Portanto, o julgamento é, talvez, uma qualidade ainda mais importante a ser abordada. Um julgamento democrático que se concentra no valor de viver a vida na pluralidade e na diferença ou, se quiser, viver a vida com uma orientação para a igualdade e para a paz. Em vez de empoderarmos, precisaríamos, realmente, de trabalhar no oposto, o que poderíamos chamar de desarmamento: uma capacidade de permanecermos abertos e sensíveis.

Há inúmeros argumentos a favor da tecnologia e de como esta remodela radicalmente a educação. No entanto, é crítico em relação ao papel da tecnologia na educação. Considera que a escola não precisa das tecnologias?
Diria que a escola é em si uma tecnologia – a escola é artificial. O currículo, os livros didáticos, a organização das escolas em turmas são tecnologias que utilizamos para fazer a educação acontecer. O desafio das tecnologias é que devem ser vistas como meios, mas muitas vezes tornam-se fins em si mesmas. Não há nada de errado num bom livro didático, mas se pensarmos que a educação consiste em memorizar o conteúdo desse livro e passar num teste, então o livro didático torna-se um fim em si mesmo. Julgo que este é um perigo ainda maior com as tecnologias “digitais” contemporâneas, porque muitas vezes parecem muito tentadoras e trazem grandes promessas. Por causa disso, podemos rapidamente esquecer que na educação tudo começa com aquilo que procuramos – o objetivo e o propósito da educação – e é apenas em função disso que podemos decidir que tipo de tecnologias podem ser úteis e significativas. Face a isto, sou muito crítico em relação às tecnologias modernas, talvez ainda mais porque muitas pessoas esquecem-se de fazer as perguntas educativas e pensam apenas que a tecnologia deve ser usada porque está disponível."

2 comentários:

Anónimo disse...

Incentivado por esta entrevista ao professor Gert Biesta, eminente filósofo da educação, exponho seguidamente um breve depoimento baseado na minha experiência de vida ao longo dos últimos cinquenta anos, tanto como aluno do liceu e universitário, quanto como professor do 3.º ciclo e ensino secundário:
A crise geral no ensino e na educação que temos vivido nas últimas cinco décadas afeta sobretudo o ciclo de transição entre os anos de aprendizagem das primeiras letras e o ensino universitário, ou seja, aquilo que outrora se chamava ensino liceal e que atualmente é designado por ensino secundário com 3.º ciclo.
Noutros tempos, o ensino liceal não era obrigatório. Era uma preparação meticulosa das elites culturais que, mais tarde, ocupariam os postos de liderança na organização política e administrativa do país. Também existia o ensino industrial e comercial, ajustado para aqueles que almejavam uma promissora carreira como empregados de escritório, com grandes oportunidades no comércio a retalho e por grosso, na banca, nos serviços públicos, nas fábricas, e por aí adiante. Em resumo, o ensino secundário, de forma geral, abria as portas para empregos mais bem remunerados do que os da agricultura, sem exigir a frequência dos chamados cursos superiores das universidades e dos politécnicos. Mas, hoje em dia, tudo mudou. A sociedade decidiu que, no campo da educação e do ensino, somos todos iguais. Portanto, nada de percursos escolares distintos que levem a diferentes profissões: agora, todos os alunos devem terminar licenciados, mestres, ou doutores, quer queiram quer não.
Assim, os liceus e as escolas industriais perderam toda a sua importância. O que realmente importa agora são os estudos superiores!
Consequentemente, as escolas secundárias foram transformadas em autênticos depósitos de jovens dos quais os professores devem tomar conta. A nobre tarefa do ensino secundário foi transferida para o Google e a Inteligência Artificial. A filosofia da educação do Professor Gert Biesta também já foi substituída pela filosofia do Ubuntu.

Anónimo disse...

É preciso resistir!
Hoje, o senhor Ministro da Educação anunciou que vai acabar com o projeto Maia.
Viva Portugal!

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