Mais uma belíssima crónica de Eugénio Lisboa, publicada inicialmente no "Jornal de Letras", que a mim muito me diz sentimentalmente por nessa bela cidade do Índico ter vivido 18 anos de intensa e saudosa memória:
A felicidade
é caprichosa: não se deixa facilmente capturar por quem a persegue. Dizia
Bertrand Russell que a melhor maneira de se conseguir a felicidade não é
procurá-la, directamente. Ela é,
repito, caprichosa. Surpreende-nos, quando menos a esperamos. E toma conta de
nós, pelas vias mais insuspeitadas.
Toda a gente
conhece, de o ter lido ou de nele ter ouvido falar, o episódio relatado pelo
narrador de À la recherche du temps perdu
(de Proust), relativo à pequena “madeleine” que, embebida em chá e oferecida ao
narrador pela sua tia, lhe trouxe inesperadamente e involuntariamente à
memória, pelo seu sabor, todo um mundo do passado: a velha casa cinzenta, a
cidade, a praça, a igreja, Combray e os seus arredores, a boa gente da terra…
Um universo que, assim involuntariamente trazido à memória, se revela portador
de uma indescritível felicidade. Levar à boca a pequena “Madeleine” impregnada
de chá de tília foi a via insuspeitada de activar uma memória criadora de
felicidade.
Todos nós, ao
longo das nossas vidas, passámos por experiências análogas, mas, na maioria dos
casos, passa-se por isso com alguma desatenção e sem se lhe atribuir
importância ou significado de maior. Por vezes, porém, a experiência toca-nos
tão fundo que, por momentos, não podemos deixar de reparar nela. Proust,
psicólogo e anotador minucioso, deu-lhe, na sua Recherche, uma importância e um significado enormes. É um exemplo extraordinariamente elaborado de
“memória involuntária”, capaz de surpreender e encher de felicidade quem passa
por tal experiência. Eis, nas inesquecíveis palavras de Proust: “E assim que
reconheci o gosto do pedaço de madeleine embebido no chá de tília que me dava a
minha tia (embora não soubesse ainda e devesse remeter para bem mais tarde
descobrir a razão por que essa recordação me tornava tão feliz), imediatamente
a velha casa cinzenta na rua (…), e as boas pessoas da aldeia e as suas
pequenas habitações e a igreja e toda a Combray e os seus arredores, tudo isso
que ganha forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha chávena de chá.”
Trata-se de uma passagem justamente célebre, naqual se poderá rever – agora
arrancado da sua desatenção pela minúcia
da atenção de Proust – o leitor do romance celebrado.
Tenho
voltado muitas vezes a este momento do folhetim psicológico de Proust, que
profundamente me tocou por ter eu próprio vivido momentos idênticos e tão ou
mais intensos do que os experimentados pelo narrador de À la recherche du temps perdu. É um desses momentos que agora aqui
vos trago.
Vivi em
Londres dezassete bem fruídos anos – de 1978 a 1995 – na qualidade de
conselheiro cultural da nossa embaixada. Foram dezassete anos cheios de uma
variada vivência cultural, numa cidade em que a oferta era imensa e de grande
qualidade. Foram anos felizes mas muito diferentes da vida que deixara para
trás: 38 anos de experiência africana, em Lourenço Marques, cidade onde nascera
e onde passara os primeiros dezassete anos da minha formação. Ali me casara e
ali me nasceram duas filhas.
Culturalmente
falando, Lourenço Marques não era uma cidade sem interesse: com um bom
Cine-Clube, um Núcleo de Arte, grupos de teatro amador de grande qualidade (um
deles dirigido por Mário Barradas) e páginas culturais cheias de vivacidade em
vários jornais, com cinema onde a censura era menos apertada do que nas salas
de Lisboa ou Porto (no Cine-Clube, vimos todo o cinema soviético – Eisenstein,
Pudovkine, etc - , polaco, checoslovaco, romeno, húngaro, francês, sem que o
censor visse objecção), com uma vida de grande convívio e tertúlia, cimentada
nas reuniões de A Voz de Moçambique ou do Cine-Clube ou, aos sábados de manhã,
nas visitas às boas livrarias que por lá havia – não se morria propriamente de
tédio. De uma maneira muito intensa e muito especial, era-se feliz. E era uma maneira de se ser feliz muito diferente da
maneira de se ser feliz, em Londres.
Nesta grande cidade, faltavam-nos as tertúlias, o convívio assíduo e de porta aberta, a conversa quotidiana, o desafio constante, as polémicas intermináveis, a cumplicidade entre amigos. Londres tinha coisas que em Lourenço Marques não havia, mas, por outro lado, não tinha outras que em Lourenço Marques havia. Era-se, em suma, feliz de modo diverso. Londres tinha indiscutivelmente uma maior diversidade de oferta e coisas (exposições, teatro profissional, música, ópera) de uma qualidade excelsa, que em Lourenço Marques eram impensáveis. Mas faltava-lhe a camaradagem quotidiana, o convívio quente, a amizade cúmplice sempre à mão de semear, a dialética vivificadora…
Nesta grande cidade, faltavam-nos as tertúlias, o convívio assíduo e de porta aberta, a conversa quotidiana, o desafio constante, as polémicas intermináveis, a cumplicidade entre amigos. Londres tinha coisas que em Lourenço Marques não havia, mas, por outro lado, não tinha outras que em Lourenço Marques havia. Era-se, em suma, feliz de modo diverso. Londres tinha indiscutivelmente uma maior diversidade de oferta e coisas (exposições, teatro profissional, música, ópera) de uma qualidade excelsa, que em Lourenço Marques eram impensáveis. Mas faltava-lhe a camaradagem quotidiana, o convívio quente, a amizade cúmplice sempre à mão de semear, a dialética vivificadora…
Ora, num
certo dia da minha estadia em Londres, resolvi ir de viagem, no meu carro, até
à margem sul do Tamisa (a South Bank), numa qualquer missão de serviço. Saí da
embaixada por volta das onze horas da manhã e fui ao meu destino. Estava um dia de sol relutante mas abafado e
ameaçando chuva. Chegado à South Bank, estacionei o carro e dirigi-me, a pé, ao
local onde tencionava ir. Fui andando e, subitamente, começou a chover. Não sei
bem porquê, soube-me bem. Recebi a
chuva quase como uma bênção, numa espécie de expectativa de nem sabia bem o
quê. E, de repente, subiu do chão até mim o bafo capitoso da terra molhada.
Uma
difusa sensação de felicidade tomou, com grande força e intensidade, conta de
mim. Aquele era o cheiro da terra molhada que eu tantas vezes experimentara, em
Lourenço Marques, nas minhas sortidas à praia da Polana: aquele bom cheiro da
terra fecundada pela chuva tropical. Era esse
mesmo cheiro que agora se me oferecia, ali, na margem sul do Tamisa.
Levava-me de novo, transportava-me a Lourenço Marques, numa viagem improvável
mas imensamente real. Por momentos, eu
estava em Lourenço Marques e não em Londres. E, repito, incrivelmente
feliz, não de uma felicidade londrina, mas de uma felicidade perfeitamente
laurentina.
Daquele cheirinho a terra molhada saíra todo um meu passado de
cumplicidades, amizades e convívio tal como os fruíra no meu tempo de Lourenço
Marques. Ao meio dia de um dia de calor, na margem sul do Tamisa, rodeado de
coisas londrinas, eu estava de novo a ser feliz em Lourenço Marques. Recuperara
uma felicidade antiga, que se substituía a outra mais recente. A felicidade
obtém-se, já o disse, por vias enviesadas. Por via do bom cheirinho da terra
molhada, em Londres, eu ascendi, nesse dia de verão chuvoso, à felicidade
peculiar que, tantos anos antes, me visitara em Lourenço Marques.
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