sexta-feira, 23 de abril de 2021

O FAUSTO DE MANN E OUTROS FAUSTOS

Meu artigo no último JL:

Acaba de sair em português na Relógio d’Água O Doutor Fausto. A Vida do Compositor Alemão Adrian Leverkühn, Contada por um Amigo, do escritor alemão Thomas Mann (1875-1955). É uma das obras maiores do autor de Os Buddenbrooks, A Montanha Mágica e José e os Seus Irmãos, que ganhou o Nobel da Literatura de 1929. Já havia uma tradução do Doutor Fausto (Dom Quixote, 1996), feita a partir de uma versão brasileira, mas esta, de António Sousa Ribeiro, um germanista da Universidade de Coimbra que já tinha traduzido A Montanha Mágica (Relógio d’Água, 2020) e é autor de traduções dos austríacos Karl Kraus e Hermann Broch, recomenda-se por ter sido feita de raiz no nosso português. Contém um útil prefácio e notas, sucintas, do tradutor.

O livro de Mann, cujo original é de 1947, inspira-se na lenda do alquimista alemão Johann Georg Faust, que viveu entre os séculos XV e XVI, sobre o qual surgiu de autor anónimo a Historia Von D. Johan Fausten (1587), contando como Fausto vende a alma ao Diabo em troca de dons que não tinha. Não demorou a surgir a peça do inglês Christopher Marlowe Doutor Fausto (1604). A mesma história inspirou o poema dramático Fausto (1808) do alemão Johann Wolfgang von Goethe, que teve uma sequela (1832). O alquimista vende a alma a Mefistófeles em troca de saber e, portanto, poder, mas acaba por morrer na maior agrura. No século XX, Fernando Pessoa  haveria de escrever ao longo de décadas o poema dramático  Fausto,  do qual há várias edições póstumas recriadas a partir de um labirinto de fragmentos (a última é de Carlos Pitella, Tinta da China, 2018). Na mesma época, o poeta francês Paul Valéry escreveu uma sua continuação do Fausto, Mon Faust (1946), que ficou, como o de Pessoa, inacabado.

A lenda de Fausto ficou colada à recepção social da ciência. Marlowe precedeu de pouco o triunfo dos grandes nomes da Revolução Científica. Nessa altura os cientistas começaram a aparecer na ciência como charlatães… Por sua vez, a obra prima de Goethe situa-se no Romantismo, quando a arte contesta a húbris da ciência, que tinha crescido enormemente no Iluminismo. Já os Faustos de Pessoa e Valéry são modernos, tal como o de Mann, sendo coevos de um tempo em que tanto a arte como a ciência explodiam em novas formas.

A obra de Mann, escrita entre 1943 e 1947 no exílio nos EUA (Mann fugiu de 1938 da Alemanha nazi) é um romance filosófico. Aqui em vez de um alquimista há um compositor. Mann inventou um personagem, o maestro Adrian Leverkühn, cuja biografia é contada por um amigo. No capitulo 25, a meio do livro, o Diabo faz a sua entrada em cena. O amigo transcreve escritos auto-biográficos do músico. A sedução diabólica transparece neste diálogo:

 Ele [o Diabo]: ‘(…) o Alemão é talentoso, mas lerdo – suficientemente talentoso para se irritar por ser lerdo e superar isso com uma iluminação enquanto o Diabo esfrega um olho. Tu, meu caro, sabias muito bem do que precisavas e não renegaste minimamente a tua natureza alemã quando fizeste a tua viagem e, salva venia, apanhaste aquele encantador mal gálico.’

“Cala-te!’

‘Cala-te? Olha, olha, eis um progresso da tua parte. Estás a aquecer. Finalmente, prescindes das cerimónia do plural e tratas-me por tu, como compete entre pessoas que estão vinculadas por um contrato e estão ajustadas no tempo e na eternidade.’

‘Calai-vos, já disse!’ ”

O mal gálico é a sífilis. O próprio maestro se deixa infectar pela sífilis, pensando que assim alcançaria a genialidade (o exemplo vem de Nietzsche). Como o Diabo não se cala, Adrian também não. Páginas à frente:

Ele: ‘Nós vamos, entretanto, servir-te e obedecer te em tudo, e o Inferno ser-te-á propício, se renunciares a tudo o que vive, a todo o exército celeste e a  todas as pessoas, pois assim tem de ser.’

Eu (sentindo um sopro extremamente frio): ’Como? Essa é nova. O que significa essa cláusula?’

Ele: ‘Significa renúncia. Que outra coisa podia ser? Julgas que o ciúme só habita nas alturas e não também nas profundezas? Tu, delicado ser criado, estás-me prometido e destinado. Não te é lícito amar‘ ”.

No final, Mann diz que a Alemanha se desmorona “abraçada por demónios”, “caindo de desespero em desespero”. Há um óbvio paralelo entre a “morte” da Alemanha e a morte do maestro, embora a alegoria que liga o país ao compositor seja uma teia complexa. O narrador diz, na última frase do romance: “Deus tenha misericórdia da vossa pobre alma, meu amigo, minha pátria.”

Enquanto nos Faustos de Marlowe e Goethe a crítica incide sobre o sábio, pela sua ambição desmedida, já no Faustos de Mann ela recai sobre o artista, que pretende talento e reconhecimento, em vez de ciência e poder. Tanto ciência como arte são buscas humanas que tendem a ignorar os seus limites.

Veja-se, em Pessoa, como tanto a arte como a ciência podem ter por base a loucura e o inconsciente. O poeta põe Goethe a dizer: “Do fundo da inconsciência/ Da alma sobriamente louca/ Tirei poesia e ciência,/ E não pouca/ Maravilha do inconsciente!/ Em sonho, sonhos criei./ E o mundo atónito sente/ Como é belo o que lhe dei.

Aprofundando a relação entre arte e ciência, vale a pena reparar nos paralelos entre Mann e  Einstein. Para além de ambos serem alemães, de ambos terem ganho o Nobel (Einstein em 1921, há cem anos) e de ambos terem sido exilados nos EUA, há outras confluências: ambos estudaram em Munique e ambos foram professores em Princeton. Tendo tido residências próximas, tornaram-se amigos. Ao contrário de Einstein, Mann acabou por regressar à Europa, fixando-se em Zurique, onde Einstein fez estudos superiores. Morreram no mesmo ano.

Einstein passou por Lisboa, em 1925. Mas o mesmo não sucedeu com Mann, apesar de o seu romance As Confissões de Félix Krull se passar, em parte, aí. Contudo, o seu irmão mais velho, Heinrich, também escritor, e os seus filhos, Erika e Golo, foram, na capital portuguesa, refugiados em trânsito para os EUA em 1940. Um colega já falecido de António Sousa Ribeiro, Ludwig Scheidl, foi também refugiado: integrou um grupo de crianças austríacas que chegaram a Portugal na Segunda Guerra Mundial. Tendo sido adoptado por um casal de posses modestas, acabou por fazer carreira académica. Ele é o autor de Fausto na Literatura Portuguesa e Alemã (1987), que aprofunda o que aqui foi dito.

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