Meu capítulo do livro "Revoluções em Flor. 50 anos depois do 25 de Abril de 1974," Coord. Michela Graziani e Annabela Rita, Edifir, Edizione Firenze, 2024:
A Revolução de 25 de Abril de 1974 fez florescer a ciência em Portugal. De facto, o Estado Novo – o regime autoritário que durou desde 1933 até 1974, sob a liderança primeiro de António de Oliveira Salazar (1889-1970) e depois, a partir de 1968, de Marcello Caetano (1906-1980) – não foi grande defensor da ciência. Esse facto é comprovado não apenas pelo reduzido investimento realizado nessa área, mas também pela demissão compulsiva e nalguns casos mesmo a obrigação de exílio de vários cientistas opositores ao regime. De facto, embora a indústria que presidiu ao desenvolvimento do século XX se tenha baseado inteiramente na ciência, Salazar ansiava apenas que Portugal fosse «o magnífico pomar e a esplêndida horta da Europa» e defendia que, «se tivesse de haver competição, continuaria a preferir a agricultura à indústria» (Fiolhais 2018: 997).
Não admira, por isso, que a industrialização portuguesa tenha sido tardia: só no ano de 1963, depois dos outros países industriais europeus, o valor do produto industrial português ultrapassou o da agricultura. Alberto Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar, afirmou num dos seus discursos: «A ciência e a técnica […] são monopólio dos povos ricos e altamente desenvolvidos». Caetano, que entre outros cargos foi ministro das Colónias num dos governos presididos por Salazar, afirmou que a investigação científica teria relevância no «Ultramar», onde era preciso explorar os importantes recursos locais, mas não teria mais do um papel subalterno na denominada Metrópole, o Portugal europeu. A ciência devia ser criada pelos países ricos e, apenas quando necessário, aproveitada pelos países pobres.
No entanto, apesar desse clima político avesso à ciência no regime deposto em 1974, sempre se ensinou ciência em Portugal nos vários níveis de ensino, em particular as universidades, destinadas a formar as elites, e que eram por isso ideologicamente vigiadas. Os professores com ideias contrárias ao regime de partido único eram afastados se as expressassem (cf. Fiolhais; Marçal 2017). Não importava a qualidade ou a relevância do ensino ou da ciência que faziam, mas a sua fidelidade política. Durante a Segunda Guerra Mundial (Portugal permaneceu neutro durante esse conflito), temendo uma influência estrangeira, Salazar não permitiu mais do que vistos de trânsito a cientistas e a outros intelectuais que fugiam os horrores da guerra na Europa. Por outro lado, se é certo que os governos do Estado Novo envidaram alguns esforços de desenvolvimento com base na ciência e na tecnologia, não é menos verdade que esses esforços foram tardios e insuficientes para proporcionar o progresso do país, que permaneceu ao longo de largas épocas economicamente na cauda da Europa. Esses esforços incidiram mais na ciência aplicada do que na fundamental.
Assim, por exemplo, em 1946, foi inaugurado em Lisboa o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), que ajudou na construção de numerosas obras públicas, e, em 1961, foi inaugurado em Sacavém, perto de Lisboa, o Laboratório de Física e Engenharia Nucleares (LFEN), que incluía um reactor nuclear de investigação, destinado a formar cientistas e técnicos que ajudassem o funcionamento de projectadas centrais nucleares (estas nunca vieram a ser construídas, tendo o reactor de Sacavém sido desactivado em 2019, quando já estava obsoleto). Na medicina, área na qual havia uma longa tradição em Portugal, o governo não valorizou devidamente o até agora único Nobel português nas áreas das ciências – o neurologista António Egas Moniz (1874- 1955), que ganhou o prémio na área da Fisiologia ou Medicina no ano de 1949 «pela sua descoberta do valor terapêutico da leucotomia em certas psicoses» (ele já antes tinha sido proposto para o Nobel por outra técnica que desenvolveu, a arteriografia cerebral). Um alto« funcionário do governo português chegou a chamar-lhe depreciativamente «meio-prémio Nobel», só porque o prémio foi dividido por outro médico, o suíço Walter Rudolf Hess, por trabalho feito de forma independente noutro campo da neurologia (cf. Fiolhais 2005). O Estado procurava nos maiores hospitais do país acompanhar os grandes progressos que se desenrolaram na medicina ao longo do século XX, mas tratava-se, excepto em casos raros, da aplicação de ciência vinda do estrangeiro.
Um forte condicionante do desenvolvimento da ciência era o défice de educação por parte da população em geral. De facto, a educação para além da elementar era apenas acessível a uma reduzida fatia da população. E, por isso, a taxa de analfabetismo foi, ao longo do século XX, uma das maiores da Europa. Este estado de coisas só começou a mudar significativamente no início dos anos de 1970 com a reforma educativa do então ministro da Educação José Veiga Simão (1929-2014), professor de Física da Universidade de Coimbra que tinha sido o primeiro Reitor da Universidade de Lourenço Marques, em Moçambique, onde deixou obra notável. Ele pugnou pela democratização do ensino, incluindo o superior, tendo criado durante o seu mandato outras universidades para além da de Coimbra, fundada em 1290 (originalmente em Lisboa), e das de Lisboa e Porto, criadas em 1911, logo após a implantação da República, que durou escassos 16 anos, derrubada que foi pelo golpe militar de 28 de Maio de 1926, o início de um longo tempo ditatorial.
No dia 25 de Abril de 1974 eclodiu a liberdade (curiosamente, o dia 25 de Abril em Itália é também celebrado como o dia da libertação, mas a liberdade italiana é 29 anos mais antiga). O golpe militar português, agora democrático, perpetrado por jovens oficiais descontentes com a guerra que travavam em três colónias africanas (Guiné, Angola e Moçambique, na altura chamadas «províncias ultramarinas»), redundou numa explosão libertária celebrada com alegria nas ruas (cf. Léonard 2024). Acabou a polícia política e a censura. Começaram a ser preparadas eleições livres para uma Assembleia Constituinte, que tiveram lugar em 25 de Abril de 1975. A noiva Constituição, que conferia aos cidadãos de forma equalitária direitos, liberdades e garantias foi promulgada em 1976. Os propósitos da Revolução podiam ser resumidos a três verbos, apregoados nesses tempos que foram naturalmente de algum caos político: Descolonizar, Democratizar e Desenvolver.
Com o novo regime, não só se resolveu rapidamente a questão colonial em favor da autodeterminação dos povos africanos (declararam a sua independência em 1975), como se estabeleceu um ambiente de liberdade, indispensável à criação intelectual, tanto nas artes como nas ciências (em particular, nas ciências sociais e humanas, que se encontravam bastante limitadas no regime anterior), e de igualdade, bem patente no alargamento do acesso dos jovens à escolaridade (o ensino superior aumentou drasticamente com a criação de novas escolas, tanto universidades como institutos politécnicos). Também se percebeu que o desenvolvimento do país exigia uma maior aposta na investigação científica, que não tinha de privilegiar a investigação aplicada, mas antes de imitar o que faziam outros países mais desenvolvidos. A ciência e tecnologia foram particularmente impulsionadas pela entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, antecessora da actual União Europeia (UE), logo no início de 1986, quando Mário Soares (1924-2017) era primeiro ministro. Uma parte, ainda que relativamente pequena, dos fundos de coesão que Portugal passou a receber da UE foi aproveitada para proporcionar maior formação de pessoas e para a criação de algumas infraestruturas académicas, científicas e tecnológicas.
Um ano decisivo na história recente da ciência em Portugal foi o de 1995, ano em que foi criado, no primeiro governo do primeiro-ministro António Guterres (n. 1949, hoje secretário geral das Nações Unidas), o Ministério da Ciência e Tecnologia, pasta atribuída a José Mariano Gago (1948-2015), professor de Física do Instituto Superior Técnico, em Lisboa (cf. Fiolhais 2011). Mariano Gago, ministro em dois governos de Guterres e em dois de José Sócrates (nestes últimos, juntando o Ensino Superior à Ciência e Tecnologia, por serem áreas directamente relacionadas), foi, sem dúvida, a figura de mais relevo na ciência em Portugal nos últimos 50 anos. Ele pôs em prática com notável sucesso um plano de modernização e internacionalização da ciência portuguesa, anunciado no seu Manifesto para a Ciência em Portugal (cf. Gago 2023) de 1990. Criou em 1996 a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), herdeira de organismos como a Junta Nacional para a Investigação Científica e Tecnológica (JNICT) e o Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC), e de outros mais antigos, que se destinava a apoiar financeiramente a formação académica, a prossecução de projectos de investigação e o equipamento de laboratórios e institutos científicos. Montou o sistema de ciência e tecnologia que basicamente continua hoje vigente, com uma rede de mais de 300 centros de investigação que cobrem praticamente todas as áreas do conhecimento, não esquecendo a promoção da cultura científica de modo a consciencializar a sociedade da necessidade da ciência (criou, para este efeito, a Agência Ciência Viva, que foi nos seus primeiros tempos inovadora, mas que ultimamente tem estado quase parada).
Foi criado um procedimento de avaliação internacional da actividade desses centros. No ano de 2000 surgiram os primeiros Laboratórios Associados, centros de investigação de maior escala cuja missão era ajudar o Estado em áreas específicas de desenvolvimento, acrescendo aos Laboratórios do Estado como o LNEC que já existiam. Foi procurada a internacionalização da ciência portuguesa. Portugal, que tinha entrado para a Organização Europeia de Investigação Nuclear (CERN) em 1985, entrou para a Agência Espacial Europeia (ESA) em 2000 e para o Observatório Europeu do Sul (ESO) em 2001, juntando-se nessas áreas à maioria dos países europeus (cf. Fiolhais 2013). No lado do sector privado, pontificaram a Fundação Calouste Gulbenkian, criada em 1956 na sequência do testamento de um filantropo arménio, que em 1961 instalou o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras, e a Fundação Champalimaud, surgida em 2004 por vontade de um filantropo português, que instalou o Centro de Investigação para o Desconhecido (CID), em Lisboa. Tanto o IGC como o CID desenvolvem investigação avançada nas áreas da biologia e da medicina, procurando o seu cruzamento.
Para verificar a enorme transformação que o país realizou na ciência no regime democrático instaurado em Abril de 1974, basta olhar para a PORDATA, uma vasta base de dados sobre Portugal e a Europa que foi criada por uma outra fundação mais recente, a Fundação Francisco Manuel dos Santos (cf. PORDATA). Pode-se aí ver que, em 2022 (último ano para o qual existem dados oficiais), havia em Portugal quase 60.000 investigadores, medidos pela unidade de «equivalente a tempo inteiro», dos quais 26.500 no sector privado, ao passo que em 1982 (quando, com uma mudança constitucional, acabou o Conselho da Revolução, formado apenas por militares, que era um resquício da Revolução de 1974), eles não chegavam a 5000: portanto, o número de investigadores aumentou de mais de dez vezes em 40 anos.
Três medidas da produtividade científico-tecnológica reconhecidas internacionalmente são a formação de novos doutores, a publicação de artigos científicos e o registo de patentes:
1. Em 2022 foram concluídos em Portugal 2317 doutoramentos: portanto, nos 40 anos que mediaram entre 1982 e 2022, o número de novos doutorados aumentou quase 20 vezes. É de destacar o facto de a maior parte dos novos graus doutorais estarem desde há anos a ser atribuídos a mulheres, reflectindo a extraordinária ascensão social das mulheres que a Revolução de Abril proporcionou. O país atingiu o máximo na formação anual de doutores em 2014, tendo ocorrido depois disso um ligeiro declínio.
2. Quanto à publicação de artigos o progresso português foi ainda mais notável. Se no ano de 1982 os investigadores a trabalhar em Portugal (alguns deles estrangeiros, dada a internacionalização da ciência portuguesa) publicaram apenas 388 artigos, em 2022 esses investigadores (agora com maior proporção de estrangeiros) publicaram 30.078 artigos, quase 80 vezes mais. A maior parte desses artigos referem-se às áreas das ciências exactas e naturais – com 11.557 publicações – seguindo-se a área das ciências médicas e da saúde, em crescimento rápido nos últimos tempos – com 11.692 publicações. As áreas das humanidades e artes e das ciências sociais, esta última muito forte no número de novos doutoramentos, podem não estar convenientemente representadas nestas estatísticas, por haver numerosos artigos saídos em revistas nacionais, muitos deles escritos em português, que não estão indexadas nas bases de dados internacionais.
3. Por último, considerando as patentes, tendo o país partido de um patamar muito baixo, houve algum crescimento, ainda que claramente insatisfatório: se, no início dos anos de 1980, não havia pedidos de patentes na chamada Via Europeia (mais exigente que a Via Nacional), em 2022 já houve 312 pedidos, dos quais foram concedidas 67 patentes. Estes números são pequenos, considerados os padrões internacionais.
O crescimento da ciência e da tecnologia, inequivocamente medidos com essas métricas, só foi possível graças a enorme aumento da escolaridade da população, designadamente na habilitação com o ensino superior (hoje existem mais de 400.000 estudantes no ensino superior, numa população de cerca de dez milhões de habitantes), e obviamente, a um grande salto no financiamento das actividades de investigação, realizadas quer por entidades públicas quer por entidades privadas. Em 1982 só se investiu na ciência e tecnologia 0,3% do PIB – Produto Interno Bruto (dos quais 0,1% do lado das empresas), mas em 2022 o valor desse investimento já foi de 1,7% (dos quais 1,1% do lado das empresas), portanto quase seis vezes maior. É difícil, devido à inexistência de estatísticas oficiais, indicar a percentagem de investimento em ciência e tecnologia em 1974, o ano da «Revolução dos Cravos», mas algumas estimativas indicam que ele deve ter sido aproximadamente de 0,1%, o que significa o crescimento de 17 vezes nos últimos 50 anos (cf. Fiolhais 2023). O crescimento foi maior em valores absolutos porque o PIB nesse mesmo período cresceu (o PIB per capita passou de 9,5 mil euros em 1974 para 23,6 mil euros em 2022).
A Revolução de Abril iniciou, portanto, um boom da ciência e da tecnologia em Portugal. Mas não nos devemos impressionar pelo crescimento relativamente ao passado (Portugal estava, de facto, muito atrasado em 1974 relativamente aos outros países europeus): os valores portugueses atrás indicados devem ser lidos à luz de comparações internacionais, em especial com os outros países europeus. O valor mais recente do investimento de Portugal em ciência e tecnologia, 1,7% do PIB, está claramente aquém da média europeia de 2,2% (um conjunto de cinco países – a Bélgica, a Suécia, a Áustria, a Alemanha e a Dinamarca – estão na liderança, todos eles com valores superiores a 3%). Mas alguns dados são bem menos abonatórios para Portugal: os fundos do Orçamento de Estado português para a ciência representam apenas 0,4% do PIB, um número semelhante ao do início dos anos 1990, em nítido contraste com a média europeia desse índice, que é de 0,7% (cf. Fiolhais 2023).
No número de investigadores Portugal compara bem com a média europeia, após a necessária divisão pelo número de pessoas activas (pessoas entre os 25 e os 64 anos), estando a participação feminina bem acima da média europeia: em Portugal as mulheres são maioritárias em muitos ramos da ciência. No número de novos doutores em cada ano, apesar do esforço realizado, Portugal está ainda abaixo dessa média; não existem, por isso, doutores a mais. Na proporção do número total de doutores pelo número de pessoas em idade activa, o país ainda permanece abaixo da média europeia. E, no número de artigos científicos por habitante, Portugal está um pouco acima da média europeia, o que já não acontece se considerarmos os artigos que estão no top 10% dos mais citados, um índice de relevância científica em que o país se situa abaixo daquela média: estes dados mostram que os investigadores portugueses aproveitam bem o investimento que recebem. Onde Portugal tem, porém, um problema maior nas comparações internacionais é no registo de patentes: a posição nacional ainda é na cauda da Europa.
E o mesmo se aplica a outros índices que traduzem o impacto da ciência na economia, como, por exemplo, o capital de risco em percentagem do PIB (normalmente esse capital serve para comercializar bens ou serviços de base científico-tecnológica) ou a exportação e produtos de média e alta tecnologia relativamente ao total de exportações (cf. European Commission 2022). O Global Innovation Index de 2021, que aglomera um conjunto diverso de índices de inovação, dá a Portugal o 31.º lugar no mundo, que corresponde ao 18.º lugar da EU (cf. WIPO 2021). Há muito caminho para percorrer. Para isso, é absolutamente necessário aumentar o investimento português em ciência e tecnologia aproximando-o da média europeia. Ora esta média é móvel: a UE ambiciona investir em média 3,0% do PIB nesse sector no ano de 2030 e será muito difícil para Portugal cumprir esse objectivo.
A ciência, embora tendo crescido significativamente em Portugal desde 1974,« conheceu um abrandamento, designadamente na última década e meia. A intervenção de resgate financeiro em 2011 realizada por três entidades – a troika, constituída pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Central Europeu (BCE) e a Comissão Europeia (CE) – foi um duro golpe para a ciência portuguesa do qual tem custado a recuperar, apesar de ter havido uma saída do controlo da troika logo em 2014. A ciência portuguesa poderia, de facto, estar melhor. Indicam-se aqui alguns dos possíveis caminhos de melhoria:
– A ligação entre as instituições de ensino superior tem de melhorar (nunca descurando evidentemente a ciência fundamental), uma vez que ela ainda não é suficientemente fluida. Por sua vez, as empresas têm de dinamizar mais as actividades de investigação e desenvolvimento no seu seio, multiplicando alguns bons exemplos que já existem, como a Bial e a Hovione, na área farmacêutica, ou a Critical Software, na área da informática.
Nos países mais avançados da Europa cerca de dois terços do investimento em ciência e tecnologia é da responsabilidade do sector privado, mas em Portugal essa proporção é de pouco mais de metade, a acreditar nos valores das estatísticas oficiais (há razões para crer que algumas empresas estarão a inflacionar esses valores, devido à existência de benefícios fiscais que premeiam esse tipo de investimento). Acontece que a rede de empresas portuguesas é constituída maioritariamente por Pequenas e Médias Empresas (PME), não sendo óbvia para muitos gestores de empresas desse tipo a necessidade de investir em ciência e tecnologia: concentrando-se no curto prazo, preferem muitas vezes procurar no mercado soluções «chave na mão», em vez de desenvolverem as suas próprias soluções, em processos de inovação.
– Além disso, o Estado tem de investir mais no sistema de ensino superior público, que está largamente subfinanciado se considerarmos os padrões internacionais. Mediante a celebração de contratos-programa o governo poderia encorajar a actividade científica dentro das universidades e institutos politécnicos. De facto, o sistema científico nacional montado por Mariano Gago privilegiou a criação de instituições privadas sem fins lucrativos para a execução rápida dos fundos provenientes da UE, quando o conhecimento científico estava maioritariamente localizado no corpo docente universitário. A razão invocada foi a existência de estruturas administrativas pesadas, integradas com a máquina da administração pública.
Um dos destinos do reforço de investimento devia, nos dias de hoje, ser a contratação de um número considerável de jovens doutores para as instituições públicas de ensino superior, seja como professores seja como investigadores. De facto, muitos jovens doutores portugueses em várias áreas têm vivido situações precárias, sujeitos a sucessivos contratos a termo, vendo-se alguns na contingência de emigrar para países onde o seu talento é mais reconhecido.
As escolas superiores públicas em Portugal têm sido financiadas segundo critérios assentes essencialmente no número de estudantes, não sendo premiada a produtividade científico-tecnológica, medida pelo número de novos doutores, pelo número e qualidade dos artigos científicos e pelo número e utilidade das patentes. Se acaso o fosse, elas não hesitariam em empregar mais membros da que já foi chamada «geração mais qualificada de sempre».
– Para além das universidades e institutos politécnicos, Portugal não dispõe, como a Espanha, a França e a Alemanha, de uma rede pública, espalhada pelo país, de instituições capazes de fornecer saber especializado para diferentes assuntos. Os Laboratórios de Estado, os Laboratórios Associados e, depois destes, os Laboratórios Colaborativos, que visam uma maior colaboração com empresas, não parecem ser capazes de satisfazer todas as necessidades que se colocam. Por isso terá de aumentar o apoio a esses laboratórios, em particular os Laboratórios de Estado, mais antigos, mas que têm sido preteridos nas políticas recentes em favor dos Laboratórios Associados e Colaborativos. É nítido desde há décadas o desinvestimento em instituições como o já referido LNEC, na área da engenharia civil, e o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), na área da saúde pública, que podem e devem ajudar o Estado na formulação e concretização de algumas das suas políticas. Se tivesse mais gente e mais meios, o INSA, com sede em Lisboa e uma delegação no Porto, poderia ter desempenhado um papel mais activo durante a crise da COVID-19.
Note-se que a distribuição de instituições científicas no território nacional é muito desigual, registando-se uma enorme concentração em Lisboa e Porto, maior em Lisboa do que no Porto. Os processos de regionalização e de descentralização têm conhecido sucessivos obstáculos.
Vale a pena comparar, ainda que de forma resumida, o panorama da ciência e tecnologia em Portugal e na Itália. São ambos países do Sul da Europa, mas a Itália tem maior tradição científica, podendo dizer-se que foi lá que, com Galileu, no século XVII, se iniciou a Revolução Científica e foi lá também que a Revolução Industrial, no século XIX, encontrou um terreno fértil. Conclui-se dos dados internacionais publicados na PORDATA pela Fundação Francisco Manuel dos Santos que a Itália tinha, em 2022, 6,6 investigadores por mil activos, ao passo que Portugal tinha 11,8 (cf. PORDATA). Dos investigadores portugueses 41,9% eram mulheres, ao passo que dos italianos elas representavam 36,1%. Conclui-se também desses dados:
1. Portugal tem, nos últimos tempos, formado comparativamente mais novos doutores do que a Itália. Em 2021 finalizaram o doutoramento 20,1 pessoas por mil habitantes, ao passo que em Itália foram 13,7 por mil. Mas um facto curioso é que a Itália desceu ligeiramente do valor que tinha em 2004 (14,7 por mil), ao passo que Portugal subiu muito relativamente a esse ano (8,5 por mil). Os dois países são modelares na quota feminina desses doutoramentos, estando Portugal um pouco à frente: em 2021 tinha 50,9% enquanto a Itália tinha 48,9%.
2. Em 2020, os investigadores em Itália publicaram 85.419 artigos científicos e técnicos, o que dividido pelos 58,9 milhões de habitantes dá 145 artigos por cem mil habitantes, ao passo que Portugal produziu 281 por cem mil habitantes. No entanto, se olharmos apenas para a fatia de 10% de publicações mais citadas, concluímos que a Itália bate Portugal.
3. Portugal tinha, em 2017, 142 pedidos de patentes a Organização Europeia de Patentes (EPO), ao passo que a Itália tinha 4148 pedidos. Para uma comparação justa, é necessário dividir estes valores pelo número de habitantes, um factor de seis a favor de Itália. É claro que Itália tem um considerável avanço.
Em 2022, a Itália apresentava um investimento em ciência e tecnologia, inferior ao português, medido em percentagem do PIB, é de 1,3% (do qual 0,8% de empresas), portanto abaixo do investimento português. Deve acrescentar-se que a Itália é um país com maior riqueza do que Portugal: o seu PIB per capita mais recente, em 2023, foi cerca de 1,4 vezes o português. A favor da Itália está o facto de ter investido, em ciência e tecnologia, no ano de 2021, 0,65% do Orçamento do Estado, um valor nitidamente superior ao português. E também o facto de ultrapassar Portugal no capital de risco, em percentagem do PIB, e na exportação de produtos de média e alta tecnologia em percentagem do total de produtos exportados (cf. European Commission 2022). O Global Innovation Index de 2021 (cf. WIPO 2021) coloca a Itália no 29.º lugar do mundo, pouco acima de Portugal (curiosamente, no lugar 30, entre a Itália e Portugal está a Espanha, um país latino e do Sul como os seus vizinhos do ranking).
Resumindo: no sector da ciência e tecnologia, tirando as questões das patentes, do capital de risco e da exportação de produtos de média e alta tecnologia, isto é, das aplicações da ciência, Portugal está hoje acima da Itália, levando em conta a diferença das respectivas populações. A ascensão portuguesa nesse sector foi mais rápida e também mais recente do que a italiana. A Itália teve muito mais prémios Nobel em ciências que Portugal: Camillo Colgi (Medicina, 1906), Guglielmo Marconi (Física, 1909), Enrico Fermi (Física, 1938), Daniel Bovet (Medicina, 1957), Emilio Segrè (Física, 1959), Giulio Natta (Química, 1963), Salvador Luria (Medicina, 1969), Renato Dulbecco (Medicina, 1975), Carlo Rubbia (Física, 1984), Rita Levi-Montalcini (Medicina, 1986), Riccardo Giacconi (Física, 2002), Mario Capechi (Medicina, 2007), e, recentemente, Giorgio Parisi (Física, 2021). São treze nomes (seis na Medicina, seis na Física e um na Química) em contraste com um único português, mais do dobro do factor de seis esperado a partir da diferença de população. O 25 de Abril português foi, de facto, muito posterior ao 25 de Abril italiano, e isso ajudou decerto ao desenvolvimento. E a Itália esteve, noutra data de Abril, 18 de Abril de 1951, na génese da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), que haveria de dar origem primeiro à CEE (Tratado de Roma, em 1957) e depois à UE (Tratado de Maastricht, em 1993).
Tudo somado, apesar de ser ainda insatisfatório, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia é uma das marcas maiores que ficaram no processo de democratização iniciado em Portugal a 25 de Abril de 1974. Continuar, com determinação, o caminho encetado até agora significa cumprir uma das esperanças que se abriram há meio século: a esperança de um futuro mais prospero para o maior número de pessoas. Com efeito, hoje, no tempo da chamada «economia do conhecimento», sabemos, em Portugal como no resto da Europa e do mundo, que o bem-estar social provém do melhor conhecimento da Natureza, através de processos de descoberta científica e de inovação tecnológica.
Na Revolução portuguesa, que agora faz 50 anos, feita a Descolonização e assegurada a Democratização, permanece em larga medida por concretizar o anseio associado ao terceiro dos famosos D: o do Desenvolvimento.
BIBLIOGRAFIA
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