domingo, 29 de dezembro de 2024

DOZE LIVROS DE CIÊNCIA DE 2024

Meu artigo na imprensa regional:

Esta é a minha escolha dos doze melhores livros de ciência publicados em Portugal em 2024. Cinco deles são de autores portugueses. A ordem é a alfabética do apelido do primeiro autor.

1 - Acemoglu, Daron e Johnson, Simon. Poder e Progresso. A nossa luta milenar pela tecnologia e prosperidade. Temas & Debates.
Os dois autores, professores de Economia no MIT, receberam o Prémio Nobel da Economia em 2024. O primeiro autor já tinha sido autor, com James Robinson, de O Equilíbrio do Poder e do best-seller Porque Falham as Nações, ambos publicados pela Temas e Debates. O tema do livro é a evolução da ciência e tecnologia e o seu impacto na economia e na vida.

2 - Alves, Miriam e Kono, Yara. As Peças Mais Pequenas. Tudo o que vemos é feito do que não vemos. Planeta Tangerina.
Uma jornalista portuguesa e uma ilustradora brasileira fizeram um belo livro para crianças que explica que «tudo o que vemos é feito do que não vemos».  Na ciência, o essencial é invisível aos olhos: os átomos formam tudo à nossa volta e dentro de nós. Mas, mais do que descrever a ciência, a primeira autora fala do processo de descoberta. E a segunda ilustra o texto esplendidamente.

3 - Cardoso, Vítor. O Eclipse do Tempo. Guia para entrar em buracos negros. Oficina do Livro.
Um astrofísico português com grande currículo no estudo de buracos negros, professor no Instituto Superior Técnico e no Instituto Niels Bohr em Copenhaga, escreveu uma obra de divulgação sobre o tempo e esses «monstros cósmicos» que engolem tudo. O prefácio é do Nobel da Física Reinhard Genzel, o astrofísico alemão que ajudou a determinar a massa do superburaco negro que está no centro da nossa galáxia, e o posfácio de Emanuele Berti, presidente da Sociedade Internacional de Relatividade Geral e Gravitação.

4 - Carvalho, António Galopim de. Ao Romper da Aurora. Âncora.
O professor jubilado de Ciências da Terra da Universidade de Lisboa, autor de muitos outros livros, reúne aqui muitos dos textos, à volta da sua vida, que escreveu para as redes sociais. O título explica-se porque o professor gosta de escrever de madrugada. O resultado é um longo depoimento pessoal de um dos nossos maires divulgadores de ciência. No final do ano, Galopim de Carvalho publicou ainda, na mesma editora, Aprender a Gostar de Saber.

4 - Conway, Ed. Mundo Material. Uma história substancial do nosso passado e futuro. Temas e Debates.
Um premiado jornalista de economia inglês realizou uma viagem pelo mundo para nos contar os materiais que se extraem dom interior do nosso planeta e o modo como são transformados para formarem os objetos de que precisamos. Por exemplo, de onde vem o silício dos nossos chips de computadores? Vem da areia...

5 - Kissinger, Henry; Mundie, Craige; e Schmidt, Eric. Génesis.  Inteligência artificial, esperança e o espírito humano. Dom Quixote.
Um ensaio que fornece uma ampla matéria de reflexão sobre os prementes desafios da Inteligência Artificial, da autoria do político e estadista norte-americano falecido em 2023 com cem anos, de um ex-diretor da Microsot e de um ex-CEO da Google. O primeiro e o terceiro autores já tinham analisado o assunto no seu livro, com Daniel Huttenlocher, A Era da Inteligência Artificial e o Nosso Futuro Humano (também na Dom Quixote).

7 - Levitt, Dan. De Que Somos Feitos? A história dos átomos do seu corpo, desde o Big Bang até ao jantar de ontem, Lua de Papel.
Este livro de um realizador norte-americano de documentários científicos conta-nos como temos dentro de nós quer partículas do Big Bang quer átomos cozinhados nas estrelas. Somos essencialmente água e, na molécula de água, o hidrogénio veio do Big Bang e o oxigénio das estrelas. Escrevi o prefácio.

8 - Marçal, David. Como Perder Amigos Rapidamente e Aborrecer Pessoas com Factos e Ciência. Gradiva.
O bioquímico e comunicador de ciência que escreve regularmente no Público disseca o mundo de hoje, largamente irracional, numa perspectiva  racional, baseada em factos e na ciência, neste livro com um título irónico.  No mundo polarizado em que vivemos, é natural que alguns dos seus textos, bem escritos e documentados, sejam polémicos. Escrevi o prefácio.

9 - Osório, Luís. A Última Lição de Manuel Sobrinho Simões. Contraponto.
O conhecido jornalista e escritor fez uma longa entrevista a um dos cientistas portugueses mais conhecidos, Manuel Sobrinho Simões, médico patologista da Universidade do Porto, especialista em cancro da tiroide e fundador do IPATIMUP.

10 - Reich, David. Quem Somos e Como Chegámos até Aqui. O ADN antigo e os novos avanços científicos acerca do passado. Gradiva.
Um especialista norte-americano em genoma antigo conta como a decifração do genoma está a revelar a nossa ancestralidade. As diferenças biológicas entre as populações actuais pode ser compreendida pode ser mais bem compreendida à luz dos mais recentes desenvolvimentos.

11 - Rovelli, Carlo. Há lugares no mundo onde a gentileza é mais importante do que as regras. Objectiva.
O físico italiano Rovelli é um dos nomes cimeiros da divulgação da Física. Este livro, que surge na sequência de outros sucessos do mesmo autor, contém um conjunto de crónicas originalmente saídas na imprensa italiana. Na sua diversidade, exibem os dotes de escrita do autor, para além claro do seu conhecimento da ciência e da história e da sua sensibilidade para ligar a ciência à arte.

12 - Tyson, Neil de Grasse e Walker, Lindsay. Para o Infinito e Mais Além. Uma viagem de descoberta cósmica. Gradiva
O norte-americano Tyson, autor de Astrofísica para Gente com Pressa (também na Gradiva), é um dos divulgadores de ciência mais brilhantes da era pós Carl Sagan, com quem aliás se encontrou em jovem. Walker, por sua vez, é uma comunicadora de ciência na área do audiovisual. Juntos fizeram um belo volume ilustrado que nos conduz aos mistérios do cosmos, dos quais os maiores estão bem longe da Terra. A tradução é minha.

Ficaria mal comigo se não juntasse em nota final os meus dois livros deste ano, o primeiro para pré-adultos e adultos e o segundo para os mais pequenos: Toda a Física Divertida, Gradiva, com desenhos de José Bandeira, e, com Luísa Ducla Soares e Daniel Completo, No Mundo dos Porquês. A ciência cantada e contada, Canto das Cores, com desenhos de Cristina Completo.

Boas Festas com boas leituras!

sábado, 28 de dezembro de 2024

ROBERT HOOKE E A FORÇA ELÁSTICA

Meu prefácio ao livro Lições de Potentia Restitutiva ou da Mola, de Robert Hooke, com introdução, tradução e notas de Isadora Monteiro, Instituto de Estudos Filosóficos, 2024: 

O físico inglês Robert Hooke, contemporâneo de Isaac Newton, é uma das maiores figuras da Revolução Científica, isto é, da criação da ciência moderna que ocorreu nos séculos XVI e XVII. Entre as suas principais contribuições para a ciência está a descoberta da lei da força elástica, que hoje tem o seu nome: a força de deformação de uma mola é directamente proporcional ao deslocamento da sua posição de equilíbrio. Esta lei – descoberta segundo o próprio em 1660, anunciada em 1676 sob a forma de u m anagrama em latim e publicada em 1678 no livro Lições de Potentia Restitutiva ou Da Mola, escrito no original em inglês  e publicado pela Royal Society de Londres, cuja primeira parte está aqui traduzida - é de enorme relevância não só para a física, mas também para a ciência de materiais, que só haveria de surgir no século XIX. Foi encontrada por Hooke por via experimental, sendo por isso um dos primeiros resultados obtidos por aplicação do método científico. De facto, muitas outras forças têm, para além da elástica, comportamento perto do equilíbrio que é descrito pela lei de Hooke.

Experimentalista exímio, Hooke notabilizou-se para além das experiências com molas, por ter observado ao microscópio a estrutura da cortiça, tendo sido o descobridor das células da vida. O seu livro Micrographia (1665), também publicado pela Royal Society, é um dos monumentos maiores da edição científica. Hooke estudou óptica, aprimorando o microscópio e defendendo uma teoria ondulatória da luz. Outros instrumentos passaram pelas mãos de Hooke, que foi curador de experiências na Royal Society: o relógio portátil de corda (que pode ser visto como uma aplicação prática da lei de Hooke), o barómetro (que ele inventou de raiz), o higrómetro e o anemómetro (sem os quais não haveria meteorologia), etc. Aperfeiçoou a bomba de vácuo, usada pelo seu colega Robert Boyle, também activo na referida sociedade, para estudar gases, e o telescópio, que usou para descobrir a primeira estrela binária e para se aperceber das rotações de Marte e de Júpiter. Foi, pode dizer-se, um homem dos «sete instrumentos», consciente de que os instrumentos eram absolutamente essenciais para a «nova ciência». Dotado de uma curiosidade excepcional, gostava de saber tudo e mais alguma coisa. O seu biógrafo Stephen Inwood, chamou-lhe o «homem que sabia demais» (The Man who new too much. The inventive life of Robert Hooke, 1635 – 1703, Macmillan, 2003).

Para além de experimentalista, foi um especulador. A ele se deve a ideia da força da gravitação universal, mais tarde matematizada de forma  exacta por Newton na lapidar fórmula da gravitação universal que ele apresentou nos Princípios Matemáticos de Filosofia Natural (1687). H oke f oi pioneiro na descrição quantitativa desta força que não só nos prende ao solo como liga os planetas, prioridade que Newton ignorou. A aversão entre os dois sábios era profunda, o que não admira já que o autor dos Princípios não ficou conhecido por cultivar as relações com os seus colegas. A disputa mais acesa entre os dois teve a ver precisamente com a precedência a respeito da lei da gravitação universal. Mas já se tinham oposto em questões de óptica: Newton defendia uma teoria corpuscular da luz, oposta à ondulatória. Há uma frase famosa atribuída a Newton - «Se vi mais longe é porque estava aos ombros de gigantes» - que está, segundo alguns historiadores de ciência, directamente relacionada com o autor da lei da força elástica de uma maneira nada lisonjeira para Newton. Não havendo retratos de Hooke, conta quem conviveu com ele que era atarracado. Ora, Newton, numa disputa sobre a luz, com aquela frase estava a chamar-lhe anão. Não podia estar aos «ombros» dele…

Esta primeira tradução em português de Hooke é uma bem-vinda contribuição para a cultura científica portuguesa. Devíamos ter na nossa língua versões dos textos mais importantes da história da ciência e esta tardou. Quem estiver de fora da história da ciência desta época, ao ler esta tradução de Isadora Monteiro, muito bem prefaciada e anotada, poderá aprender dois factos pouco conhecidos.

Primeiro, que a elasticidade das molas foi aproveitada por Hooke, pendurando pesos em molas, para tentar medir a diminuição da força da gravidade com o afastamento da Terra, embora sem resultados inequívocos. Segundo, e mais espantoso, Hooke ensaiou nesta obra uma teoria microscópica da elasticidade, baseada na ideia de partículas constituintes da matéria em perpétuo movimento. No fundo, apresentou aqui a primeira teoria cinética da matéria. A teoria cinética dos gases é, tal como a ciência dos materiais, do século XIX, estando associado a nomes da termodinâmica e mecânica estatística como Ludwig Boltzmann e James Clerk Maxwell. Porém, a ideia de calor como forma de energia, associada ao movimento de partículas, é de Hooke, muito antes de haver termodinâmica!

Sendo um polímata, o sábio inglês contribuiu também para a geologia e para a biologia. A Terra, segundo ele, era um planeta muito mais antigo do que a Bíblia dava a entender, tendo sofrido transformações lentas (por exemplo, as montanhas tinham-se elevado em processos naturais) e tinha havido extinção de algumas espécie, no longo percurso da evolução biológica. E ele foi ainda um exímio colaborador do arquitecto Christopher Wren, um dos sócios fundadores da Royal Society em 1660, na reconstrução de Londres depois do grande incêndio de 16 66.

Vivia-se no tempo em que a física, sob o nome de filosofia natural, se emancipava da filosofia. E desde logo se percebeu (o filósofo Francis Bacon terá sido o primeiro, no início do século XVII) que a filosofia natural ia ter um tremendo impacto na vida humana. Conhecendo a Natureza era possível minimizar alguns dos seus perigos. 

Hooke foi, portanto, um génio. É um pequeno texto de um grande génio que o leitor encontrará a seguir. Vai ler um texto genial, onde a observação, a experimentação e o raciocínio se cruzam, guiados por uma intuição criativa. O autor não via as partículas, que Demócrito na Grécia Antiga tinha imaginado, mas não hesitou em usá-las no seu modelo do mundo material. Ao ler este ensaio o leitor estará a assistir a um «passo de gigante» na história da física, ainda que o seu autor tivesse fisicamente uma pequena estatura.

Coimbra, 28 de Agosto de 2 024

O 25 DE ABRIL DE 1974 E A CIÊNCIA EM PORTUGAL

 Meu capítulo do livro "Revoluções em Flor. 50 anos depois do 25 de Abril de 1974," Coord. Michela Graziani e Annabela Rita, Edifir, Edizione Firenze, 2024:

A Revolução de 25 de Abril de 1974 fez florescer a ciência em Portugal. De facto, o Estado Novo – o regime autoritário que durou desde 1933 até 1974, sob a liderança primeiro de António de Oliveira Salazar (1889-1970) e depois, a partir de 1968, de Marcello Caetano (1906-1980) – não foi grande defensor da ciência. Esse facto é comprovado não apenas pelo reduzido investimento realizado nessa área, mas também pela demissão compulsiva e nalguns casos mesmo a obrigação de exílio de vários cientistas opositores ao regime. De facto, embora a indústria que presidiu ao desenvolvimento do século XX se tenha baseado inteiramente na ciência, Salazar ansiava apenas que Portugal fosse «o magnífico pomar e a esplêndida horta da Europa» e defendia que, «se tivesse de haver competição, continuaria a preferir a agricultura à indústria» (Fiolhais 2018: 997).

Não admira, por isso, que a industrialização portuguesa tenha sido tardia: só no ano de 1963, depois dos outros países industriais europeus, o valor do produto industrial português ultrapassou o da agricultura. Alberto Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar, afirmou num dos seus discursos: «A ciência e a técnica […] são monopólio dos povos ricos e altamente desenvolvidos». Caetano, que entre outros cargos foi ministro das Colónias num dos governos presididos por Salazar, afirmou que a investigação científica teria relevância no «Ultramar», onde era preciso explorar os importantes recursos locais, mas não teria mais do um papel subalterno na denominada Metrópole, o Portugal europeu. A ciência devia ser criada pelos países ricos e, apenas quando necessário, aproveitada pelos países pobres.

No entanto, apesar desse clima político avesso à ciência no regime deposto em 1974, sempre se ensinou ciência em Portugal nos vários níveis de ensino, em particular as universidades, destinadas a formar as elites, e que eram por isso ideologicamente vigiadas. Os professores com ideias contrárias ao regime de partido único eram afastados se as expressassem (cf. Fiolhais; Marçal 2017). Não importava a qualidade ou a relevância do ensino ou da ciência que faziam, mas a sua fidelidade política. Durante a Segunda Guerra Mundial (Portugal permaneceu neutro durante esse conflito), temendo uma influência estrangeira, Salazar não permitiu mais do que vistos de trânsito a cientistas e a outros intelectuais que fugiam os horrores da guerra na Europa. Por outro lado, se é certo que os governos do Estado Novo envidaram alguns esforços de desenvolvimento com base na ciência e na tecnologia, não é menos verdade que esses esforços foram tardios e insuficientes para proporcionar o progresso do país, que permaneceu ao longo de largas épocas economicamente na cauda da Europa. Esses esforços incidiram mais na ciência aplicada do que na fundamental. 

Assim, por exemplo, em 1946, foi inaugurado em Lisboa o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), que ajudou na construção de numerosas obras públicas, e, em 1961, foi inaugurado em Sacavém, perto de Lisboa, o Laboratório de Física e Engenharia Nucleares (LFEN), que incluía um reactor nuclear de investigação, destinado a formar cientistas e técnicos que ajudassem o funcionamento de projectadas centrais nucleares (estas nunca vieram a ser construídas, tendo o reactor de Sacavém sido desactivado em 2019, quando já estava obsoleto). Na medicina, área na qual havia uma longa tradição em Portugal, o governo não valorizou devidamente o até agora único Nobel português nas áreas das ciências – o neurologista António Egas Moniz (1874- 1955), que ganhou o prémio na área da Fisiologia ou Medicina no ano de 1949 «pela sua descoberta do valor terapêutico da leucotomia em certas psicoses» (ele já antes tinha sido proposto para o Nobel por outra técnica que desenvolveu, a arteriografia cerebral). Um alto« funcionário do governo português chegou a chamar-lhe depreciativamente «meio-prémio Nobel», só porque o prémio foi dividido por outro médico, o suíço Walter Rudolf Hess, por trabalho feito de forma independente noutro campo da neurologia (cf. Fiolhais 2005). O Estado procurava nos maiores hospitais do país acompanhar os grandes progressos que se desenrolaram na medicina ao longo do século XX, mas tratava-se, excepto em casos raros, da aplicação de ciência vinda do estrangeiro.

Um forte condicionante do desenvolvimento da ciência era o défice de educação por parte da população em geral. De facto, a educação para além da elementar era apenas acessível a uma reduzida fatia da população. E, por isso, a taxa de analfabetismo foi, ao longo do século XX, uma das maiores da Europa. Este estado de coisas só começou a mudar significativamente no início dos anos de 1970 com a reforma educativa do então ministro da Educação José Veiga Simão (1929-2014), professor de Física da Universidade de Coimbra que tinha sido o primeiro Reitor da Universidade de Lourenço Marques, em Moçambique, onde deixou obra notável. Ele pugnou pela democratização do ensino, incluindo o superior, tendo criado durante o seu mandato outras universidades para além da de Coimbra, fundada em 1290 (originalmente em Lisboa), e das de Lisboa e Porto, criadas em 1911, logo após a implantação da República, que durou escassos 16 anos, derrubada que foi pelo golpe militar de 28 de Maio de 1926, o início de um longo tempo ditatorial.

No dia 25 de Abril de 1974 eclodiu a liberdade (curiosamente, o dia 25 de Abril em Itália é também celebrado como o dia da libertação, mas a liberdade italiana é 29 anos mais antiga). O golpe militar português, agora democrático, perpetrado por jovens oficiais descontentes com a guerra que travavam em três colónias africanas (Guiné, Angola e Moçambique, na altura chamadas «províncias ultramarinas»), redundou numa explosão libertária celebrada com alegria nas ruas (cf. Léonard 2024). Acabou a polícia política e a censura. Começaram a ser preparadas eleições livres para uma Assembleia Constituinte, que tiveram lugar em 25 de Abril de 1975. A noiva Constituição, que conferia aos cidadãos de forma equalitária direitos, liberdades e garantias foi promulgada em 1976. Os propósitos da Revolução podiam ser resumidos a três verbos, apregoados nesses tempos que foram naturalmente de algum caos político: Descolonizar, Democratizar e Desenvolver.

Com o novo regime, não só se resolveu rapidamente a questão colonial em favor da autodeterminação dos povos africanos (declararam a sua independência em 1975), como se estabeleceu um ambiente de liberdade, indispensável à criação intelectual, tanto nas artes como nas ciências (em particular, nas ciências sociais e humanas, que se encontravam bastante limitadas no regime anterior), e de igualdade, bem patente no alargamento do acesso dos jovens à escolaridade (o ensino superior aumentou drasticamente com a criação de novas escolas, tanto universidades como institutos politécnicos). Também se percebeu que o desenvolvimento do país exigia uma maior aposta na investigação científica, que não tinha de privilegiar a investigação aplicada, mas antes de imitar o que faziam outros países mais desenvolvidos. A ciência e tecnologia foram particularmente impulsionadas pela entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, antecessora da actual União Europeia (UE), logo no início de 1986, quando Mário Soares (1924-2017) era primeiro ministro. Uma parte, ainda que relativamente pequena, dos fundos de coesão que Portugal passou a receber da UE foi aproveitada para proporcionar maior formação de pessoas e para a criação de algumas infraestruturas académicas, científicas e tecnológicas.

Um ano decisivo na história recente da ciência em Portugal foi o de 1995, ano em que foi criado, no primeiro governo do primeiro-ministro António Guterres (n. 1949, hoje secretário geral das Nações Unidas), o Ministério da Ciência e Tecnologia, pasta atribuída a José Mariano Gago (1948-2015), professor de Física do Instituto Superior Técnico, em Lisboa (cf. Fiolhais 2011). Mariano Gago, ministro em dois governos de Guterres e em dois de José Sócrates (nestes últimos, juntando o Ensino Superior à Ciência e Tecnologia, por serem áreas directamente relacionadas), foi, sem dúvida, a figura de mais relevo na ciência em Portugal nos últimos 50 anos. Ele pôs em prática com notável sucesso um plano de modernização e internacionalização da ciência portuguesa, anunciado no seu Manifesto para a Ciência em Portugal (cf. Gago 2023) de 1990. Criou em 1996 a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), herdeira de organismos como a Junta Nacional para a Investigação Científica e Tecnológica (JNICT) e o Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC), e de outros mais antigos, que se destinava a apoiar financeiramente a formação académica, a prossecução de projectos de investigação e o equipamento de laboratórios e institutos científicos. Montou o sistema de ciência e tecnologia que basicamente continua hoje vigente, com uma rede de mais de 300 centros de investigação que cobrem praticamente todas as áreas do conhecimento, não esquecendo a promoção da cultura científica de modo a consciencializar a sociedade da necessidade da ciência (criou, para este efeito, a Agência Ciência Viva, que foi nos seus primeiros tempos inovadora, mas que ultimamente tem estado quase parada). 

Foi criado um procedimento de avaliação internacional da actividade desses centros. No ano de 2000 surgiram os primeiros Laboratórios Associados, centros de investigação de maior escala cuja missão era ajudar o Estado em áreas específicas de desenvolvimento, acrescendo aos Laboratórios do Estado como o LNEC que já existiam. Foi procurada a internacionalização da ciência portuguesa. Portugal, que tinha entrado para a Organização Europeia de Investigação Nuclear (CERN) em 1985, entrou para a Agência Espacial Europeia (ESA) em 2000 e para o Observatório Europeu do Sul (ESO) em 2001, juntando-se nessas áreas à maioria dos países europeus (cf. Fiolhais 2013). No lado do sector privado, pontificaram a Fundação Calouste Gulbenkian, criada em 1956 na sequência do testamento de um filantropo arménio, que em 1961 instalou o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras, e a Fundação Champalimaud, surgida em 2004 por vontade de um filantropo português, que instalou o Centro de Investigação para o Desconhecido (CID), em Lisboa. Tanto o IGC como o CID desenvolvem investigação avançada nas áreas da biologia e da medicina, procurando o seu cruzamento.

Para verificar a enorme transformação que o país realizou na ciência no regime democrático instaurado em Abril de 1974, basta olhar para a PORDATA, uma vasta base de dados sobre Portugal e a Europa que foi criada por uma outra fundação mais recente, a Fundação Francisco Manuel dos Santos (cf. PORDATA). Pode-se aí ver que, em 2022 (último ano para o qual existem dados oficiais), havia em Portugal quase 60.000 investigadores, medidos pela unidade de «equivalente a tempo inteiro», dos quais 26.500 no sector privado, ao passo que em 1982 (quando, com uma mudança constitucional, acabou o Conselho da Revolução, formado apenas por militares, que era um resquício da Revolução de 1974), eles não chegavam a 5000: portanto, o número de investigadores aumentou de mais de dez vezes em 40 anos.

Três medidas da produtividade científico-tecnológica reconhecidas internacionalmente são a formação de novos doutores, a publicação de artigos científicos e o registo de patentes:

1. Em 2022 foram concluídos em Portugal 2317 doutoramentos: portanto, nos 40 anos que mediaram entre 1982 e 2022, o número de novos doutorados aumentou quase 20 vezes. É de destacar o facto de a maior parte dos novos graus doutorais estarem desde há anos a ser atribuídos a mulheres, reflectindo a extraordinária ascensão social das mulheres que a Revolução de Abril proporcionou. O país atingiu o máximo na formação anual de doutores em 2014, tendo ocorrido depois disso um ligeiro declínio.

2. Quanto à publicação de artigos o progresso português foi ainda mais notável. Se no ano de 1982 os investigadores a trabalhar em Portugal (alguns deles estrangeiros, dada a internacionalização da ciência portuguesa) publicaram apenas 388 artigos, em 2022 esses investigadores (agora com maior proporção de estrangeiros) publicaram 30.078 artigos, quase 80 vezes mais. A maior parte desses artigos referem-se às áreas das ciências exactas e naturais – com 11.557 publicações – seguindo-se a área das ciências médicas e da saúde, em crescimento rápido nos últimos tempos – com 11.692 publicações. As áreas das humanidades e artes e das ciências sociais, esta última muito forte no número de novos doutoramentos, podem não estar convenientemente representadas nestas estatísticas, por haver numerosos artigos saídos em revistas nacionais, muitos deles escritos em português, que não estão indexadas nas bases de dados internacionais.

3. Por último, considerando as patentes, tendo o país partido de um patamar muito baixo, houve algum crescimento, ainda que claramente insatisfatório: se, no início dos anos de 1980, não havia pedidos de patentes na chamada Via Europeia (mais exigente que a Via Nacional), em 2022 já houve 312 pedidos, dos quais foram concedidas 67 patentes. Estes números são pequenos, considerados os padrões internacionais.

O crescimento da ciência e da tecnologia, inequivocamente medidos com essas métricas, só foi possível graças a enorme aumento da escolaridade da população, designadamente na habilitação com o ensino superior (hoje existem mais de 400.000 estudantes no ensino superior, numa população de cerca de dez milhões de habitantes), e obviamente, a um grande salto no financiamento das actividades de investigação, realizadas quer por entidades públicas quer por entidades privadas. Em 1982 só se investiu na ciência e tecnologia 0,3% do PIB – Produto Interno Bruto (dos quais 0,1% do lado das empresas), mas em 2022 o valor desse investimento já foi de 1,7% (dos quais 1,1% do lado das empresas), portanto quase seis vezes maior. É difícil, devido à inexistência de estatísticas oficiais, indicar a percentagem de investimento em ciência e tecnologia em 1974, o ano da «Revolução dos Cravos», mas algumas estimativas indicam que ele deve ter sido aproximadamente de 0,1%, o que significa o crescimento de 17 vezes nos últimos 50 anos (cf. Fiolhais 2023). O crescimento foi maior em valores absolutos porque o PIB nesse mesmo período cresceu (o PIB per capita passou de 9,5 mil euros em 1974 para 23,6 mil euros em 2022).

A Revolução de Abril iniciou, portanto, um boom da ciência e da tecnologia em Portugal. Mas não nos devemos impressionar pelo crescimento relativamente ao passado (Portugal estava, de facto, muito atrasado em 1974 relativamente aos outros países europeus): os valores portugueses atrás indicados devem ser lidos à luz de comparações internacionais, em especial com os outros países europeus. O valor mais recente do investimento de Portugal em ciência e tecnologia, 1,7% do PIB, está claramente aquém da média europeia de 2,2% (um conjunto de cinco países – a Bélgica, a Suécia, a Áustria, a Alemanha e a Dinamarca – estão na liderança, todos eles com valores superiores a 3%). Mas alguns dados são bem menos abonatórios para Portugal: os fundos do Orçamento de Estado português para a ciência representam apenas 0,4% do PIB, um número semelhante ao do início dos anos 1990, em nítido contraste com a média europeia desse índice, que é de 0,7% (cf. Fiolhais 2023). 

No número de investigadores Portugal compara bem com a média europeia, após a necessária divisão pelo número de pessoas activas (pessoas entre os 25 e os 64 anos), estando a participação feminina bem acima da média europeia: em Portugal as mulheres são maioritárias em muitos ramos da ciência. No número de novos doutores em cada ano, apesar do esforço realizado, Portugal está ainda abaixo dessa média; não existem, por isso, doutores a mais. Na proporção do número total de doutores pelo número de pessoas em idade activa, o país ainda permanece abaixo da média europeia. E, no número de artigos científicos por habitante, Portugal está um pouco acima da média europeia, o que já não acontece se considerarmos os artigos que estão no top 10% dos mais citados, um índice de relevância científica em que o país se situa abaixo daquela média: estes dados mostram que os investigadores portugueses aproveitam bem o investimento que recebem. Onde Portugal tem, porém, um problema maior nas comparações internacionais é no registo de patentes: a posição nacional ainda é na cauda da Europa. 

E o mesmo se aplica a outros índices que traduzem o impacto da ciência na economia, como, por exemplo, o capital de risco em percentagem do PIB (normalmente esse capital serve para comercializar bens ou serviços de base científico-tecnológica) ou a exportação e produtos de média e alta tecnologia relativamente ao total de exportações (cf. European Commission 2022). O Global Innovation Index de 2021, que aglomera um conjunto diverso de índices de inovação, dá a Portugal o 31.º lugar no mundo, que corresponde ao 18.º lugar da EU (cf. WIPO 2021). Há muito caminho para percorrer. Para isso, é absolutamente necessário aumentar o investimento português em ciência e tecnologia aproximando-o da média europeia. Ora esta média é móvel: a UE ambiciona investir em média 3,0% do PIB nesse sector no ano de 2030 e será muito difícil para Portugal cumprir esse objectivo.

A ciência, embora tendo crescido significativamente em Portugal desde 1974,« conheceu um abrandamento, designadamente na última década e meia. A intervenção de resgate financeiro em 2011 realizada por três entidades – a troika, constituída pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Central Europeu (BCE) e a Comissão Europeia (CE) – foi um duro golpe para a ciência portuguesa do qual tem custado a recuperar, apesar de ter havido uma saída do controlo da troika logo em 2014. A ciência portuguesa poderia, de facto, estar melhor. Indicam-se aqui alguns dos possíveis caminhos de melhoria:

– A ligação entre as instituições de ensino superior tem de melhorar (nunca descurando evidentemente a ciência fundamental), uma vez que ela ainda não é suficientemente fluida. Por sua vez, as empresas têm de dinamizar mais as actividades de investigação e desenvolvimento no seu seio, multiplicando alguns bons exemplos que já existem, como a Bial e a Hovione, na área farmacêutica, ou a Critical Software, na área da informática.

Nos países mais avançados da Europa cerca de dois terços do investimento em ciência e tecnologia é da responsabilidade do sector privado, mas em Portugal essa proporção é de pouco mais de metade, a acreditar nos valores das estatísticas oficiais (há razões para crer que algumas empresas estarão a inflacionar esses valores, devido à existência de benefícios fiscais que premeiam esse tipo de investimento). Acontece que a rede de empresas portuguesas é constituída maioritariamente por Pequenas e Médias Empresas (PME), não sendo óbvia para muitos gestores de empresas desse tipo a necessidade de investir em ciência e tecnologia: concentrando-se no curto prazo, preferem muitas vezes procurar no mercado soluções «chave na mão», em vez de desenvolverem as suas próprias soluções, em processos de inovação.

– Além disso, o Estado tem de investir mais no sistema de ensino superior público, que está largamente subfinanciado se considerarmos os padrões internacionais. Mediante a celebração de contratos-programa o governo poderia encorajar a actividade científica dentro das universidades e institutos politécnicos. De facto, o sistema científico nacional montado por Mariano Gago privilegiou a criação de instituições privadas sem fins lucrativos para a execução rápida dos fundos provenientes da UE, quando o conhecimento científico estava maioritariamente localizado no corpo docente universitário. A razão invocada foi a existência de estruturas administrativas pesadas, integradas com a máquina da administração pública.

Um dos destinos do reforço de investimento devia, nos dias de hoje, ser a contratação de um número considerável de jovens doutores para as instituições públicas de ensino superior, seja como professores seja como investigadores. De facto, muitos jovens doutores portugueses em várias áreas têm vivido situações precárias, sujeitos a sucessivos contratos a termo, vendo-se alguns na contingência de emigrar para países onde o seu talento é mais reconhecido.

As escolas superiores públicas em Portugal têm sido financiadas segundo critérios assentes essencialmente no número de estudantes, não sendo premiada a produtividade científico-tecnológica, medida pelo número de novos doutores, pelo número e qualidade dos artigos científicos e pelo número e utilidade das patentes. Se acaso o fosse, elas não hesitariam em empregar mais membros da que já foi chamada «geração mais qualificada de sempre».

– Para além das universidades e institutos politécnicos, Portugal não dispõe, como a Espanha, a França e a Alemanha, de uma rede pública, espalhada pelo país, de instituições capazes de fornecer saber especializado para diferentes assuntos. Os Laboratórios de Estado, os Laboratórios Associados e, depois destes, os Laboratórios Colaborativos, que visam uma maior colaboração com empresas, não parecem ser capazes de satisfazer todas as necessidades que se colocam. Por isso terá de aumentar o apoio a esses laboratórios, em particular os Laboratórios de Estado, mais antigos, mas que têm sido preteridos nas políticas recentes em favor dos Laboratórios Associados e Colaborativos. É nítido desde há décadas o desinvestimento em instituições como o já referido LNEC, na área da engenharia civil, e o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), na área da saúde pública, que podem e devem ajudar o Estado na formulação e concretização de algumas das suas políticas. Se tivesse mais gente e mais meios, o INSA, com sede em Lisboa e uma delegação no Porto, poderia ter desempenhado um papel mais activo durante a crise da COVID-19.

Note-se que a distribuição de instituições científicas no território nacional é muito desigual, registando-se uma enorme concentração em Lisboa e Porto, maior em Lisboa do que no Porto. Os processos de regionalização e de descentralização têm conhecido sucessivos obstáculos.

Vale a pena comparar, ainda que de forma resumida, o panorama da ciência e tecnologia em Portugal e na Itália. São ambos países do Sul da Europa, mas a Itália tem maior tradição científica, podendo dizer-se que foi lá que, com Galileu, no século XVII, se iniciou a Revolução Científica e foi lá também que a Revolução Industrial, no século XIX, encontrou um terreno fértil. Conclui-se dos dados internacionais publicados na PORDATA pela Fundação Francisco Manuel dos Santos que a Itália tinha, em 2022, 6,6 investigadores por mil activos, ao passo que Portugal tinha 11,8 (cf. PORDATA). Dos investigadores portugueses 41,9% eram mulheres, ao passo que dos italianos elas representavam 36,1%. Conclui-se também desses dados:

1. Portugal tem, nos últimos tempos, formado comparativamente mais novos doutores do que a Itália. Em 2021 finalizaram o doutoramento 20,1 pessoas por mil habitantes, ao passo que em Itália foram 13,7 por mil. Mas um facto curioso é que a Itália desceu ligeiramente do valor que tinha em 2004 (14,7 por mil), ao passo que Portugal subiu muito relativamente a esse ano (8,5 por mil). Os dois países são modelares na quota feminina desses doutoramentos, estando Portugal um pouco à frente: em 2021 tinha 50,9% enquanto a Itália tinha 48,9%.

2. Em 2020, os investigadores em Itália publicaram 85.419 artigos científicos e técnicos, o que dividido pelos 58,9 milhões de habitantes dá 145 artigos por cem mil habitantes, ao passo que Portugal produziu 281 por cem mil habitantes. No entanto, se olharmos apenas para a fatia de 10% de publicações mais citadas, concluímos que a Itália bate Portugal.

3. Portugal tinha, em 2017, 142 pedidos de patentes a Organização Europeia de Patentes (EPO), ao passo que a Itália tinha 4148 pedidos. Para uma comparação justa, é necessário dividir estes valores pelo número de habitantes, um factor de seis a favor de Itália. É claro que Itália tem um considerável avanço.

Em 2022, a Itália apresentava um investimento em ciência e tecnologia, inferior ao português, medido em percentagem do PIB, é de 1,3% (do qual 0,8% de empresas), portanto abaixo do investimento português. Deve acrescentar-se que a Itália é um país com maior riqueza do que Portugal: o seu PIB per capita mais recente, em 2023, foi cerca de 1,4 vezes o português. A favor da Itália está o facto de ter investido, em ciência e tecnologia, no ano de 2021, 0,65% do Orçamento do Estado, um valor nitidamente superior ao português. E também o facto de ultrapassar Portugal no capital de risco, em percentagem do PIB, e na exportação de produtos de média e alta tecnologia em percentagem do total de produtos exportados (cf. European Commission 2022). O Global Innovation Index de 2021 (cf. WIPO 2021) coloca a Itália no 29.º lugar do mundo, pouco acima de Portugal (curiosamente, no lugar 30, entre a Itália e Portugal está a Espanha, um país latino e do Sul como os seus vizinhos do ranking).

Resumindo: no sector da ciência e tecnologia, tirando as questões das patentes, do capital de risco e da exportação de produtos de média e alta tecnologia, isto é, das aplicações da ciência, Portugal está hoje acima da Itália, levando em conta a diferença das respectivas populações. A ascensão portuguesa nesse sector foi mais rápida e também mais recente do que a italiana. A Itália teve muito mais prémios Nobel em ciências que Portugal: Camillo Colgi (Medicina, 1906), Guglielmo Marconi (Física, 1909), Enrico Fermi (Física, 1938), Daniel Bovet (Medicina, 1957), Emilio Segrè (Física, 1959), Giulio Natta (Química, 1963), Salvador Luria (Medicina, 1969), Renato Dulbecco (Medicina, 1975), Carlo Rubbia (Física, 1984), Rita Levi-Montalcini (Medicina, 1986), Riccardo Giacconi (Física, 2002), Mario Capechi (Medicina, 2007), e, recentemente, Giorgio Parisi (Física, 2021). São treze nomes (seis na Medicina, seis na Física e um na Química) em contraste com um único português, mais do dobro do factor de seis esperado a partir da diferença de população. O 25 de Abril português foi, de facto, muito posterior ao 25 de Abril italiano, e isso ajudou decerto ao desenvolvimento. E a Itália esteve, noutra data de Abril, 18 de Abril de 1951, na génese da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), que haveria de dar origem primeiro à CEE (Tratado de Roma, em 1957) e depois à UE (Tratado de Maastricht, em 1993).

Tudo somado, apesar de ser ainda insatisfatório, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia é uma das marcas maiores que ficaram no processo de democratização iniciado em Portugal a 25 de Abril de 1974. Continuar, com determinação, o caminho encetado até agora significa cumprir uma das esperanças que se abriram há meio século: a esperança de um futuro mais prospero para o maior número de pessoas. Com efeito, hoje, no tempo da chamada «economia do conhecimento», sabemos, em Portugal como no resto da Europa e do mundo, que o bem-estar social provém do melhor conhecimento da Natureza, através de processos de descoberta científica e de inovação tecnológica.

Na Revolução portuguesa, que agora faz 50 anos, feita a Descolonização e assegurada a Democratização, permanece em larga medida por concretizar o anseio associado ao terceiro dos famosos D: o do Desenvolvimento.

BIBLIOGRAFIA

European Commission (2022). European Innovation Scoreboard 2022 Annex B Performance per indicator. Brussels. Disponível em “https://research-and-innovation.ec.europa.eu/system/ files/2022-09/ec_rtd_eis-2022-annex-b.pdf”https://research-and-innovation.ec.europa.eu/system/files/2022-09/ec_rtd_eis-2022-annex-b.pdf (consultado em maio de 2024).

Fiolhais, Carlos (2005). Curiosidade apaixonada. Lisboa: Gradiva.

Fiolhais, Carlos (2011). A ciência em Portugal. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Fiolhais, Carlos (2013). História da ciência em Portugal: da Universidade Medieval à entrada na União Europeia, passando pelos Descobrimentos e pelo Iluminismo. Lisboa: Arranha-Céus.

Fiolhais, Carlos; Marçal, David (2017). A Ciência e os seus inimigos. Lisboa: Gradiva.

Fiolhais, Carlos (2018). “Anti-industrialismo”. In Dicionário dos Antis, coord. José Eduardo Franco. Lisboa: Imprensa Nacional: 995-998.

Fiolhais, Carlos (2023). “Prefácio”. In O Futuro da Ciência e da Universidade, coords. Maria de Lurdes Rodrigues, Jorge Rodrigues da Costa. Coimbra: Almedina: 13-19.

Gago, José Mariano (2023). Manifesto para a Ciência em Portugal. Lisboa: Gradiva [1ª edição 1990].

Léonard, Yves (2024). Breve História do 25 de Abril. Lisboa: Edições 70.

PORDATA. Estatísticas sobre Portugal e Europa. Disponível em “https://www.pordata.pt/”https:// www.pordata.pt/ (consultado em maio de 2024).

WIPO – World Intellectual Property Organization (2021). Global Innovation Index, Disponível em https://www.wipo.int/edocs/pubdocs/en/wipo_pub_gii_2021.pdf  (consultado em maio de 2024).

BOAS FESTAS COM O PINGUIM E O OVO

 

Com os votos de Boas Festas e Bom Ano, envio uma imagem do Telescópio Espacial James Webb da NASA, divulgada em Julho passado, para assinalar os dois anosde recepção de  imagens daquele instrumento. O Pinguim e o Ovo são duas galáxias em interacção a cem mil anos luz de distância de nós (não é muito, a Andrómeda está a 2,5 milhões de anos-luz). 

O olho do Pinguim é o centro de uma galáxia em espiral muito deformada pelas forças gravitacionais. O Ovo é uma galáxia elíptica com estrelas mais antigas. A interacção do Ovo com o Pinguim fas acender novas estrelas neste último, provavelmente com novos planetas. O fundo está polvilhado de galáxias,  também eles com sistemas planetários.

Como disse o Padre Teilhard de Chardin, paleontólogo e filósofo, «À escala do cósmico só o fantástico pode ser verdadeiro.» Desejo a todos um novo ano cheio de descobertas fantásticas! Abraço cósmico do

Carlos Fiolhais

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

UM CRIME OITOCENTISTA

Artigo meu num recente JL:

Um dos crimes mais famosos do século XIX português foi o envenenamento de três crianças, com origem na ingestão de amêndoas e de um bolo recebidos pelo correio na sua casa da Rua das Flores, no Porto, na Páscoa de 1870. Uma delas, Mário Sampaio, de treze anos, veio a falecer. As crianças foram logo assistidas pelo seu tio, o lente da Escola Médico-Cirúrgica do Porto Vicente Urbino de Freitas (1849-1913), que lhes mandou administrar clisteres. As últimas palavras de Mário foram: «O clister do tio matou-me e eu não quero morrer.» O médico não tardou a ser preso, sendo as suspeitas agravadas por um alibi falso sobre a autoria da expedição da encomenda (pretendeu estar em casa do escritor Adolfo Coelho em Lisboa).

Ao fim de um processo muito publicitado foi, em 1893, condenado a oito anos de prisão celular, seguidos de 20 anos de degredo. O apelo feito pela defesa não resultou: levou até ao agravamento da pena para nove anos. O professor Urbino de Freitas ficou preso na Penitenciária de Lisboa até 1901, quando uma amnistia parcial lhe permitiu iniciar o degredo em Angola, onde gozou de alguma liberdade, voltando a exercer a sua profissão. Um perdão do rei D. Carlos concedeu-lhe em 1905 total liberdade, ainda que no exílio: rumou ao Brasil, onde também exerceu medicina. Finalmente, em 1913, já depois da instauração da República, regressou a Portugal. Visitou então o Porto, onde já não ia há duas décadas, mas morreu repentinamente passadas escassas semanas de pneumonia.

Decisivo no desfecho do processo foi o aparecimento de uma testemunha credível que afirmou que Urbino tinha sido o mandante do envio da encomenda fatal. A acusação também se serviu do facto de ele poder lucrar com o crime, uma vez que a sua mulher, Maria das Dores, filha de um rico negociante de linhos, ficaria a única herdeira. De facto, já tinha havido um outro envenenamento na família: José António de Sampaio Júnior, irmão de Maria das Dores, morrera em circunstâncias estranhas no início de 1890, com a assistência de Urbino, tendo mais tarde surgido a acusação, não provada após os exames dos restos do cadáver, de que ele seria responsável por mais essa morte. A sogra de Urbino foi veemente em tribunal: «Foi este homem o envenenador do meu querido Mário. Como foi o do nosso José. Juro-o, Sr. Juiz! Juro-o, Srs. Jurados!»

Urbino de Freitas, formado em Medicina na Universidade de Coimbra, era um conceituado clínico antes do processo, com consultório montado no centro do Porto. Era, tal como o seu irmão, João António de Freitas Fortuna, amigo de Camilo Castelo Branco, que se suicidou em 1890 dois meses depois do crime da rua das Flores (o irmão era muito próximo do escritor, a ponto de os três estarem sepultados no mesmo jazido no cemitério da Lapa no Porto). Camilo expressou o desejo de que Urbino fosse inocentado. Outros escritores, como Raul Brandão e Júlio Dantas, também escreveram sobre o assunto. Alguns médicos e químicos de Coimbra defenderam Urbino, assim como peritos estrangeiros consultados pela defesa, ao contrário de um grupo de médicos e químicos do Porto que examinaram as provas toxicológicas no corpo de Mário Sampaio: havia, de facto, substâncias tóxicas. 

Nessa altura a química forense estava a dar os seus primeiros passos entre nós, inaugurando um frutuoso caminho de colaboração entre justiça e ciência. Os jornais da época contaram o drama. Foram escritos vários livros, uns contra e outros a favor de Urbino, mais contra do que a favor. E ainda hoje o processo faz correr rios de tinta. Será Urbino inocente (ele, a sua mulher e o irmão sempre sustentaram essa inocência) ou culpado (como as provas apresentadas em tribunal indiciaram)?

Dois livros muito esclarecedores sobre o caso foram escritos pelo professor de Engenharia José Manuel Martins Ferreira, que ensinou na Universidade do Porto e hoje ensina na Universitet i Sorost Norge, na Noruega. Num processo de «arqueologia literária» levado a cabo nos alfarrabistas portuenses, coleccionou tudo o que achou sobre o crime e consultou o processo nos arquivos judiciais. O minucioso resultado encontra-se nos livros Urbino de Freitas. Um médico ou um monstro? (Húmus, 2020) e Urbano de Freitas. As manobras de bastidores, este acabado de sair na mesma editora. 

Se o primeiro livro trazia na capa o retrato de Urbino em vestes doutorais, o segundo traz o jovem Urbino com capa de estudante, acabado de se formar na Lusa-Atenas. Os dois têm muitas fotografias e um design muito cuidado da responsabilidade da editora de Vila Nova de Famalicão, que tantas boas obras tem produzido. O segundo livro, que, como é explicado pelo autor, pode ser lido independentemente do primeiro, traz novas e importantes achegas. Há sempre coisas a descobrir sobre crimes, mesmo que antigos. Um conjunto de cerca de 200 cartas que estiveram na posse do irmão de Urbino, Freitas Fortuna, falecido em 1899. Graças à família, o autor pôde aceder a essa documentação que ele expõe com rigor, incluindo cuidadas transcrições dos documentos mais relevantes. 

Há cartas de vários tipos: algumas são relativamente banais por documentarem a estratégia da defesa que é bem conhecida (o irmão foi o grande mentor dessa defesa, tendo nisso gastado parte da sua fortuna: curioso o nome dele), outras são cartas que o autor chama confidenciais porque mostram relações corruptas com jornalistas que pediam dinheiro em troca de notícias favoráveis, e ainda outras são secretas, porque tratam do arrolamento de testemunhas falsas, o que é incriminado por lei. O desenrolar do processo é apresentado de modo a ir aumentando o suspense nos leitores, tal como num bom livro policial. No final, fiquei com a ideia de que Urbino não pode ser considerado inocente. Tem demasiados rabos de palha.

Saber-se-á agora tudo sobre este «crime do século»? Sabe-se mais, mas não se sabe tudo. Por que razão um homem inteligente como Urbino se enredou nesta trama que tantas dores lhe trouxe assim como à sua família (curioso o nome da mulher)? Teria tido cúmplices? Esta história dava um bom filme da Netflix se houvesse por aí um produtor atento.

A MONUMENTAL OBRA POMBALINA


Meu artigo recente no As Artes entre as Letras:

Acaba de sair do prelo da Imprensa da Universidade de Coimbra a segunda edição, em capa mole, do primeiro tomo do primeiro volume da Obra Pombalina, que vai reunir não só a obra escrita pelo punho de Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), que se tornou marquês de Pombal em 1769, como as várias obras que ele directamente inspirou e para a qual teve a colaboração de diversos coautores. Os directores da Obra são o historiador José Eduardo Franco e os filósofos Pedro Calafate e Viriato Soromenho Marques, o primeiro da Universidade Aberta e os segundos da Universidade de Lisboa. O livro vindo a lume, que é a primeira parte dos Escritos de Inglaterra (1738-1739), foi coordenado pela historiadora Ana Leal Faria, também da Universidade de Lisboa. O plano geral das Obras Completas, que são resultado do projeto «Pombal Global», prevê 14 tomos e 50 volumes, um monumental empreendimento que só será possível graças ao esforço de uma enorme equipa se tiver suficiente apoio mecenático.

O tomo I, Escritos de Inglaterra (1738-1743), inclui a correspondência diplomática quando o futuro marquês de Pombal (doravante só Pombal) era «enviado» (hoje diríamos «embaixador»), do rei D. João V (1689-1750, rei 1706) em Londres, na corte de Jorge II. Faltam ainda três volumes para completar o tomo, o que significa que a compilação de manuscritos redundou praticamente num volume por ano. O tomo II, em 6 volumes, intitular-se-á Escritos de Áustria (1745-1747), referindo-se ao período em que Pombal foi «enviado» do rei português à corte de Maria Teresa em Viena de Áustria. Em 1750, quando D. João V morreu e o seu filho D. José I (1714-1777) foi entronizado, ele tornou-se Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra (1700-1755). Esse período será coberto pelo tomo III, Negócios Estrangeiros, em dois volumes. Após o Terramoto de 1755, Pombal padrou a ser Secretário de Estados dos Negócios Interiores do Reino, lugar em que permaneceu até o rei morrer, em 1777, quando ocorreu a chamado «Viradeira», isto é o repúdio das ideias e métodos de Pombal. Perante a retirada do rei da cena pública, assustado com o grande desastre natural, Pombal tornou-se um homem de Estado, diríamos hoje «primeiro-ministro», com amplos poderes. As Obras Completas Pombalinas preveem para esse período dez tomos, do IV ao XIV, com um total de 32 volumes, agrupados por temas: Administração Colonial, Arquitectura, Política e Práticas Sociais, Perseguição dos Jesuítas e da Nobreza, Igreja Católica, Assistência, Economia. Justiça e Ordem Pública, Aparelho Militar, Educação e Epistolografia Diplomática). O tomo XV apresentará a Apologia de Pombal, escrita no seu retiro perto da vila com o mesmo nome, em que se defende das acusações que lhe foram movidas, e, finalmente, o tomo XVII será uma Biografia, contendo documentação mais pessoal. Louvando a visão deste grande projeto, só espero que ele atinja bom porto.

O livro já publicado contém, para além da uma introdução geral em que Pombal e as Obras Completas Pombalinas são apresentadas pelos directores, uma introdução às Cartas de Inglaterra, da autoria da coordenadora do primeiro tomo. Depois dos critérios da educação, surge o grosso do volume contendo cartas de ofício redigidas pelo enviado e dirigidas a António Guedes Pereira (?-1747), que era Ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos e que interinamente ocupava o cargo de Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, enquanto o titular Marco António de Azevedo Coutinho (1688-1750) estava ausente em Inglaterra (Coutinho, que era primo afastado de Pombal, foi o seu antecessor nas funções diplomáticas em Londres), e ao próprio Azevedo Coutinho, quando ele reocupou as suas funções em Lisboa. Depois há um conjunto de cartas a D. Luís da Cunha (1662 –1749), que na altura era enviado do rei português a Paris depois de o ter sido em Londres, Madrid e Haia (este diplomata é um dos homens mais notáveis do reinado joanino) e outro conjunto de cartas a João da Mota e Silva ou Cardeal da Mota (1685–1747), o poderoso conselheiro de D. José, o homem forte do regime, embora não ocupasse nenhuma secretaria de Estado. Finalmente, há algumas cartas diversas, algumas delas dirigidas a outros enviados portugueses na Europa. Conclui-se que havia uma rede de contactos entre os enviados joaninos em várias capitais da Europa, que não passava necessariamente por Lisboa. De facto, no reinado de D. João V existiu um notável conjunto de diplomatas, que representavam um reino que, sendo rico na altura graças ao ouro do Brasil, queria ombrear com as maiores potências europeias.

 Pombal não tinha o brilho retórico nem o poder de concisão de D. Luís da Cunha, sendo os seus escritos por vezes repetitivos, para não dizer confusos, e enfadonhos (D. João V não queria, por vezes, ouvir as suas cartas!). Apesar de ter sido um bom organizador, não se pode dizer que Pombal tenha tido grande êxito como diplomata: a Inglaterra era uma velha aliada, desde o tempo do tratado de Windsor, mas pouco ligava às pretensões de Portugal, colocando os seus interesses acima de tudo. Mas foi em Londres que Pombal começou a sua formação de homem de Estado, aprendendo a ser diplomata – ninguém nasce diplomata - e conhecendo um outro tipo de regime, a monarquia constitucional (implantada com a Revolução Gloriosa de 1688), e outros tipos de negócios (como os da Companhia das Índias), para não falar dos avanços científicos e filosóficos que ocorriam na Inglaterra (basta pensar em Newton e Locke). Foi em Londres que Pombal começou a recolher os ensinamentos que o iriam tornar um governante esclarecido. Pombal foi um «estrangeirado» que aprendeu primeiro em Londres e depois em Viena como se fazia na Europa desenvolvida antes de tentar fazer cá dentro.

 

VASCO DA GAMA NOS 500 ANOS DA SUA MORTE


Meu artigo no mais recente As Artes entre as Letras:

Se não se sabe ao certo quando nasceu Luís de Camões, apontando-se para 1524, já se sabe bem quando morreu Vasco da Gama, o comandante da armada que descobriu o caminho marítimo para a Índia em 1498: foi a 24 de Dezembro de 1524, vai agora fazer 500 anos, em Cochim, na Índia. É uma coincidência curiosa que entre o poeta e o navegador celebrado por ele no seu poema maior exista esta coincidência de datas. O poema Os Lusíadas, publicado em 1572, canta essa viagem e Camões não se poupa a encómios quando refere Gama: «nobre Gama» (o que era literal, pois Gama veio da pequena nobreza alentejana), «forte Gama», «ilustre Gama», «sublime Gama», «felice Gama», «forte capitão», «valeroso capitão», «capitão ilustre», «nosso capitão esclarecido», «sábio capitão», «facundo capitão», «grande capitão», etc. A Gama, após ter consumado a sua proeza com a chegada a Calecut, é dada por Camões a glória, no canto X, de contemplar, na utópica Ilha dos Amores, a «máquina do mundo», mostrada pela ninfa Tétis: «Vês aqui a grande máquina do Mundo,/ Etérea e elemental, que fabricada/ Assim foi do Saber, alto e profundo,/ Que é sem princípio e meta limitada.»

Camões não foi o único poeta a celebrar Gama. Logo em 1580 o italiano Torquato Tasso fez um soneto onde não só enaltece Gama como fala de Camões. O romântico alemão Friedrich Hölderlin fala de Gama num poema em anda em torno de Colombo. O mesmo se passou com o francês Stéphane Mallarmé, um precursor da modernidade poética. Entre os portugueses, Fernando Pessoa enaltece Gama na Mensagem, o seu único livro publicado em vida, Camilo Pessanha fala das naus de Gama que realizaram a viagem à Índia, e Miguel Torga tem um poema intitulado «Vasco da Gama». Nos nossos dias, Os Lusíadas foi uma inspiração para Gonçalo M. Tavares escrever a sua epopeia Uma Viagem à Índia, onde não há deuses e o viajante é um homem comum.

No reportório de música erudita, encontra-se uma ópera em cinco actos intitulada L'Africaine, composta em 1865 pelo alemão Giacomo Meyerbeer sobre libreto do francês Eugène Scribe, que tem como personagem Vasco da Gama. O famoso tenor Plácido Domingo interpretou esse papel em 1989 na San Francisco Opera. Por sua vez, outro compositor do século XIX, o francês Louis-Alberta Bourgault-Ducoudray, compôs em 1872 uma ópera também baseada na vida e viagens de Gama.

A viagem da primeira chegada dos europeus por mar à Índia, protagonizada por Vasco da Gama entre 1477 e 1479, foi a primeira das três viagens que ele fez àquela região. Foi uma aventura temerária em que só regressaram duas das quatro embarcações que partiram e onde pereceram cerca de dois terços dos tripulantes (o próprio irmão mais velho de Vasco da Gama, Paulo da Gama, que comandava uma das naus, morreu no regresso, tendo ficado sepultado na ilha Terceira, nos Açores). Como prémio pelo seu sucesso, Vasco da Gama recebeu do rei D. Manuel I, que tinha ordenado a expedição, o título de «almirante-mor dos Mares das Índia», o título de Dom, duas vilas (Sines e Vila Nova de Milfontes), e uma renda de 300 mil réis anuais. Não foi longo o seu repouso, pois em 1502 voltaria a partir, por ordem do mesmo rei, para a Índia, agora à frente de uma armada maior, a fim de reforçar a presença lusa no Oriente. Instalou uma feitoria portuguesa em Cochim, cidade onde mais tarde viria a morrer. Foi nessa segunda viagem que cometeu o acto bárbaro de incendiar um navio de peregrinos muçulmanos.

Finalmente, após um longo período de descanso e após ter sido, em 1919, nomeado Conde da Vidigueira, fez uma terceira viagem à Índia em 1524, na condição agora de vice-rei (o terceiro) e governador (o sexto). O seu filho Estêvão da Gama (tinha o mesmo nome do pai de Vasco da Gama) haveria de ser também governador. Pouco depois de chegar à Índia, o vice-rei Vasco da Gama foi apanhado pela malária, que o vitimou em poucos dias. Não teve tempo para desenvolver a sua acção política. Sepultado na Igreja de São Francisco em Cochim, foi transladado para a Vidigueira em 1539 e, em 1880, para o Mosteiro dos Jerónimos, onde hoje está.

Para assinalar os 500 anos da morte de Vasco da Gama, o Centro de Estudos Globais da Universidade Aberta organizou em Sines em 16 de Dezembro, em colaboração com o município local o simpósio «Vasco da Gama. Construtor da Globalização». O título tem cabimento. A primeira viagem de Gama permitiu iniciar a «carreira da Índia», que assegurou o comércio de especiarias do Oriente para Ocidente por mar. Até então existia já um comércio de especiarias, mas ele pelo menos em parte tinha de ser feito por via terrestre (o canal de Suez só foi aberto no final do século XIX). A presença muçulmana no Médio Oriente e na Ásia Menor dificultava ou impedia mesmo a ligação entre a Europa, a Índia e o Extremo Oriente. Vasco da Gama mudou as rotas do comércio global, afirmando-se como um dos protagonistas maiores do que se chama «primeira globalização» (outros são Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral, o segundo a chegar à Índia por mar). 

Basta ler Os Lusíadas (o canto V em particular) para se perceber que a observação, a experimentação e o raciocínio, que são ingredientes essenciais do moderno método cientifico, já estavam presentes nos navegadores portugueses. Leia-se, por exemplo, esta estância: «Os casos vi que os rudos marinheiros,/ Que têm por mestra a longa experiência,/ Contam por certos sempre e verdadeiros,/ Julgando as cousas só pola aparência,/ E que os que têm juízos mais inteiros,/ Que só por puro engenho e por ciência,/ Vêem do mundo os segredos escondidos,/ Julgam por falsos ou mal entendidos.»

 

domingo, 22 de dezembro de 2024

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum Natura

"Os alunos vão deixar em breve de poder utilizar os telemóveis nas escolas do Brasil, após a aprovação de uma lei pelo parlamento que visa sensibilizar os jovens para os efeitos nocivos dos ecrãs. O Governo (...) deputados e associações de encarregados de educação têm feito campanha a favor das restrições ao uso do telemóvel nas escolas primárias e secundárias. Mais de metade das crianças brasileiras dos 10 aos 13 anos possui telemóvel, uma proporção que chega aos 87,6% entre os adolescentes dos 14 aos 17 anos.
De acordo com dados do Comité Gestor da Internet no Brasil, quase dois terços das escolas do país já restringem o uso de dispositivos móveis, mas apenas 28% proíbem completamente os telemóveis.
A lei, que diz respeito aos alunos dos 4 aos 17 anos (...), determina que, para "preservar a saúde mental, física e psicológica das crianças e adolescentes", os telemóveis serão proibidos nas escolas, tanto nas salas de aula como nos intervalos. Autoriza excecionalmente a utilização de dispositivos eletrónicos para fins educativos ou por razões de acessibilidade.
O ministro da Educação (...) também se pronunciou a favor (...): "As experiências no mundo inteiro têm mostrado o prejuízo que tem sido um deficit de atenção no uso de aparelhos celulares ou equipamentos digitais tecnológicos dentro da sala de aula" (...) "O telemóvel tirou a socialização das pessoas. Precisa ter um limite".
"A proibição dos telemóveis nas escolas melhora os resultados académicos, especialmente para os alunos em dificuldades", observou a UNESCO, num relatório publicado em 2023. No entanto, a agência das Nações Unidas advertiu que "proteger os estudantes de tecnologias". novas e inovadoras pode colocá-los em desvantagem".

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

35.º (E ÚLTIMO) POSTAL DE NATAL DE JORGE PAIVA: "AMBIENTE E DESILUSÃO"

Sem mais, reproduzo as fotografias e as palavras que compõem o último postal de Natal do Biólogo Jorge Paiva, Professor e Investigador na Universidade de Coimbra.
 
 
"Após mais de meio século de atividade cívica pelo Ambiente e pela Natureza, tenho plena consciência de ter sido uma luta improfícua. Proferi cerca de 2500 palestras de educação ambiental, na sua maioria em escolas. 
 
Os alunos sensibilizados e despertos para o desastre ambiental do Planeta Terra, a Gaiola que habitamos. No entanto, os jovens são de tal modo estimulados para o consumismo que, ao chegarem a adultos, esqueceram tudo o que ouviram. 
 
Reflexo disso, são os atuais políticos e governantes, mesmo aqueles que foram alertados para os problemas ambientais que nada fazem para tentar travar ou minimizar o desastre ambiental corrente e cujas primeiras consequências são bem visíveis.

Estamos a comemorar o 5.º Centenário do nascimento de Camões, sendo Os Lusíadas a sua obra poética mais estudada pelos alunos. Mas além do poema épico, Camões legou-nos abundante poesia lírica. Camões foi, pois, também um poeta lírico. Na minha atividade cívica pelo Ambiente e pela Natureza também fui um ´lírico`, por ter sonhado e acreditado conseguir sensibilizar e consciencializar os jovens. 

Camões é um valoroso e verdadeiro lírico, enquanto eu fui um ´lírico` irrealista. É penoso chegar ao limiar da vida com a consciência de não ter conseguido resultados nenhuns e de que a Gaiola em que vivemos está imunda, plena de poluição gasosa, líquida e sólida, muito quente, com frequentes incêndios, o nível médio oceânico a subir, as calotes de gelos polares e das altas montanhas a desaparecerem, tempestades com inundações devastadoras, grandes lagos a secarem e regiões do Globo a desertificarem, como, por exemplo, o Centro e Norte de Portugal montanhoso, já transformado num deserto rochoso.

O meu desalento é enorme. Por isso, este cartão que é o 35.º da série que distribui anualmente, é o último. Deixei de ser um ´lírico` e percebi que não vale a pena continuar com a atividade cívica de educação ambiental.

Apesar disso, não posso deixar de fazer os meus votos para que os nossos governantes se capacitem que é fundamental estabelecer e incrementar o rápido ordenamento florestal do país e humanizar novamente as nossas montanhas, para acabarmos com os piroverões, com consequente aumento da área do deserto rochoso das nossas montanhas."

Jorge Paiva, 2024

domingo, 15 de dezembro de 2024

AS FÉRIAS ESCOLARES DOS ALUNOS SERÃO PARA... APRENDER IA!

Quando, em Agosto deste ano, o actual Ministério da Educação anunciou que ia avaliar o impacto dos manuais digitais suspendendo, entretanto, o alargamento a mais turmas do ensino básico e secundário (ver aqui) e, em Setembro, fez recomendações às escolas sobre uso de smartphones em contexto escolar (ver aqui, cujos desenvolvimentos podem ser vistos aqui) devo dizer que pensei na possibilidade de se estar a iniciar uma mudança positiva na educação pública em Portugal. Ou seja, uma mudança compatível com aquilo que a investigação científica digna desse nome tem evidenciado, e que o próprio Ministério da Educação invocou, sobretudo nas ditas recomendações.
 
Isto mesmo sem perceber a razão de se fazer mais um estudo de avaliação do impacto dos manuais digitais quando há muitos estudos recentes de elevadíssima qualidade que convergem num mesmo sentido: os manuais em papel são, a diversos títulos, preferíveis em termos de aprendizagem. E, no conjunto, há estudos que apresentam meta-análises que deixam poucas dúvidas a este respeito.

Recorte obtido aqui
Ora, em Novembro, em nome da inclusão, o Governo anunciou que será dado "a cada aluno um tutor educativo de inteligência artificial adaptado aos nossos currículos para o ajudar a compreender o mundo” (ver aqui), tendo agora lançado um projecto-piloto para ensinar inteligência artificial durante as férias (ver aqui).

Convenhamos que a intenção de dar um "tutor educativo de inteligência artificial (...) para ajudar a compreender o mundo”, não soa propriamente bem a quem tem algum conhecimento e reflexão sobre o que é educar. "Tutor" é uma palavra que não se poderá aplicar a um recurso digital e "compreender o mundo" tem que se lhe diga, mesmo quando tentado por pessoas (bem) formadas para tal tarefa.
 
Ora, a intenção de ocupar as férias dos alunos com tarefas escolares não soa melhor. Há que perguntar se voltamos à figura de "escola a tempo inteiro"? É que a escola tem de ser escola, mas não pode ser tudo. As férias escolares, tal como a expressão indica, servem (ou deveriam servir) para descansar das tarefas escolares, devendo as crianças e jovens ser orientados (pelos adultos) para sair do mundo digital em que passam horas infinitas, como mostram inúmeros estudos, nomeadamente um recentemente publicado em cuja apresentação esteve o Ministro da Educação (ver aqui).

Não tive mais notícias do tal "tutor", mas o dito projecto parece ir em frente pois faz parte da Estratégia Digital Nacional, aprovada há poucos dias em Conselho de Ministros (ver aqui). Nele foram envolvidos municípios que criarão condições para ensinar "programação, robótica e conteúdos relacionados com a inteligência artificial". Nas férias, bem se vê!

A questão, note-se, não está na aprendizagem/formação para o digital. Ela é importante para que os alunos (e também os professores) não se tornem meros consumidores, mas sejam, sim, utilizadores conscientes dos novos recursos tecnológicos e do seu movimento no espaço virtual; a questão está no facto de essa aprendizagem/formação ter sido, tanto quanto percebi, remetida para as autarquias e poder ser assumida por educadores/professores que não estejam devidamente preparados em termos técnicos e éticos. E de ser disponibilizada nas férias escolares...

Em suma, o designado plano de transição digital está em marcha na educação pública no nosso país, pois, além do que acima disse, foram recentemente alocadas verbas para arranjo e substituição de computadores nas escolas com vista à realização de provas de avaliação nacionais.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Debate: Europa de Pós-Crescimento

"Geopolítica de uma Europa Pós-Crescimento" é o tema do debate que irá ter lugar amanhã, sábado, dia 14 de dezembro, às 14h30, no auditório da Casa Fernando Pessoa. 

No debate participarão Richard Wouters, Ana Gomes, Inês Cosme e Rui Tavares, que irão trocar ideias sobre os conceitos de pós-crescimento, decrescimento ou crescimento verde. Num contexto histórico marcante de depleção de recursos naturais, de alterações climáticas, de asscenção de autoritarismos e de guerra às portas da Europa, importa debater os vários rumos para o futuro da Europa.

Data: Sábado, 14 de dezembro, 2024, às 14h30
Local: Auditório da Casa Fernando Pessoa, R. Coelho da Rocha 18, Lisboa

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

QUEM NÃO É FELIZ QUE TRATE DE O SER E DEPRESSA!

Na continuação de texto anterior (aqui).

Deixemos de lado a ideia de felicidade de Aristóteles, basilar do pensamento ocidental, e de filósofos que se lhe seguiram interessados por esta virtude ou, mais prosaicamente, estado de alma. Situemo-nos no ambiente neoliberal (melhor dito, utraliberal) que tem fixado com finalidade última da vida a produção-consumo, o lucro financeiro, o sucesso material, o mérito individual, a utilidade, funcionalidade e eficácia do agir humano.

Entende-se, neste ambiente que a "felicidade é lucrativa", por isso se tem desenvolvido a "indústria da felicidade" e consolidado a "ditadura da felicidade".

Vê-se prosperar a investigação sobre a felicidade, os rankings da felicidade, a formação para a felicidade, os gabinetes, departamentos que escrutinam/promovem a felicidade... 

A felicidade é uma obrigação que não admite interrupções ou excepções, nem, mesmo, variações. Não pode depender das circunstâncias ou das inclinações de cada um.

Não se pode ser feliz de qualquer maneira: tem de se ser feliz de uma certa maneira, que é uma maneira rasa, sobretudo pelo apelo que faz às emoções (as quais, recordo, constituem a base mais ancestral de relação com o mundo: de reacção biofisiológica aos estímulos que dele advêm).

Quem não for feliz dessa certa maneira, que faça por sê-lo, e depressa!

Esse ambiente tem-se infiltrado em todos os sectores da sociedade e também no sistema educativo e formativo público. 

Por isso (e referindo-me à notícia que destaquei em texto anterior) uma vez identificada a tristeza (que será falta de felicidade? Enfim, por certo, será uma emoção negativa) entre os professores, há que proporcionar-lhes "literacia emocional", de modo preventivo, na formação inicial, e remediativo, na formação contínua.

E se eles não mostrarem as "habilidades" pretendidas? Não podem entrar na carreira docente? São convidados a abandoná-la? 

Imagem recortada daqui
Atendendo a um caso muito recente, que se me afigura verdadeiro, estas perguntas não são tão estranhas como, à primeira vista, poderão parecer.

O caso é o seguinte: uma certa empresa não europeia (isso fará alguma diferença?) "de beleza e bem-estar" passou aos seus funcionários um inquérito para conhecer o seu nível de stress. Em resultado, aqueles que revelaram níveis mais elevados da dita maleita foram despedidos. Em seu benefício, claro! 

É isso que se diz no email que receberam: “Para garantir que ninguém permaneça stressado no trabalho, tomamos a difícil decisão de nos separarmos dos funcionários que indicaram stress significativo".

Texto recolhido aqui

A decisão da empresa passou para a comunicação social e não foi bem acolhida. Seguiu-se a emenda: tudo não passava de um mal-entendido pois o que se havia pretendido fazer era uma campanha para aumentar a conscientização sobre o stress no trabalho (ver aqui e aqui).

Lição de moral: quando nos for solicitada colaboração na resposta a um questionário, inquérito, entrevista, escala, o que for, convém perceber que entidade recolhe os dados e com que intenções o faz. É que, lamentavelmente, os dados que facultamos podem virar-se contra nós.

Reforçando o sentido do meu texto anterior: uma vez identificada "tristeza" num apreciável número de professores, a proposta que, mais imediatamente, a tutela apresentou não foi no sentido de superação das causas que possam estar no sistema, mas de os "ajudar" a resolver um problema que lhes será intrínseco. Contudo, não é (ainda) o despedimento...

MONUMENTO NATURAL DA PEGADAS DE DINOSSÁURIOS DA PEDREIRA DO GALINHA – OURÉM E TORRES NOVAS UMA HISTÓRIA DE MAIS DE UM QUARTO DE SÉCULO

Por A. Galopim de Carvalho

Tudo começou com um telefonema na manhã do dia 6 de Julho de 1994, já lá vão 30 anos, João Carvalho e os seus companheiros da Sociedade Torrejana de Espeleologia e Arqueologia acabavam de descobrir, na Pedreira do Galinha, junto à localidade de Bairro, entre Torres Novas e Fátima (numa paisagem eminentemente calcária, no flanco oriental da Serra d’Aire), os mais longos e também os mais antigos e bem conservados trilhos de dinossáurios saurópodes de que havia conhecimento.

Foi nesta localidade da freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias, do concelho de Ourém, que “Alfredo Galinha, Lda.” iniciou, há décadas, a exploração da pedreira que trouxe à luz do dia a que se tornou uma das mais famosas jazidas com pegadas de dinossáurios do mundo. Exposta na imensa laje que constituía o fundo da pedreira, então ainda em plena laboração, cedo se tornou notícia entre a comunidade científica nacional e internacional.

Vários atributos fizeram desta jazida um caso único, não só do lado de dentro das nossas fronteiras, como à escala do planeta:
1. A abundância e perfeição das pegadas, em número de mais de quatro centenas, organizadas em duas dezenas de trilhos, dois dos quais com mais de 140m de comprimento, constituíram, desde logo, um factor de enorme interesse para o achado.
2. A idade da camada de calcário que conserva um tal testemunho da passagem destes animais, atribuída ao Jurássico médio, com cerca de 175 milhões de anos, representa outra novidade para a paleontologia. Provou-se aqui que este grupo de grandes herbívoros já existia bem representado nesta altura, isto é, uns 25 milhões de anos mais cedo do que o intervalo de tempo que era atribuído à sua passagem pela Terra.
3. O animais e o seu grande porte, deduzido pelas marcas aqui deixadas. Estas, as pegadas, indicam herbívoros (saurópodes) com cerca de 30 metros de comprimento e dezenas de toneladas de peso, o que constitui mais um elemento valorativo da ocorrência.
4. O grande número de trilhos é indicador de determinados comportamentos individuais e sociais.
5. A nitidez e boa definição das pegadas forneceram elementos que ajudam a caracterizar a morfologia das extremidades dos membros.
6. As dimensões da jazida, invulgarmente espaçosa (250x250m) contendo os icnofósseis (ou seja, as pegadas) – o topo de uma única laje, levemente basculada para Norte, no sentido do escarpado (com 30m de altura) deixado pela frente de exploração – dão-lhe invulgar espectacularidade, susceptível de ser apreciada a partir de diversos locais de observação, quais miradouros espalhados ao longo de um percurso pedonal com cerca de 1600m, que circunda a totalidade do Monumento Natural.
7. Grande importância, como polo de atracção turística, convicção amplamente potenciada pela proximidade (10km) do Santuário de Fátima.
Estudos paleontológicos da jazida
 
Após estudo preliminar da jazida realizado no MNHN, solicitei à Fundação Luso-Americana a vinda a Portugal do Prof. Martin Lockley, destacado especialista em paleoicnologia da Universidade do Colorado, em Denver.

Entusiasmado pelo interesse científico, grandiosidade e espectacularidade desta jazida, este colega elaborou um parecer altamente favorável à defesa de mais este monumental património paleontológico, a fim de ser presente ao governo e às duas câmaras, Ourém e Torres Novas, que partilham entre si a área ocupada pela jazida.

O estudo icnopaleontológico de pormenor desta jazida consta da dissertação de doutoramento de Vanda Santos.

Uma promessa cumprida

Estava-se em plena campanha eleitoral para as legislativas de 1995. Aproveitando a visita a Torres Novas do candidato do Partido Socialista, António Guterres, foi-lhe mostrada a jazida, que não deixou de o impressionar. Questionado sobre o que iria decidir sobre o futuro desta jazida, prometeu empenhar-se na sua defesa.

Com efeito, uma vez eleito, o novo Primeiro-Ministro fez cumprir a sua palavra. Assim, após conversações entre o governo e o industrial, foi acordado pôr fim à exploração, mediante uma indemnização de cerca de um milhão de contos ao concessionário, e a entrega do sítio à administração do então Parque Nacional das Serras d’Aire e Candeeiros (PNSAC). Cabe aqui lembrar o papel significativo da Ministra do Ambiente, Prof.ª Elisa Ferreira, que deu todo o seu apoio a esta causa (era Ministro das Finanças o malogrado Prof. Sousa Franco) e enaltecer o civismo do concessionário Rui Galinha que, com vultuoso prejuízo material, esperou mais de um ano com a exploração suspensa, na incerteza da decisão do referido ministro das Finanças

Programa preliminar

 
Em 1896 (já lá vão 28 anos), na qualidade de director do então Museu Nacional de História Natural (MNHN), concebi com o apoio, no plano da arquitectura, do Prof. Mário Moutinho, um programa preliminar de musealização deste Geomonumento (é assim que o classifico), que submeti à apreciação de responsáveis, a diversos níveis do governo, do Ambiente, da Educação, da Ciência e Tecnologia, da Cultura, da Juventude e do Turismo, constituindo um primeiro documento onde se propunha um plano de acção a curto, médio e longo prazos, visando a implantação, no local, de uma vasta estrutura museológica e demais equipamentos de apoio. Desse programa, que se perdeu nas gavetas das administrações, constava:
1. restauro e consolidação da camada de calcário que contém as pegadas, mediante intervenção adequada, em especial nas zonas esmagadas e/ou fracturadas pelas cargas de dinamite e sujeitas à erosão pelas águas pluviais. Esta intervenção começou agora a ser executada pela empresa Floradata.
2. valorização das pegadas operando experiências de sombreado (com corantes a definir) que as valorizem qualquer que seja a incidência da luz solar, ou em dias de céu encoberto e iluminação difusa, aliás muito frequentes. Esta sugestão, que ainda não foi adoptada, é a que melhor reproduz a imagem que se tem pela manhã, em dias de sol, evocando um cenário de grande realismo, como se tivessem acabado de passar por ali os dinossáurios de que aqueles trilhos são testemunho. Nunca consegui convencer os responsáveis por este Monumento Natural da necessidade deste procedimento que tive oportunidade de apreciar numa jazida na Alemanha. O recurso à pintura uniforme do total das pegadas, como foi ali tentado, anula-lhes o relevo, oferecendo uma imagem irreal, estampada na pedra, que se afasta do realismo que deveria ser procurado.
3. implantação de um sistema de passadiços, sobrelevados 20 a 30 cm do chão, ladeando os principais trilhos, com gradeamento, que permitissem ao visitante percorrê-los sem pisar a laje, num circuito cómodo. Esta sugestão foi agora adoptada.
4. criação de um “jardim jurássico” com plantas de grupos característicos do Jurássico e ainda existentes, a localizar num recanto da pedreira, há muito abandonado e abrigado do quadrante norte, exemplificativo da flora contemporânea dos dinossáurios que ali viveram. Este recanto seria valorizado pela simulação de um ambiente tropical, húmido e quente, em regime de estufa. Entre as plantas e por indicação do Prof. Fernando Catarino, deveriam figurar, ali Equisetum, Polipodium, Pteridium, Cycas, Ginkgo, Araucaria, Podozamites, Cupressus, Taxodium, Podocarpus, etc. No interior deste jardim, projectava-se a localização de um lago naturalizado. Da superfície da água deste lago propunha-se que saísse, o longo pescoço e a cabeça de um saurópode, dispensando, assim, a execução do restante corpo do animal (a mais dispendiosa) cuja presença submersa fica subentendida. Esta proposta de jardim Jurássico foi parcialmente concretizada mais tarde. Fazer sair da água do lago o pescoço de um herbívoro, semelhante aos que ali deixaram as pegadas, constituiria um elemento pedagógico sugestivo e de custo reduzido.
5. percurso de circulação pedonal, aproveitamento de um percurso na periferia do sector da pedreira, onde se distribuem as pegadas, com definição de locais de observação apoiados em painéis explicativos. Neste percurso, minimamente naturalizado e equipado (réplicas de diversas espécies de dinossáurios, bancos, guaritas, cestos para papéis e lixo, bebedouros, sanitários), deveria ser privilegiado, como miradouro, um local bem definido a WSW, no enfiamento dos dois trilhos principais, uma vez que é daqui que se obtém a visão mais grandiosa e espectacular da jazida. Este miradouro não foi instalado.
6. criação de um museu e centro de interpretação com o equipamento adequado (auditório, biblioteca e arquivo, salas de exposições e oficinas pedagógicas, refeitório, cafetaria, loja, sanitários etc.), agora muito parcialmente concretizado.
7. exposição de esqueletos montados, num pavilhão concebido para oferecer ao visitante um complemento do maior interesse pedagógico.
8. parque de merendas convenientemente equipado.
9. viagem no passado da terra entendida como um circuito pedonal concebido como uma viagem no passado da Terra, ao longo do qual se poderia observar uma sucessão convenientemente escolhida de réplicas de animais e plantas que só conhecemos através dos fósseis, incluindo, no final, o Homem pré-histórico, bem enquadrados em encenações adequadas, com vegetação arbórea e arbustiva compatível, à semelhança do que existe no museu de ar livre de Münchehagen (Hanover, Alemanha).
10. espectáculos nocturnos de luz e som, tendo em conta a grandiosidade da jazida e a proximidade de um centro grandemente atractor de visitantes – Fátima - foi considerada a hipótese de instalar aí um complexo sistema informatizado, em realidade virtual, com utilização de “luz lazer”, para apresentação, em espectáculos nocturnos de luz e som, durante os meses estivais.
11. combóio do tempo, no género dos conhecidos “comboios-fantasmas”, que atraem curiosos de feira em feira, circulando num “corredor do tempo” onde, com recurso aos novos meios de imagem, o visitante pudesse recuar à pré-história.
12. jardim infantil, equipado com elementos usuais neste tipo de espaço, tais como carroceis, baloiços, escorregas, etc., concebidos com base em estilizações de dinossáurios e de outros animais pré-históricos.
13. silhuetas gigantes. A jazida tem como fundo de horizonte próximo, a NE, um cabeço arredondado onde poderiam ser colocadas silhuetas gigantes de saurópodes (à semelhança do touro da “Domecq”, em Espanha). Do lado oposto, a NW, um cabeço mais amplo e mais próximo, permitiria a implantação de uma manada de adultos e crias de saurópodes, descendo a vertente, no sentido da jazida.
14. restaurante e/ou cafetaria com área coberta e esplanada.
15. albergue de juventude, com um número de camas a definir, sugeriu-se a hipótese de adaptação a de uma construção situada 400 m a NW da jazida, de momento com um impacte visual negativo, mas susceptível de beneficiação.
16. parque automóvel. Em apoio aos visitantes considerou-se a criação de um parque automóvel para ligeiros e pesados, de dimensões a definir.
17. os anúncios publicitários do complexo museológico, para além daqueles a colocar nas estradas interiores de acesso ao local, a partir de Fátima, de Torres Novas, de Ourém, etc., deverão incluir informação adequada na autoestrada A-1 (Lisboa-Porto).
Primeiro Grupo de Trabalho
 
No sentido de sensibilizar o governo de então a salvar este logo entendido como um importante geomonumento, organizou-se um grupo de trabalho coordenado pela Arqtª. Maria João Botelho, então directora do Parque Natural das Serras d'Aire e Candeeiros (PNSAC), o Eng.º. Carlos Caxarias, em representação da Direcção Geral de Minas, o Dr. José Manuel Alho, então como elemento da Quercus, o industrial Rui Galinha, o vereador David Catarino, mais tarde presidente da Câmara Municipal de Ourém, o então vereador Pedro Ferreira, da Câmara Municipal de Torres Novas, também ele, mais tarde, presidente desta autarquia, e uma representação do Museu Nacional de História Natural, composto pela paleontóloga, Drª Vanda Santos e por mim, na qualidade de director do dito MNHN.

O local de reunião foi o escritório da própria pedreira e para ali se correu regularmente durante meses até se conseguir o objectivo final: salvar a jazida.

Monumento Natural. Por proposta minha, era eu Director do MMNHN, esta jazida foi classificada como Monumento Natural, em 1966, pelo Decreto Regulamentar 12/96 de 22 de Outubro.

Segundo Grupo de Trabalho
 
Em Janeiro de 1997, foi criado pelo ICN, por diligência da então Presidente Teresa Andresen, um grupo de trabalho visando o “Programa de Intervenção no Monumento Natural das Pegadas de Dinossáurios da Serra d’Aire”, coordenado pelo Dr. José Manuel Alho, de que fiz parte e no qual pudemos contar com a valiosa participação do Arqtº. Martins Barata. Os trabalhos prosseguiram a bom ritmo, havendo, na altura, disponibilidade financeira para executar algumas das propostas iniciais e outras surgidas no seio deste grupo de trabalho, isto enquanto durou a equipa ministerial liderada pela professora Elisa Ferreira. 
 
Desde a sua abertura ao público e até 2002, houve financiamento para inovações importantes, com destaque para o “painel do tempo”, uma pintura mural com 25 m de comprimento, da autoria de Martins Barata, anexa ao jardim jurássico, e o “aramossaurus”, uma enorme estrutura metálica, estilizando um gigantesco saurópode em tamanho natural, do tipo daqueles que deixaram ali os seus rastos há 175 milhões de anos, concebida pelo mesmo arquitecto. Esta mais-valia, assim chamada porque o estudo inicial, em modelo reduzido, foi construído em arame, está implantada em local cimeiro, é visível de todos os pontos do Monumento Natural.

Numa primeira fase, o PNSAC abriu a jazida ao público, com um mínimo de equipamentos que permitiam uma visita, não a ideal, mas satisfatória, antecedida de uma explicação prévia em vídeo, seguida de um percurso a pé, ao longo de um itinerário traçado, apoiado com vários painéis explicativos. Satisfazia-se, assim, ainda que provisoriamente, alguma pressão que se fazia sentir por parte da imprensa e de um público legitimamente curioso e sempre interessado.

Desde logo fico claro que esta jazida é um local de potencial científico, pedagógico, cultural e, por todas estas razões, também, turístico.
1. científico, porque foi alvo de estudo (publicado em diversos trabalhos, incluindo uma dissertação de doutoramento);
2. pedagógico, na perspectiva de prestar apoio ao ensino, dirigido a grupos escolares nas áreas da geologia regional (Maciço Calcário Estremenho), da paleontologia e da paleobiologia dos dinossáurios, da educação ambiental e, ainda, na reciclagem e na actualização de conhecimentos destinadas a educadores e professores;
3. cultural, na medida que tem preocupações de divulgação do saber científico, destinado ao público, não só no domínio da temática da jazida, como no das Ciências da Natureza e do Ambiente, em geral;
4. turístico, por enquanto intencionalmente moderado, será função do investimento que aqui se venha a fazer e na perspectiva de que ali, mesmo ao lado, dez quilómetros a Norte, o Santuário de Fátima recebe milhões de visitantes por ano.
Protocolo de 18 de Maio de 1998
 
Com vista à conveniente musealização do que passou a ser designado por Monumento Natural das Pegadas de Dinossáurios da Serra d’Aire, o MNHN assinou, em 18 de Maio de 1998, um protocolo com Instituto de Conservação da Natureza (ICN), o Instituto de Promoção Ambiental (IPA)e a Associação para o Desenvolvimento das Serras d’Aire e Candeeiros (ADSAICA). Neste espírito, seja qual for o regime (público ou privado) da sua exploração turística, o MNHN continua a ter competência para participar na elaboração das citadas regras e na fiscalização do seu cumprimento por parte das eventuais entidades concessionárias, e deverá ser chamado a fazê-lo. 
Além deste aspecto, o MNHN, como entidade neste processo com idoneidade científica para o objectivo em vista, deverá continuar a participar na produção de toda a documentação informativa no que concerne os aspectos científicos, pedagógicos e culturais da ocorrência, tais como guias, folhetos, brochuras, cartazes, postais, diapositivos, vídeos, etc.

Nunca, no espírito deste protocolo o Museu foi chamado a participar no que ali se decidiu fazer. A 9 de Julho de 2022, teve lugar, na dita pedreira, a inauguração do Centro de Interpretação e de um bem pensado conjunto de passadiços que permitem ver de perto os longos trilhos com pegadas de dinossáurios. Tratou-se da concretização de uma pequena parte do dito programa preliminar. Sou o primeiro a felicitar o ICN e a ADSAICA pelas intervenções inauguradas, estou certo de que muito mais se poderá e deverá fazer e tenciono envolver-me, ao limite das minhas capacidades, na sua concretização.
 
Nessa ocasião tornei público um meu propósito relativamente a este Geomonumento. Era um sonho ambicioso, mas todos sabemos que “sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança. O que eu então pretendia e pretendo ultrapassa o muito e bom que já li se fez. Trata-se de uma iniciativa pessoal que só me compromete a mim, não só na qualidade de cidadão, que sempre fui sou, mas também na de quem, desde a primeira hora, ali deixou muito trabalho. Já o afirmei, por palavras faladas e escritas, que não pretendo ultrapassar ninguém. Felizmente que o relacionamento com o ICNF foi o melhor que se podia desejar e que o sucesso alcançado se, sobretudo, ao trabalho do Eng.º Rui Rombo, Engª geóloga Lia Mergulhão e Drª Ana Falcão. O sonho começa a ser realidade.

Tenho 93 anos, muito provavelmente não o irei ver concluído, mas vê-lo arrancar já é uma felicidade. Este meu propósito, muito claro e frontal, era:
1. divulgar amplamente a real importância desta jazida.
2. convencer as entidades que o tutelam a encontrarem meios para fazer nascer um projecto a ser” pensado em grande”, com projecção internacional, compatível com as características que o distinguem a nível mundial;
3. convencer as mesmas entidades a encontrarem o financiamento necessário à sua execução. 
Oportunamente, informei, deste meu propósito, o Director Regional de Lisboa e Vale do Tejo do ICNV, os presidentes das Câmaras Municipais de Torres Novas e Ourém e o presidente da Associação para o Desenvolvimento das Serras d’Aire e Candeeiros (ADSAICA) e o Reitor da Universidade de Lisboa.
 
Sou o primeiro a felicitar o ICN e a ADSAICA pelas intervenções que acabam de inaugurar, estou certo de que muito mais se poderá e deverá fazer e tenciono envolver-me, ao limite das minhas capacidades, na sua concretização.
 
ESTAMOS TODOS DE PARABÉNS
 
Ontem, 09 de Dezembro de 2024, no pequeno auditório do Monumento Natural com Pegadas de Dinossáurios de Ourém-Torres Novas, foi assinado, pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), Associação Portuguesa dos Industriais de Mármores, Granitos e Ramos Afins (ASSIMAGRA) e Associação para o Desenvolvimento das Serras d’Aire e Candeeiros (ADSAICA), o protocolo para a 1ª fase da musealização deste importante geomonumento.
 
A utopia é a força que transforma os sonhos em realidade.

NÃO VALE A PENA CONTINUAR COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL

O jornal Ensino Magazine fez menção ao último postal de Natal de Jorge Paiva (que reproduzimos aqui ), terminando com uma declaração consta...