quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

“LISBOA É PORTUGAL”


Meu artigo de opinião no Público de hoje:

Na capítulo sexto de Os Maias, Eça de Queirós coloca Ega a dizer: «– Lisboa é Portugal – gritou o outro. – Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento!...» (Arcada refere-se ao Terreiro do Paço). Não sei se é por isso que se diz hoje que Portugal é Lisboa e o resto é paisagem. Numa outra obra, A Ilustre Casa de Ramires, Eça, nascido na Póvoa do Varzim e que estudou no Porto e em Coimbra, acrescentou: “Portugal é uma fazenda, uma bela fazenda possuída por uma parceria (…) Nós os Portugueses pertencemos todos a duas classes: uns cinco a seis milhões que trabalham na fazenda, ou vivem nela a olhar… e que pagam; e uns trinta sujeitos em cima, em Lisboa, que formam a ‘parceria’ que recebem e que governam.”

Lembrei-me do Eça a propósito da actual polémica acerca da transferência do Infarmed de Lisboa para o Porto. Esclareço desde já a minha posição, eu que sou que de Lisboa e que vivo há muitos anos em Coimbra (o meu pai, que trabalhava para o Estado, foi transferido para Coimbra): acho muito bem que o Infarmed vá para o Porto. Em primeiro lugar, um dos grandes problemas nacionais é o desequilíbrio da ocupação do território, que não deve ser visto apenas como a gritante dicotomia entre o interior e o litoral (Portugal, do ponto de vista demográfico, é um plano inclinado para o mar!), mas também como a não menos gritante concentração de recursos financeiros públicos na Grande Lisboa, onde está não só todo o governo como praticamente todos os organismos estatais (os recursos privados seguem os públicos). O Índice de Desenvolvimento Regional do Instituto Regional de Estatística mostra bem a posição destacada da Região Metropolitana de Lisboa face a todas as regiões do país, incluindo o Porto. Os trágicos incêndios deste ano deveriam fazer-nos reflectir sobre a necessidade de tornar o território nacional mais equilibrado. Mas receio que Lisboa (isto é, a “parceria” que governa) não tenha interiorizado isso. Lembro um compromisso ainda não cumprido pelo XXI governo constitucional: a “prioridade política da descentralização tendo em vista a coesão territorial e a diversificação dos pólos de desenvolvimento” e a “maior equidade nas oportunidades de valorização do país através da desconcentração de entidades e serviços”. Tem de ser mais do que uma pia intenção.

Em segundo lugar, se a candidatura do Porto à Agência Europeia do Medicamento teve boa recepção internacional, por que razão a Cidade Invicta não poderá albergar, precisamente num dos locais referenciados, a agência portuguesa correspondente? Recordo que o Porto ficou em 7.º lugar entre 18 concorrentes de toda a União Europeia, tendo sido particularmente prejudicado por Portugal já possuir duas agências europeias, curiosamente as duas em Lisboa, muito perto da Arcada e de S. Bento. Uma terceira agência na mesma capital seria algo nunca visto na Europa, descontado o caso especial de Bruxelas.

 Para ver quão estapafúrdia era a intenção inicial de alguns lisboetas de candidatar Lisboa, basta reparar que as agências europeias sedeadas em Espanha, estão em Barcelona, Bilbau, Vigo, Alicante e Torrejon (arredores de Madrid). E, em França, se é certo que duas estão em Paris, outras duas estão bem longe da torre Eiffel. Existem no Porto infraestruturas de categoria internacional e um cluster na área da saúde assaz relevante. É, portanto, um bom sítio para começar o processo de descentralização, agora com o Infarmed, que é preciso continuar: mude-se, por exemplo, o Tribunal Constitucional para Coimbra e a empresa estatal Lazer e Floresta para Pedrógão Grande. Os trabalhadores do Infarmed não querem sair de Lisboa por estarem na atitude um pouco saloia de só quererem trabalhar no quintal que conhecem? Pois que sejam atendidos os seus direitos, mas há muita gente altamente qualificada que está prontinha a ser contratada para o Porto. Ouvi dizer que os laboratórios de Lisboa não podem ser deslocalizados, mas não se trata de mudar a torre de Belém: é relativamente fácil fazer a mudança de  laboratórios de química.


É natural que a descentralização tenha inimigos. Mas o governo perderá credibilidade se for um deles e voltar atrás na decisão tomada. O Eça daria uma volta na campa…

2 comentários:

Anónimo disse...

Um dia a senhora doutora Ana Benavente, filha de funcionários públicos, decidiu, por sua alta recreação, que as aulas teóricas no ensino secundário deixariam de obedecer à norma obrigatória, e porventura fascista,do período de duração de 50 minutos. No meu tempo, cheguei a frequentar aulas teóricas na universidade e não me lembro de que estas se prolongassem mais do que uma hora. Atualmente, não sei como é, mas é evidente que galfarros de quinze anos não têm pachorra para aturar durante uma hora e meia, com atenção, as lições de qualquer mestre-escola. As magníficas preleções do professor Hermano Saraiva, na televisão, não iam além dos 45 minutos!
Concordo que o Infarmed seja transferido para a invicta cidade do Porto, conforme atestado na pedra do Arco do Triunfo,em Paris, onde figuram as grandes conquistas de Napoleão,mas não estou de acordo que decisões de secretários de Estado sejam tomadas em cima do joelho. Antes de agir, é preciso pensar nas consequências. D. Sebastião cometeu um erro crasso quando, acima dos interesses económicos de Portugal, decidiu expandir o cristianismo pelo norte de África muçulmano.

Anónimo disse...

É giro ver que, sempre que se fala de centralismos em Portugal, é para uma coisa ir de Lisboa... para o Porto. SEMPRE.

É caso para dizer que para essa gente Portugal é Lisboa... e Porto. E o resto, continua paisagem.

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