Meu artigo que acaba de sair na
Revista Lusófona de Estudos Culturais, vol. 3, n. 2,
2015/2016, pp. 103 – 11
A versão em inglês está em:
http://estudosculturais.com/revistalusofona/index.php/rlec/article/view/260
A versão em inglês está em:
http://estudosculturais.com/revistalusofona/index.php/rlec/article/view/260
Resumo:
É discutida a relação
entre Arte e Ciência. É indicada a necessidade da construção de pontes entre a
cultura artística e a cultura científica, as quais cresceram separadas, embora
os assíduos contactos entre elas tenham conduzido sempre a enriquecimento
mútuo. Cotejam-se afirmações de Charles Snow e de Jacob Bronowski nos anos 50
do século passado com as do português António Lobo Vilela, um intelectual
proscrito do Estado Novo muito atento à cultura científica que escreveu um
livro intitulado “Ciência e Poesia”.
Tendo presente a história deste debate, sustenta-se o aprofundamento das
referidas pontes, de modo a concretizar a união da cultura artística e da
cultura científica.
Em 7 de Maio de 1959 o físico-químico, romancista, político
e intelectual público Charles Percy Snow inglês (1905-1980), mais conhecido
pelo nome abreviado C. P. Snow, proferiu na Universidade de Cambridge, no Reino
Unido, uma famosa conferência no quadro das Rede
Lectures (iniciadas em 1706), intitulada “As Duas Culturas”. Essa palestra está contida no livro com o mesmo
título que contém o texto da conferência e que tem sido, em todo o mundo
editado, reeditado, traduzido e comentado (Snow, 1963).
Em Portugal saiu uma edição desse livro nas Publicações Dom
Quixote em 1965. Foi um dos primeiros livros do prelo desta editora, dirigida
por Snu Abecassis, uma vez que foi publicado em Agosto desse ano, após o início
da sua atividade editorial em Abril. Em 1996, saiu uma outra edição na
Presença. É desta última, com tradução de Miguel Serras Pereira, que retiro a
expressiva defesa que Snow faz do seu ponto principal, que é a manifesta
limitação do que apelida “cultura tradicional”. A citação é um pouco longa, mas
vale a pena deixá-la aqui pois ela encerra o cerne da polémica desencadeada
pela conferência:
“As pessoas são também limitadas – e talvez mais gravemente, uma vez que mostram um grande orgulho nas suas limitações. Gostam de continuar a sustentar que a cultura tradicional é a totalidade da cultura, como se a ordem natural não existisse. Como se a investigação da ordem natural não fosse interessante, nem enquanto valor autónomo nem pelas suas consequências. Como se a construção científica do mundo físico não fosse, na culturas sua profundidade intelectual, na sua complexidade e articulação, a mais bela e prodigiosa obra colectiva do espírito do homem. E contudo a maior parte dos não cientistas não faz a mínima ideia do que seja essa constru- ção. Ainda que a queiram compreender, não são capazes. Tudo se passa, em larga medida, como se, para uma extensão imensa da experiência intelectual, pertencessem a um grupo destituído de ouvido. Mas esta falta de ouvido não é um efeito da natureza, resulta da sua formação, ou antes, da sua falta de formação.” (Snow, 1996, p. 79)
É logo a seguir que surge a famosíssima invectiva aos homens
de letras a respeito da Segunda Lei da Termodinâmica, ou Lei da Entropia (ou
melhor Lei da Não Diminuição a Entropia em sistemas isolados, sendo a entropia
uma grandeza física que expressa o grau de desordem de um sistema),
comparando-a à obra de William Shakespeare:
“Como acontece a quem tem falta de ouvido, os não cientistas não sabem o que perdem. Soltam uma exclamação de dó ao ouvirem falar de cientista que nunca leram uma grande obra de literatura inglesa. Desprezam-nos, considerando-os especialistas ignorantes. Mas a sua própria ignorância e o seu próprio grau de especialização são também alarmantes. Estive muitas vezes em reuniões de pessoas que, pelos critérios da cultura tradicional, eram altamente instruídas e que expressavam com uma complacência notável a sua incredibilidade relativamente à ignorância dos cientistas. Numa ou duas ocasiões semelhantes, senti-me provocado e perguntei aos circunstantes quantos de entre eles saberiam dizer o que era a Segunda Lei da Termodinâmica. A resposta era fria: e negativa, também. Mas o que estava a perguntar equivalia, do ponto de vista científico, a esta outra pergunta: Leu alguma coisa de Shakespeare? Hoje penso que, mesmo que tivesse feito uma pergunta ainda mais simples – como, por exemplo: o que entende Você por massa, ou por aceleração? - que equivale, em termos científicos, à pergunta - Sabe ler? – só uma em cada dez dessas pessoas altamente instruídas compreenderia o meu inglês. É assim que, perante o grande edifício da física moderna, a maior parte das pessoas mais inteligentes do mundo ocidental demonstra uma compreensão que não ultrapassa a que seria acessível aos seus antepassados neolíticos.“ (Snow, 1996, pp. 79-80)
Como a questão é
pertinente e o estilo de quem a coloca tem a vivacidade necessária para
suscitar a atenção, não admira que tenha feito correr rios de tinta. Num texto
que publicou quatro anos mais tarde, incluído em “As Duas Culturas em Retrospectiva”, Snow (1996) recuou um pouco em
relação à sua posição anterior com ênfase na separação das duas culturas, tendo
falado da possibilidade de uma sua aproximação recíproca no que se poderia
chamar uma “terceira cultura”. Ao analisar a polémica provocada pelo seu
escrito de 1959, fez, porém, notar que não estava sozinho e nem sequer era o
primeiro a dizer o que tinha dito. Outros autores tinham apontado antes dele a
questão de valorizar a ciência no quadro da cultura humana (o adjetivo “humana”
não é pleonasmo, pois alguns autores falam de cultura no mundo animal, e.g.,
Mosterín, 2009). Em particular, referiu por várias vezes um seu contemporâneo,
o matemático polaco-britânico, de origem judaica, Jacob Bronowski (1908-1974),
que, tal como Snow, fez carreira na administração pública britânica e, também
tal como ele, alcançou uma posição destacada no espaço público da discussão
intelectual. Bronowski, talvez ainda em maior medida do que Snow, é um dos
raros polímatos da modernidade: foi historiador de ciência (é autor de “A Tradição Intelectual do Ocidente”, com
Bruce Mazlich, saído nas Edições 70, em 2002), divulgador de ciência (é o autor
de uma aclamada sé- rie de televisão, que passou na BBC, cujo guião está em
forma de livro, “The Ascent of Man”
(1973), do qual existe uma tradução brasileira, “A Escalada do Homem”), poeta, dramaturgo e crítico literário.
De facto, Bronowski publicou em 1959 na revista Universities Quaterly três artigos
associados a três palestras por ele proferidas no Massachusetts Institute of
Technology, em Boston, nos Estados Unidos, em 16 de Fevereiro, 5 e 19 de Março
de 1953, que, no seu conjunto, constituem o ensaio “Science and Human Values” (1956), do qual saiu uma edição nas
Publicações Dom Quixote em 1972 sob o título “Ciência e Valores Humanos”, tendo surgido uma nova tradução duas
décadas mais tarde, inserida numa coletânea intitulada “A responsabilidade do cientista e outros escritos” (1992), um
volume com introdução, organização, notas e tradução de Nunes dos Santos,
Auretta e Câmara Leme, docentes da Faculdade de Ciências e Tecnologia da
Universidade Nova de Lisboa.
O leit-motiv de Bronowski - a unidade da cultura - foi
ilustrado por ele, não com a obra do dramaturgo de Statford-upon-Avon, como
aconteceu no ensaio de Snow, mas com uma definição do poeta e crítico romântico
inglês Samuel Taylor Coleridge, que, em 1814, no seu livro “On The Principles of Genial Criticism
Concerning the Fine Arts” (1971) escreveu: “A definição mais geral de
Beleza, é portanto – posso cumprir a minha ameaça de me dirigir aos leitores
com palavras duras – Diversidade na Unidade” (no original, Multeity in Unity). Bronowski, servindo-se do conceito de
Coleridge, afirmou:
“Quando Coleridge tenta definir a beleza, regressava sempre a um único pensamento profundo: a beleza, disse, é a “unidade na variedade”. A ciência não é nada mais do que a procura da descoberta da unidade na desordenada variedade da natureza – ou, mais exactamente, na variedade da nossa experiência. A poesia, a pintura, as artes, são a mesma procura, na frase de Coleridge, da unidade na variedade. Cada um, à sua própria maneira, procura as semelhanças sob a variedade da experiência humana. O que vem a ser uma imagem poética senão a apreensão e a exploração de uma semelhança escondida, o manter juntas duas partes de uma comparação que vão dar mais profundidade uma à outra? “ (Bronowski, 1992, p. 120)
Se Snow, na sua polémica peça, valorizou a ciência que, na
sua opinião, estava no espaço público insuficientemente apreciada em comparação
com a arte, Bronowski, mesma linha, chamou a atenção para a unidade essencial
que existia entre ciência e arte: para ele não existiam duas culturas, mas uma
só. O menosprezo pela ciência nalguns círculos não tinha, ao fim e ao cabo,
justificação, resultando apenas de um preconceito, perpetuado porventura por um
inerte sistema de educação. Mais adiante no mesmo ensaio escreveu Bronowski, em
defesa da profunda unidade cultural que descortinava entre ciência e arte:
“As descobertas da ciência, os trabalhos de arte, são explorações – ou antes, são explosões de uma semelhança oculta. O investigador científico ou o artista apresentam neles dois aspectos da natureza e funde-os num só. É o acto da criação que nasce um pensamento original, e o acto é o mesmo na ciência ou nas artes.” (Bronowski, 1992, p. 124)
É curioso que, já num
tempo pós-Snow, o matemático Bronowski tenha achado conveniente efetuar a
apologia da poesia. Numa entrevista que deu ao norte-americano George Derfer,
um académico especializado em filosofia da religião, publicada num número da
revista “The American Scholar” (1974)
e republicada, em tradução portuguesa, no volume coordenado por Nunes dos Santos
e outros no capítulo “A Ciência, a Poesia
e a ‘Especificidade Humana’ ” Bronowski (1992) responde assim a uma das
perguntas: “A poesia é um tema maravilhoso que deveríamos considerar sempre que
falamos de ideias científicas, porque nos relembra que se pode comunicar uma
verdade de indubitável valor intelectual sem necessidade de ser complementada
por qualquer sistema de equações” (Bronowski, 1992, p. 187).
A diferença entre ciência e arte seria, portanto, mais de
linguagem do que de conteúdo. Se a linguagem da ciência era a matemática (como
já se sabia desde que o italiano Galileu Galilei tinha escrito em “Il Saggiatori” (1623, p. 238 da tradução
inglesa), que “[o Livro da Natureza] está escrito na linguagem da matemática e
os seus caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas” a
poesia exprimia-se através da palavra, numa linguagem mais plástica do que a da
matemática mas mesmo assim não isenta de regras.
Mas, se ciência e arte se encontram conluiadas no projeto de
apreensão da unidade do mundo, permanecendo apenas separadas pelo uso de
linguagens diferentes, uma aparentemente mais inteligível por se dirigir em
primeira linha à sensibilidade, será que haveria algum paralelismo no que
respeita à metodologia? Bronowski, na mesma entrevista (1992), defendeu que
tanto a poesia como a ciência dependem da capacidade humana de imaginar, isto
é, “da “nossa capacidade de reter imagens na mente, de identificar estas
imagens com elementos constitutivos da realidade, e de reorganizar estes
elementos em situações imaginárias.” E acrescentou, para que não restassem
quaisquer dúvidas sobre a conclusão que quer transmitir (Bronowski, 1992):
“Todas as nossas actividades intelectuais dependem desta projecção tanto na ciência como na poesia”.
De facto, a imaginação é a grande arma tanto da ciência como
da arte (Fiolhais, 2008). O físico suíço e norte-americano nascido na Alemanha
Albert Einstein, quando em 1929 um jornalista lhe pediu para escolher, entre o
conhecimento e a imaginação, qual era para ele mais fiável, respondeu sem
hesitar: “A imaginação é mais importante do que o conhecimento. O conhecimento
é limitado. Mas a imaginação dá a volta ao mundo” (Calaprice, 2011, p. 12).
Um amigo de Einstein recordaria postumamente uma frase com o
mesmo sentido que ouviu dele:
“Quando faço uma auto-análise e olho para os meus métodos de pensar, chego à conclusão que o dom da imaginação teve para mim maior significado do que o meu talento para absorver o conhecimento em si” (Calaprice, 2011, p. 26).
Neste quadro, gostaria de citar um autor pouco conhecido, o
matemático e engenheiro geógrafo António Lobo Vilela (1902-1966), e uma obra
dele, “Ciência e Poesia” (Vilela, 1955; 2012), sobre as relações entre ciência
e arte. Poder-se-á pensar que as posições nos anos 50 do século passado,
primeiro de Bronowski e depois de Snow, em defesa da unidade da cultura humana
pouco eco encontraram no limitado meio cultural português do tempo do Estado
Novo, dominado por António de Oliveira Salazar. De facto, só apareceram muito
mais tarde na língua portuguesa, pela mão do Dom Quixote, ficando o seu
conhceimento restrito às muito poucas pessoas que acompanhavam a discussão
cultural na Europa do pós-guerra. Mas, curiosamente, Lobo Vilela, também
matemático como Bronowski e opositor ao Estado Novo (Vilela, 1999), numa
conferência no Museu de João de Deus, em Lisboa, no dia 22 de Junho de 1955, escassos
dois anos após a palestra de Bronowski e quatro anos antes da de Snow,
enfatizou, sem citar Bronowski, a proximidade entre ciência e poesia. O livro
que transcreve a conferência intitulada “Ciência e Poesia” (Vilela, 1955; 2012)
e publicado pela Portugália Editora no ano em que foi proferida, começa assim:
“Radicou-se há muito no meu espírito a convicção de que entre sábios e poetas
existem íntimas afinidades, contrariamente a uma opinião muito vulgarizada”
(s/p).
Lembrou, a este propósito, os célebres versos do poeta
Fernando Pessoa (1888- 1935), ou melhor, de Álvaro de Campos, sobre a
equivalência estética entre o binómio de Newton e a Vénus de Milo, que data de
ca. 1915 (Pizarro & Cardiello, 2014): “O binómio de Newton é tão belo como
a Vénus de Milo. / O que há é pouca gente para dar por isso.”
E, recuando mais atrás, cita o poeta, escritor, jornalista e
político Guerra Junqueiro (1850-1923), no seu prefácio à segunda edição do seu
livro de poesia Morte de D. João,
saído originalmente em 1874:
“A poesia é a verdade transformada em sentimento. A lei descoberta por Newton tanto pode ser explicada num livro de física, como cantada num livro de versos. O sábio analisa-a, demonstra-a, e o poeta, partindo dessa demonstração, tira dos factos todas as consequências morais, sociais e religiosas, traduzindo-as numa forma sentimental. A ciência, neste caso, dá o convencimento, a certeza; a poesia dá a emoção, o entusiasmo.”(Junqueiro, 1887, p. 10)
E também cita logo a seguir o poeta e escritor Antero de
Quental (1842-1891), contemporâneo de Junqueiro, transcrevendo um excerto da
carta que escreveu, ainda no seu tempo de Coimbra, ao economista Anselmo de
Andrade:
“O chão, sobre que assenta a certeza de hoje, formou-se pelos aluviões sucessivos da intuição antiga. O que é ciência foi já poesia: o sábio foi já cantor, o legislador poeta; e a evidência, uma adivinhação, um admirável palpite, cujas profundas conclusões são ainda o espanto e porventura o desespero das mais rigorosas filosofias. E, se nadamos hoje em plena luz de razão, foi entretanto a poesia, foi essa doce mão, que nos guiou por entre o pálido crepúsculo dos velhos sonhos. Velhos? Não: sonhos eternos!” (Quental, 1989, p. 32)
Sendo notório o isolamento português nos anos 50 do século
XX, afigura-se notável que, na mesma altura em que Bronowski e Snow colocavam
na agenda cultural a questão da unidade da cultura, um pensador nacional
tivesse discorrido sobre o mesmo tema, ademais citando autores nacionais
(Pessoa, Junqueiro e Quental em vez de Shakespeare ou Coleridge). No Portugal
de Salazar o terreno estava seco para o diálogo cultural – Lobo Vilela era
apenas um dos vários intelectuais banidos pelo regime, impedido como estava de
exercer a sua actividade de professor no ensino secundário e, por isso,
obrigado a viver de traduções e explicações – mas bem poderia ter sido irrigado
por haver pessoas que conheciam as boas fontes do século XIX. O livro de Lobo
Vilela encontrou leitores perspicazes: um deles foi o grande matemático José
Sebastião e Silva, que o cita num dos livros em que apresenta a sua reforma do
ensino secundário da Matemática (Silva, 1977) e outro o físico e historiador de
ciência Luís Miguel Bernardo, que o refere na sua recente história da cultura
científica em Portugal (Bernardo, 2013).
Como evoluiu entretanto a questão da unidade da cultura no
mundo e em Portugal? Nos anos 80 e 90, com o início que podemos remontar à
série televisiva e ao livro que a acompanhou “Cosmos”, de Carl Sagan (2009), uma série de televisão que foi uma
digna sucessora da “Escalada do Homem”,
de Bronowski, numa altura em que se registou uma vaga da ciência no espaço
mediático. O discurso científico passou a estar na moda. Emergiram, além do
inigualável Sagan, outros grandes divulgadores de ciência como os físicos Roger
Penrose e Murray GellMann (um britânico e outro norte-americano), os biólogos
Richard Dawkins e Stephen Jay Gould (idem) e o psicólogo Steven Pinker
(norte-americano). Em 1995 surgiu um livro, intitulado “Terceira Cultura” (1997), do agente literário norte-americano John
Brockman, criador da revista digital Edge. Nesse livro e na linha de Snow no
ensaio de revisitação de “As Duas
Culturas”, Brockman fala de uma “terceira cultura” na qual pretendia
conciliar as culturas científica e literária. Mas, para Brockman, nestes novos
tempos, não havia dúvidas sobre a primazia da cultura científica: os novos
intelectuais públicos eram os cientistas, nomeadamente aqueles com maior
capacidade para divulgar a ciência junto das massas. O livro de Brockman dava
voz a toda uma pleiade de divulgadores que incluía os referidos nomes.
A história das ideias
é feita de fluxos e refluxos. É bem sabido que as correntes pós-modernas, que
convencionalmente entraram na filosofia em 1979 com o ensaio “A Condição Pós-Moderna: Um Relatório sobre o
Conhecimento” (2003) do filósofo francês Lyotard vieram relativizar o
projeto da ciência. Lyotard, cuja intenção original era discutir a influência
da tecnologia, criticou o anseio de construção da metanarrativa subjacente ao
Iluminismo, preferindo uma diversidade de pequenas narrativas, como aquelas que
a linguagem literária proporciona. Se a linguagem da matemática é universal,
tendo como fito a eliminação da ambiguidade, já a linguagem da poesia se alimentava
da polissemia. O famoso caso Sokal (Sokal & Bricmont, 1999), que ocorreu em
1996 quando o físico-matemático norte-americano Alan Sokal publicou um artigo,
polvilhado de jargão científico mas que não passava de um embuste, na “Social Text” (1996), uma revista de
renome de ciências sociais, porta-voz pós-modernismo. Os avaliadores terão
pensado que as ciências sociais ganhariam legitimidade especial pelo uso da
linguagem da ciência. Contudo, no caso em causa, o discurso era perfeitamente
vazio de sentido científico e os admiradores do som poético estavam
simplesmente a elogiar o absurdo. A discussão que se seguiu à publicação do
texto de Sokal, na qual não poderiam deixar de transparecer alguma desconfiança
e ressentimento, não ajudou à unidade das ciências e também não ajudou à
construção de pontes entre ciências e artes. Gould, no seu ensaio “The Hedgehog, the Fox, and the Magister’s
Pox” (2003), contestou que os cientistas estivessem envolvidos numa “guerra
das ciências” pois a maioria até a desconheceria. O diálogo entre ciências e
artes, não isento de dificuldades, prossegue nos dias de hoje. Outro biólogo
norte-americano, Wilson, fala de “consiliência” (1999), um grande encontro
entre vários ramos da ciência, incluindo as ciências humanas, que seria como
uma ponto ómega do empreendimento de busca do conhecimento.
Em Portugal passos de aproximação entre ciência e poesia são
visíveis pela publicação recente de duas antologias sobre poemas de tema
científico, uma mais aparatosa, organizado por Graça Moura e Maria Bochicchio,
“O Binómio de Newton e a Vénus de Milo.
Poesia e Ciência na Literatura Portuguesa” (2011) (o título alude ao poema
de Álvaro de Campos)], e outra mais modesta, organizado por Malhó, “O Bosão do João” (2014). Também no
domínio das artes visuais e das artes performativas, acompanhando movimentos
mundiais, têm surgido entre nós várias tentativas de aproximação entre as “duas
culturas”.
Para terminar, permito-me deixar a minha opinião de
concordância com Bronowski, indo para além do que deixei escrito sobre a
ciência e a arte (1994, 2007, 2008, 2013, 2015). Penso que falar de três
culturas é complicar ainda mais uma questão já de si complexa, que carece de
simplificação e não de complexificação. Não temos que abandonar nem a cultura
artística nem a cultura científica, que cresceram separadas mas com contactos
assíduos que conduziram sempre a enriquecimento mútuo, para adotar uma
terceira. Temos é que encontrar pontes permanentes entre as duas, de modo a que
fique progressivamente evidente tratar-se de uma só. O físico austríaco Erwin
Schroedinger chamou a atenção, em conferências que fez em Londres em 1948 e em
Dublin em 1950, reunidas na coletânea “A
Natureza, os Gregos e Ciência e Humanismo” (1999), que as ciências se
destinam todas a satisfazer a necessidade humana de auto-conhecimento, como
afinal as artes. Para ele, a inquieta- ção última do homem foi e será “quem
somos nós?” (Schroedinger, 1999), refletida na inscrição no Templo de Delfos
“Conhece-te a ti mesmo”. O homem da arte e o da ciência são, afinal, um e o
mesmo homem. Só há uma cultura, a cultura humana, que tem várias facetas, essas
duas e ainda outras, como por exemplo a faceta religiosa. A ideia de que a
ciência está fora da cultura parece-me não só falsa como perniciosa: a ciência
– a capacidade humana de responder, com base num certo método, a questões a
respeito da Natureza - é uma das maiores conquistas do espírito humano. Talvez
o melhor título para uma abordagem das duas culturas seja a de uma série de
romances de C. P. Snow: “Strangers but
brothers” (1940). A cultura literária e a científica poderão parecer
estranhas uma à outra, mas são inequivocamente irmãs.
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2 comentários:
Muitas e interessantes questões nos levanta este texto, que seria proveitoso e fecundo trabalhar. Tudo tem a ver com tudo: ciência com poesia, cultura com ciência, artes com desportos, ciência com artes, tecnologias com humanidades, matemática com música, estrelas com lágrimas, saudade com diamantes, etc...
O problema das relações entre ciência e cultura, todavia, parece-me não ser um problema de concorrência e de rivalidade, (na competição pela valia e domínio, mais do que pela verdade), como o não são as relações entre as diversas artes e desportos.
Incrivelmente, dado o estatuto da ciência, alguns profissionais de ciência, tal como alguns profissionais de santidade, e de fantasias, mais do que verem rivalidade (ou perigo) entre o que seja manifestação cultural e ciência, de preferência matemática, física ou química, laboram numa espécie de menosprezo recíproco.
Em meu entender, o problema não é das ciências, nem das artes, nem dos desportos, nem das humanidades. O problema é querer vê-lo onde não existe.
As perspetivas sobre a realidade (e que realidade?) não são o problema, nem o objeto de análise/síntese (e que tipo de análise/síntese?) nem os objetivos, interesses, etc.. E, por exemplo, no que respeita às artes e às práticas desportivas, as perspetivas podem não fazer parte.
A minha música e o meu futebol vão lindamente com a minha sardinha assada e o meu telemóvel e o Álvaro de Campos e a minha matemática e a minha farmácia e a missa do sétimo dia.
A minha poesia nunca vai interferir, ainda que eu o quisesse, com o teorema de Pitágoras ou a Segunda Lei da Termodinâmica.
O problema surge quando, por exemplo, um matemático me diz que tudo é matemática e que eu, sendo matemática não posso ser, por exemplo, pessoa.
Ou, quando dedico a minha vida à música, vem um químico dizer que a música não existe ou um físico dizer que a música nada mais é do que acústica (de novo Pitágoras), ou um juiz do tribunal declarar que é ruído.
Ou, tendo um diamante, para mim precioso, a coisa mais bela e significativa, que não troco por nada deste mundo, vem um químico e diz que o diamante é uma das formas alotrópicas do elemento químico carbono, que pode ser encontrado na Natureza em três diferentes formas simples: amorfo, grafite e diamante, ou um comerciante vem dizer que não vale mais do que dez milhões de u.m..
Ou, sendo especialista em nanotecnologias, vêm dizer que não sei nada sobre o amor, nem Deus e, dada a minha inabilidade para esse grande edifício da cultura humana que é o futebol, é como se não soubesse ler.
O problema é, em grande parte, de valoração, muito mais do que de utilidade. Noutra parte é um problema de querer comparar aquilo que é diferente como se fossem a mesma coisa.
Não nego a matemática da música, nem a química do diamante, mas para mim a música não é interessante por poder ser traduzida matematicamente, nem o diamante é precioso por ser carbono…
onde , na actualidade , a união entre ciência e arte está bem patente é nas "instalações " feitas de lixo : aquilo é só plásticos e outros resíduos e efeitos perversos científicos :)
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