quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Ciência – contragolpe absoluto

Gonçalo Velho escreveu um artigo de opinião no Público, que com a devida vénia transcrevo. Eu não sei se Nuno Crato quando engendrou ou permitiu que alguém engendrasse este enviesado sistema de "avaliação" da ciência, imaginou que ele iria fazer correr tantos rios de tinta. Mas é tão mau, tão mau que durante muito tempo se irá falar dele como um exemplo de más práticas de gestão da ciência. Este blogue deixa aqui o registo destes tempos sombrios, para que amanhã haja memória do que deve ser evitado.

O conceito de contragolpe absoluto de Hegel pode bem ser aplicado aos últimos quatro anos de políticas de ciência. A apologia da excelência, que como significante-mestre albergava a clássica fórmula de “expurgar” os “maus” para acarinhar os “bons” (leia-se “excelentes”), é uma demonstração clara do entranhado da ideologia, entendida na nossa relação espontânea com o mundo. 

Não é por isso de estranhar as erupções do discurso sobre os premiados, os medalhados, os reconhecidos, aqueles que conseguiam financiamentos volumosos, para depois vermos o apanágio maniqueísta: velhos vs. novos, acomodados vs. ativos, improdutivos vs. produtivos. Subjacente estava a inscrição da ideia de que a ciência não é para todos, mas apenas para os melhores, os que conseguem, invertendo-se aqui também a lógica da responsabilidade, que agora passa a residir apenas no próprio, independentemente das circunstâncias. 

A excelência é o involucro vazio que suportou todo este edifício. Entretanto elidiam-se as contradições óbvias entre esta ideia e as ações da FCT: a quantidade de erros dos sucessivos processos de avaliação, a lógica “computer says no”, a discrepância entre avaliação e financiamento, ou a alteração da avaliação de algumas unidades contestatárias na 2.ª fase, dando sinal de que mesmo a reposição da dignidade e da justiça vem com um preço. Ultimamente, multiplicam-se os relatos de que o Governo pressiona os reitores e, consecutivamente, as unidades de investigação, com o envolvimento direto da sua figura de mais alto nível, na tentativa de que não avancem para ações judiciais. Para tal, acena-se com os seis milhões de euros ainda disponíveis. Sendo esta pressão verdade, a “excelência” encontrou um novo patamar. Nesse quadro, contestar judicialmente torna-se uma matéria que não é apenas da defesa da posição do próprio, mas a da dignidade e legitimidade do comum (a res publica). Talvez Heidegger tivesse razão quando disse que “só um deus nos pode ainda salvar”. Se ele existe, surge na ação da direção da unidade de I&D que primeiro conteste este processo em tribunal. 

A excelência significou tudo e ao mesmo tempo nada, sendo aberta a todos os significados possíveis, uma profundidade que em si tem apenas um vazio. Para perceber o contragolpe, temos de atentar no exercício da negatividade desta política, tornado evidente pela produção contínua de um resto excluído. Veja-se os números de excluídos nos sucessivos concursos, que se articulam também com uma diminuição em dois terços do número de bolsas atribuídas. Muitos foram os que saíram do sistema, incluindo bolseiros, investigadores, ou mesmo unidades de investigação como um todo. Queremos acreditar que este não-todo será absorvido, mas a verdade é que muitos, cada vez mais, não terão lugar no sistema científico português. A razão é óbvia e advém de um erro de base na sua construção. A forma como cada um pensa este erro demonstra também o seu lugar na ideologia. 

 Vejamos três comportamentos que resultam deste cenário: o pragmático, a passagem ao ato e o retorno. O pragmático aceita jogar uma vez indicadas as regras do jogo e possui duas variantes: a identificação (cega e inocente) com a “excelência”, numa procura obstinada de um posicionamento em “rankings” e métricas, ou a sua variante cínica, que observa as regras embora discorde delas, assumindo uma sabedoria básica feita de expressões como “inocente mas não... (tolo, etc.)”. A desigualdade inscrita no sistema, a sua tendência para Um, fará com que a produção da exclusão se mantenha, para desencanto de muitos pragmáticos excluídos. Nem a lógica do capitalismo cognitivo, ou da tecnociência, consegue superar essas contradições, produzindo um contínuo resto, impossível de assimilar. 

A passagem ao ato é sobretudo visível com a contestação, nomeadamente com as manifestações a que assistimos há cerca de um ano. A falta de resposta a esta passagem ao ato dá lugar a uma saída, que podemos atestar em dois movimentos: a emigração (maciça e resposta dominante), ou a busca de um sistema científico alternativo. Essa procura contém em si algum dos elementos sublimados do sistema presente, que importa seguir com atenção. 

 Por fim, o retorno, mais visível na secreta esperança de que o futuro governo reverta todas as medidas tomadas até aqui. Parece aguardar-se que tudo volte ao que era. Ora esta visão do retorno possui uma falácia evidente: a sua nostalgia. O futuro não é um passado primordial passível de ser reconstituído, nem esse passado estava isento de contradições. 

A nossa incapacidade de pensar para além deste limite demonstra-nos a tensão vigente que nos prende entre o anterior e a negatividade presente. A resolução não surgirá no processo de síntese entre um e outro momento. Ela será sobretudo acentuada pelo retorno do que era já reprimido e excluído no primeiro momento. E é aqui que importa criar espaço, sendo fundamental recuperar o trabalho na organização e na representação. 

Veja-se a questão da precariedade, exemplo basilar do reprimido e excluído, apresentando-se como problema que é fundamental ser superado. Temos também as barreiras entre carreira docente e carreira de investigação, que constrangem e colocam falsas dicotomias. 

 Como é óbvio, a resolução destes problemas exige um espaço. A própria repressão da ideia de sindicato é o pronúncio do seu retorno (muitas vezes numa pretensa forma “descafeinada”). A política do futuro determina-se agora. É fundamental que saibamos abrir o espaço que ultrapassa a aporia da ciência no presente. Como é óbvio, ela exige uma inscrição. Esse é um ato que se torna premente. 

 Gonçalo Velho
 Vice-presidente da direcção do SNESup

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