sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O Doutor Cooper, Cinturas Finas e Biceps Volumosos, Mitos e Falácias

“Os processos da ciência são característicos da acção 
humana, porque se movem pela indissolúvel união do 
facto empírico e do pensamento racional.”
(Jacob Bronowski).

Em encontro ocasional havido com o Professor Helder Araújo, catedrático na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, este ilustre académico da Ciência Robótica ainda hoje praticante de musculação e corrida, manifestou o interesse colhido na leitura do meu livro: “Os Pesos e Halteres, a função cardiopulmonar e o doutor Cooper” (Lourenço Marques/1973).

Breves dias depois, em análise que muito me honra, escreveu ele:
“Tive, há alguns dias, a oportunidade de conhecer pessoalmente o Prof. Rui Baptista. Em 73/74 eu, e alguns amigos, praticávamos, de forma relativamente "artesanal", pesos e halteres em Quelimane. Para planearmos e prepararmos os nossos treinos tínhamos acesso a algumas publicações norte-americanas. Muitos dos nossos colegas e amigos nos criticavam, considerando tal tipo de exercício físico como prejudicial à saúde. É então, que, por acaso, compro numa livraria um pequeno livro cujo título era "Os Pesos e Halteres, a Função Cardiopulmonar e o Doutor Cooper", do Prof. Rui Baptista. Esse livro foi realmente fundamental para nós, na altura, por desmistificar as críticas que eram feitas a esse tipo de actividade física. Desde sempre fiquei grato ao Prof. Rui Baptista pelo trabalho que descreve nesse livro e que fez com atletas em Lourenço Marques. O livro foi muito importante para aquele pequeno grupo de jovens atletas. O meu obrigado ao Prof. Rui Baptista!”

Na minha vida profissional, tive momentos de desânimo por me sentir, na minha defesa irredutível do benefício para a saúde dos pesos e halteres, um proscrito perante os próprios colegas de profissão, os praticantes de diversas outras formas de modalidades desportivas e a sociedade em geral que abjuravam os halteres presos ao mito de fazerem mal ao coração, prenderem os músculos e sei lá eu que mais!

Alturas outras houve, em que me senti como que “vingado” como, por exemplo:
1. Na entrada dos Pesos e Halteres pela porta grande da Sociedade de Estudos de Moçambique (“Palmas de Ouro” da Academia de Ciências de Lisboa), através da conferência que aí proferi, intitulada “Os Pesos e Halteres, a função cardiopulmonar e o doutor Cooper, génese do meu livro com idêntico título.
2. Na minha consequente nomeação para presidente da respectiva Secção de Ciências.
3. Na análise/crítica feita pelo Doutor José Santarem ao meu livro.
4. No testemunho do Professor Helder Araújo de eu ter contribuído para desmistificar as críticas de muitos colegas e amigos do seu tempo de estudante por considerarem os pesos e halteres prejudiciais à saúde,
Vivia-se então um tempo tenebroso de crenças, mitos e falácias sem fundamento científico sobre os malefícios dos “ferros” denunciado, com muita autoridade, pelo Doutor José Maria Santarem, um dos maiores especialistas mundiais sobre os efeitos do treinamento de pesos e halteres, ele próprio praticante desta modalidade de exercícios , com um currículo extenso e valioso: fundador e coordenador do Centro de Estudos em Ciências da Actividade Física, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Coordenador dos cursos de pós-graduação em Fisiologia do Exercício e Treinamento Resistido na Saúde, na Doença e no Envelhecimento, Coordenador da Disciplina de Medicina de Exercício para o curso de graduação da Faculdade de Medicina, Coordenador dos cursos para formação de técnicos em exercícios com pesos da Federação Paulista e Confederação Brasileira de Musculação, ordenador dos cursos de pós-graduação do Centro de Estudos em Ciências da Acividade Física, da Faculdade de Medicina da Universidade São Paulo.

Quem melhor do que ele para se pronunciar sobre o meu livro? Como tal, enderecei-o por via postal com essa intenção. Passado tempo, num mail que me enviou para o Centro de Estudos de Biocinética, da Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física da Universidade de Coimbra (2001), de que eu na altura era docente, escreveu ele:
“ Com muita alegria recebi o seu livro e a sua carta.
Nossos ideais são comuns, e nossas dificuldades históricas também. Felizmente hoje as evidências nos apoiam e somos ouvidos, mas é sempre emocionante lembrar os tempos em que éramos quase ignorados. Gostei muito do seu texto que, naturalmente, deve ser lido com a lembrança da situação do conhecimento de então. Como me pediu, segue em nexo um texto meu actual, eu é um capítulo de livro de medicina do exporte, ainda a ser editado.
Meu desejo é que um dia possamos nos encontrar e rir bastante com as dificuldades do passado. Um fraterno abraço.
Santarem.”
Do meu livro (que seria ampliado, com um “Estudo Sobre o Efeito dos Pesos e Halteres nos Valores das Pressões Arteriais Máxima, Mínima e Diferencial”) extraio o texto da” Conferência na Sociedade de Estudos de Moçambique”, por mim proferida em 2 de Julho de 1973, e que serviu de tema a uma Comunicação por mim apresentada no 7.º Congresso Europeu, “Vida Activa da escola à comunidade”, 10 a 14 de Abril de 1966, Universidade de Coimbra:
"Anos atrás, fui confrontado com um livro do famoso Doutor Kenneth Cooper, criador do famoso método de seu nome, que descrevia os malefícios sem conta trazidos pelo treino com pesos e halteres na modalidade de Culturismo. Tendo, na altura, a meu cargo uma classe dessa modalidade no Clube Ferroviário de Moçambique recaía sobre mim a responsabilidade profissional e moral desses (possíveis) prejuízos recaírem sobre os alunos a meu cargo.
Escreveu Cooper:
“Na minha especialização, as aparências enganam. Alguns homens excepcional e fisicamente aptos, testados em nossos laboratórios, eram de meia-idade, franzinos inclusive, de vez em quando surgia um meio barrigudo. Os mais inaptos que tivemos eram rapazes fortes, com má condição física. Desculpem se o que acabo de dizer desfaz qualquer ilusão sobre cinturas finas e bíceps musculosos com chave de boa saúde. Não influem, nem garantem. São apenas um elemento secundário” (Aptidão Física em Qualquer Idade, p. 10, Cooper, Kenneth H, 5.ª edição, Forum Editôra, 1972, Rio de Janeiro).
Para desfazer dúvidas, havia que utilizar as “armas” de Cooper: a sujeição dos praticantes de pesos e halteres por mim treinados (os tais de “cintura fina e bíceps musculosos”), que não praticavam qualquer outro desporto, ao seu teste de aptidão física. Para o efeito, solicitei a colaboração do conceituado treinador de atletismo do Desportivo de Lourenço Marques, António Matos, que não só pôs à minha disposição alguns dos seus praticantes de atletismo como registou os tempos obtidos e atestou todos os outros dados colhidos na pista de atletismo do Parque José Cabral, em Agosto de 72. Para ele, o testemunho público da minha gratidão.

Mas em que consiste o tão famoso (e espalhado urbi et orbi) “Teste de Cooper”™? Resumidamente, em correr ou caminhar, sem qualquer paragem, a maior distância plana possível durante 12 minutos para a partir daí interpretar os dados obtidos com base no quadro seguinte:

A preceder a realização das provas de corrida foram realizadas outros testes e medições. Foram eles:Observação: Para homens entre 40-49 anos de idade, segundo Cooper, a distância percorrida entre 2100 – 2500 metros, é classificada como boa.

1. Registo do número de pulsações/minuto, em repouso e na posição de pé: Foi realizado este registo (na posição de pé) por ser aceite que o treino físiico produz uma bradicardia em repouso. O número de pulsações após a corrida não foi anotado devido à dificuldade em o fazer, motivada pela chegada em pelotão de alguns atletas. Convém esclarecer que os valores obtidos foram condicionados pelo natural nervosismo dos atletas antes de entrarem em prova.

2. Medição dos perímetros toráxicos máximo, mínimo e diferencial: A fim de obstar a que a contracção da massa muscular dos dorsais pudesse influenciar a medição do perímetro toráxico máximo foi ela realizada com os braços encostados ao tronco. Estes valores dão-nos conta da flexibilização da caixa toráxica, isto é da possibilidade da “caixa de ar” aumentar os seus diâmetros ântero-posterior e transversal, ainda que não registe o aumento vertical a cargo da descida do músculo diafragma. O perímetro toráxico diferencial define a elasticidade costo-esterno-vertebral.

3. Capacidade vital: Representa a quantidade litros de ar que um sujeito é capaz de expelir dos pulmões, numa expiração forçada antecedida de um inspiração máxima. Num individuo não sujeito à exercitação Física, embora em condições normais de saúde pulmonar, a capacidade vital cifra-se em aproximadamente 3.5 litros., enquanto que num outro sujeito a treinamento físico intenso esse valor chega aos cinco seis litros. Este factor nem sempre coincidente com a faculdade de captação de oxigénio por parte dos glóbulos vermelhos ou hemácias e respectivo transporte e cedência ao nível do tecido muscular, relação conhecida por coeficiente e de utilização de oxigénio.

Resultados dos praticantes de atletismo no Teste de Cooper: 

Resultados dos praticantes de culturismo no Teste de Cooper:


Em face destes resultados conclui-se:

1.º – Os cinco melhores valores da capacidade vital foram obtidos pelos culturistas, cabendo a José Soares o valor máximo de seis litros.

2.º – Igualmente alcançaram os culturista os cinco melhores valores de perímetro toráxico diferencial, dando-se o caso de Rui Baptista obter o maior valor (17 centímetros), tendo na altura 41 anos de idade e, como tal, teoricamente, dever ter a mobilidade esterno-costo-vertebral diminuída.

3.º – Os três melhores valores das pulsações em repouso foram obtidos por três culturistas, respectivamente, 66, 78 e 84, este ultimo obtido, igualmente, pelo corredor Vitor Candeias.

4.º – Por o treinamento de uma determinada modalidade desportiva conduzir a uma diminuição de sinergias onerosas, os resultados do Teste de Cooper, naturalmente, favoreceram os praticantes de atletismo; contudo, o culturista José Guimarães, classificando-se em 4.º lugar, obteve resultado superior ao dos praticantes de atletismo, Rogério Costa, Carlos Pais e Sérgio Aniceto.

A terminar, volvidas décadas este trabalho de investigação mantém o interesse por ter testado culturistas que não consumiam esteroides anabolizantes. Hoje em dia, o culturismo de competição (eleição de indivíduos com massas musculares disformes) foi invadido por essas “criminosas” substâncias, não sendo possível estabelecer uma fronteira entre os efeitos do treino propriamente dito e a utilização do arsenal químico a ele associado. Por outro lado, os culturistas testados não praticavam a corrida, ao contrário dos culturistas actuais que a utilizam, em preito aos benefícios colhidos com a corrida aeróbica e para «queimar gorduras»".

Houve, portanto, períodos na vida em que me senti útil pelo meu contributo para uma Educação Física que, ao ser amputada de alguns dos seus objectivos, pudesse ser pasto da crítica do Doutor Hans Krauss, professor de Medicina Física da Universidade de Nova York, ao escrever:
“São poucos também os professores de Educação Física que demonstram respeito pelos músculos, ao invés de cuidar para que os jovens cresçam com músculos firmes e flexíveis, a maioria deles se preocupa apenas em treinar times que vençam campeonatos!”
Pese embora Ernest Krestchemer (médico, cientista alemão ee doutor “honoris causa” em Filosofia 1888-1964) ter afirmado que “o homem pensa com o corpo todo”, infelizmente, a crítica a uma Educação Física de “brutamontes”, por vezes, ainda vigora na intelectualidade portuguesa em resquícios de um inefável pedantismo que se acoita na proporcionalidade inversa entre inteligência e músculos, aqueles músculos que o grande Almada-Negreiros endeusou, ao proclamar: “É preciso criar a adoração dos músculos”! 

Na assumida responsabilidade de ter sido campeão de Moçambique de Pesos e Halteres, acredite, leitor, que não sou um Frei Tomás do género “faz o que eu digo, não faças o que eu faço!” Ao contrário dele, continuo a fazer aquilo que digo, como demonstra a minha prática de musculação, três vezes por semana, aos meus 83 anos de idade, cumpridos no passado mês de Maio!

Last but not least, a minha grande gratidão pelo testemunho de uma vivência de exercitação física vivida com o entusiamo da juventude e descrita, com laivos de generosidade para comigo, por um notável académico de Coimbra. Bem haja, Professor Helder Araújo!

Rui Baptista

1 comentário:

Rui Baptista disse...

Peço desculpa ao leitor pela minha iliteracia informática (para além de outras) que fez com que este meu post fosse publicado sem estes dois quadros: 1. "Resultados dos praticantes de atletismo no Teste de Cooper"; 2. "Resultados dos praticantes de culturismo no Teste de Cooper". Assumo, por inteiro, a minha responsabilidade, agradecendo à Doutora Helena Damião a devida rectificação.

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