domingo, 2 de fevereiro de 2025

PERDER A ALMA POR UM PRATO DE LENTILHAS

A poesia de Eugénio Lisboa como leitura da intemporal (e, portanto, actual) condição humana.
Perder a alma é sempre um mal,
mas perdê-la, ou por uma fortuna,
ou, mesmo, um sumptuoso pedestal,
ou tesouro oculto numa duna,

ou cátedra e outras maravilhas,
um título ou um penduricalho,
perdê-la por um prato de lentilhas
é, para a salvação, bem fraco galho.

Que a ambição seja, ao menos, digna
daquilo por que a alma se perde:
descomunal, ainda que maligna,

invasora como floresta verde!
A ambição nunca se quer pequena,
mesmo que louca e extraterrena!


Eugénio Lisboa

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

LIVRARIA DO MONDEGO

Por A. Galopim de Carvalho

Segundo a letra da lei (Decreto-Lei 19/93, de 23 de Janeiro), Monumento Natural é “uma ocorrência natural contendo um ou mais aspectos que, pela sua singularidade, raridade ou representatividade em termos ecológicos, estéticos, científicos e culturais, exigem a sua conservação e a manutenção da sua integridade”.

Em palavras da Autarquia visada, a Livraria do Mondego constitui um “monumento natural que marca a paisagem das margens do rio, junto a Penacova. Depois de ter recebido o Alva, seu afluente da margem esquerda, o Mondego estrangula-se ao atravessar o contraforte de Entre Penedos”. 

E é, com toda a propriedade, um Monumento Natural, porém, incompreensivelmente, não se encontra ainda classificado.

É aqui que, na margem direita do rio, as camadas de quartzito com 480 a 490 milhões de anos (do período Ordovícico) empinadas à vertical, configuram uma série de livros arrumados numa estante.

Obras levadas a efeito pela Câmara Municipal, no sentido da preservação e valorização do sítio, permitem hoje ao visitante uma perfeita visão desta antiquíssima e singular ocorrência geológica.

Para entender o significado desta “livraria” temos de começar por dizer que todo o interior do País e da Península Ibérica, é o que resta de uma pequena parte de uma grande cadeia montanhosa, com mais de 300 milhões de anos, que se estendeu pelo que é actualmente o sul da Europa, o noroeste africano e o leste norte-americano, numa época da história da Terra em que estes continentes, unidos entre si, formavam um único supercontinente conhecido por Pangea. No que se refere a toda a península Ibérica, a erosão actuante no decurso da imensidade de tempo que se seguiu, quase arrasou o vigoroso relevo que aqui existiu, pondo a descoberto toda a complexidade das entranhas desta montanha, hoje esventrada, de que fazem parte diversos tipos de rochas transformadas em profundidade (onde as temperaturas e as pressões são elevadas), a partir de outras, na maioria depositadas no fundo e nos litorais de um muito antigo oceano que aqui existiu antes do dito supercontinente. 

Para os leitores mais afastados destas conversas dos geólogos, e no propósito de terem uma ideia muitíssimo simplificada de como nasce uma montanha, convido-os a imaginarem uma série de lençóis, mantas de diversas qualidades e espessuras, cobertores, colchas e o mais que quiserem, tudo bem esticadinho em cima da cama. Imagine-se que este empilhamento representa uns quilómetros de espessura das camadas de sedimentos depositados no fundo de um grande oceano, ao longo de uma ou duas centenas de milhões de anos, como é, por exemplo, o que está a acontecer no Oceano Atlântico, aqui ao nosso lado. 

Vamos agora abrir bem os braços e agarrar esta pilha de roupa, uma mão de cada lado, e empurrar tudo para o meio da cama. Fica tudo amarrotado, com dobras para cima e outras para baixo. Com a força dos nossos braços (que nesta imagem representam dois continentes em aproximação), enrugando dois metros de roupa, em segundos, fazemos, assim, o que a Terra faz, com todas as forças do enorme brasido do seu interior, em milhares de quilómetros de fundo de um oceano a fechar (como está a acontecer com o Mediterrâneo, que já foi um grande oceano) em mais de cinco dezenas de milhões de anos. Nesta exemplificação, a porção das dobras que fica para cima, representa a parte da montanhosa que se eleva à superfície do terreno e a porção que fica para baixo representa a parte que se afunda na crosta terrestre, ou seja, como se pode dizer, a sua raiz.

As camadas de quartzito da Livraria do Mondego são a parte empinada, quase à vertical, de uma dobra.

«Mas o que é o quartzito?» Pergunta quem não sabe.

Como nos dias de hoje, os mares litorais desse antigo oceano acumulavam grandes quantidades de areia, trazidas pelos rios, resultantes da erosão das terras emersas. São camadas destas areias que, tomadas durante a formação da referida cadeia de montanhas, aquecidas e apertadas no seu interior, se colaram, grão a grão, fortemente entre si, transformando-se na rocha coesa e a mais dura de toda a nossa paisagem, a que foi dado o nome de quartzito.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

CLASSICA DIGITALIA

 NOVIDADES EDITORIAIS

Série “Humanitas - Supplementum” [estudos]

 

Carlota Miranda Urbano & Margarida Miranda (Coords.), Textos Fundamentais da Companhia de Jesus: Pedagogia e Historiografia (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2024). 205 p.

DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-2641-3

  

[Este livro resultou de um Seminário de Estudos Jesuíticos, Textos Fundamentais da Companhia de Jesus, desenvolvido pelo Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, em dois módulos: ‘Na pena do fundador’ e ‘Pedagogia e Historiografia’. O seu arco temporal abrange desde o estudo de textos fundadores como o livrinho dos Exercícios Espirituais ou a Autobiografia, até ao de um texto inédito que documenta a expulsão da Companhia de Jesus de Portugal, passando pelo estudo de fontes que esclarecem a sua implantação em Portugal e o caráter pioneiro do Colégio de Coimbra, bem como dos seus livros de ensino que se estenderam a toda a rede escolar internacional jesuítica. Este livro oferece a oportunidade de revisitar alguns dos textos fundamentais sobre os quais se ergueu o edifício da Companhia de Jesus, protagonista essencial do Humanismo Renascentista. Os Jesuítas viveram em primeira pessoa não só esse movimento cultural, político, científico, filosófico, social, espiritual e social que moldou a Europa do Norte e do Sul, como também o intercâmbio de influências culturais resultante do encontro entre os cinco continentes.]


Série “Mundos e Fundos" (Mundos Metodológico e Interpretativo dos Fundos Musicais)


Soterraña Aguirre Rincón (ed. crit.)Philippe Rogier (c.1560-1596). Domine, Dominus noster. Motete a 12 (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2024). 130 p.

DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-2584-3

  

[El estudio se centra en el motete policoral a 12 voces “Domine Dominus noster” de Philippe Rogier (Arras?, ca. 1560-Madrid, 1596), el último maestro de capilla de Felipe II. Obra que se suponía perdida aunque identificada en el “Index” de João IV. Esta investigación contextualiza la composición dentro del repertorio latino y policoral del maestro; estudia la fuente que lo contiene para comprender el valor y el uso que pudo darse a la pieza en el lugar donde se conserva, el Archivo de Música de la Catedral de Valladolid, y, finalmente, propone una edición crítica de la misma.]

Aniversário do anúncio da passagem do cometa Halley após a previsão do seu reaparecimento por Halley

 

Sabia que o primeiro a confirmar o regresso do cometa Halley foi um agricultor?

29 de janeiro de 1759 - João Jorge Palitzch publicou em Leipzig uma memória em alemão de título “Prova da aparição real do cometa que se avistou em 1682, e que, segundo a teoria de Newton, foi calculada por Halley, e das aparições que se hão-de realizar no decorrer dos tempos, dada por uma amador de astronomia”. Foi ele, agricultor, o primeiro a confirmar o regresso do cometa Halley em 25 e 27 de dezembro de 1758, antes do Dr. Hoffman, amador de astronomia, em 28 de dezembro de 1758. (“Astrónomos por vocação: João Jorge Palitzch, agricultor saxónio”, no jornal “O Panorama”, 16 jul.1853, p. 225-226, il.).

Adriano Silva, Biblioteca Pública Municipal do Porto 

AQUI HÁ GATO DE SCHRÖDINGER


Meu artigo no último As Artes entre as Letras:

Neste ano de 2025 celebra-se o centenário de dois trabalhos revolucionários na área da física, que constituem a trave-mestre do nosso entendimento do Universo. Esses trabalhos estabeleceram formulação moderna da física quântica, a teoria que explica a estrutura e o funcionamento das partículas, dos núcleos atómicos, dos átomos, das moléculas e dos materiais. Por isso a Organização das Nações Unidas - ONU declarou no ano passado que 2025 seria o Ano Internacional da Ciência e Tecnologia Quânticas. Um dos autores foi o físico austríaco Erwin Schrödinger, que chegou à equação que tem hoje o seu nome, a qual, na sua primeira aplicação, permitiu conhecer as energias possíveis de um electrão no átomo de hidrogénio, o mais simples de todos. O outro autor foi o físico alemão Werner Heisenberg que, pouco antes, resolveu o mesmo problema usando um método alternativo. O próprio Schrödinger provou num trabalho publicado a meio de 1926 que os dois métodos eram perfeitamente equivalentes. Pode usar-se um ou outro não só para o átomo de hidrogénio, mas também para qualquer outro sistema quântico. E conhecemos a razão da equivalência dos métodos: os dois são duas faces da mesma moeda.

Schrödinger e Heisenberg foram dois dos maiores génios da física do século XX. As suas contribuições para essa disciplina não se ficaram por aí. O primeiro foi o autor de um famoso paradoxo, conhecido por «gato de Schrödinger», que expõe algumas dificuldades que a teoria quântica enfrenta quando confrontada com o senso comum. Por sua vez, Heisenberg foi o autor do «princípio da incerteza», segundo o qual não podemos saber ao mesmo tempo a posição e a velocidade de uma partícula, por exemplo um electrão: se soubermos onde está não podemos saber a rapidez do seu movimento e vice-versa. Os dois foram também filósofos no sentido em que ensaiaram compreensões do mundo que iam muito para além da sua ciência. Mas, unidos pela sua ciência, também tiveram separações. A principal foi política: enquanto Schrödinger decidiu abandonar o seu lugar de professor na Universidade de Berlim, com a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, e depois um outro lugar da Universidade de Graz, na Áustria, com a anexação da Áustria pelo seu grande vizinho, Heisenberg permaneceu na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, tendo colaborado com os nazis na tentativa, felizmente falhada, de construção de uma bomba nuclear. Schrôdinger esteve durante os anos da guerra e do imediato pós-guerra no Instituto de Estudos Avançados de Dublin, na Irlanda, tendo, em 1955, recebido um lugar honorário na Universidade de Viena, na sua terra natal. 

O conceito criado por Schrödinger que mais entrou na cultura popular é o gato que tem o seu nome. Ele surgiu no ano de 1935, em correspondência do austríaco com o seu colega e amigo Albert Einstein, o físico suíço nascido na Alemanha que se exilou nos Estados Unidos em 1933 com a ascensão política dos nazis), no contexto da discussão das dificuldades que Einstein colocou à teoria quântica na sua forma de 1925, a qual, como rapidamente se percebeu, envolvia a ideia de probabilidades. Einstein não gostava da ideia um mundo descrito apenas por probabilidades. Estas poderiam ser úteis – ele não negava que a teoria quântica estivesse certa. Mas, por detrás das probabilidades, deveria haver um mundo realista e determinista. «Deus não joga aos dados com o Universo», disse Einstein um dia. Levantou sucessivas objeções à visão probabilística, uma das quais o «paradoxo de Einstein-Podolsky-Rosen» (EPR), que hoje é aproveitado em aplicações conhecidas por «teletransporte quântico». Schrödinger criou o termo «entrelaçamento» (em inglês «entanglement», ele era fluente tanto em alemão como em inglês, pois tinha uma avó inglesa) para descrever o fenómeno do EPR. 

Neste fenómeno, que descreve a correlação entre partículas distantes que antes estiveram em contacto, tal como na teoria quântica em geral, só se pode conhecer o estado de uma partícula quando se efectua uma experiência de medida: mas, medido o estado de uma sabe-se imediatamente o estado da outra, por muito longe que esteja.  Antes de ser sujeita a uma experiência de medida a partícula está, pelo menos matematicamente, em dois ou mais estados ao mesmo tempo. Ora, para evidenciar o absurdo de tal situação, Schroedinger imaginou um gato fechado numa caixa, cuja vida ou morte resultaria da ocorrência de um processo quântico (um decaimento radioactivo, por exemplo). 

A questão que colocou é: segundo a teoria quântica o gato estaria morto e vivo dentro da caixa, um «zombie» portanto. E só poderíamos saber se estava vivo ou morto se abríssemos a caixa. Então, de certo modo, seria o processo de observação corresponsável pela criação de realidade. Não existiria uma realidade completamente independente do observador. O gato de Schrödinger nunca foi concretizado num laboratório, mas a ideia subjacente de se ter uma partícula simultaneamente num ou em vários estados está na base da computação quântica, uma nova forma de computação que promete sere mais rápida do que a computação convencional, aquela que hoje permite o funcionamento dos nossos computadores. Os electrões ou outras partículas usadas na computação quântica podem estar numa sobreposição de estados e podem estar entrelaçadas

Schrödinger é, portanto, um autor que, não satisfeito com as suas propostas científicas, não hesitou em pô-las em causa com o exame crítico das suas implicações lógicas. Também ele como Einstein duvidou da interpretação corrente da teoria quântica. Esta é uma das marcas maiores da ciência: nunca estar satisfeito com as conclusões a que se chega. A ciência, ao contrário do que muita gente supõe, não nos dá certeza. É, principalmente, o exercício permanente da dúvida.

2025: O ANO QUÂNTICO


Meu artigo no JL:

A Organização das Nações Unidas declarou que o ano 2025 seria o «Ano da Ciência e da Tecnologia Quânticas». O motivo é a passagem dos cem anos dos trabalhos do alemão Werner Heisenberg (1901-1976) e do austríaco Erwin Schrödinger (1887- 1961), entre outros, que deram à teoria quântica a sua forma actual. De facto, foi no ano de 1925 que esses dois génios da física, seguindo caminhos diferentes, chegaram à formulação de uma teoria que ainda hoje permanece tal como eles a moldaram. Heisenberg chegou à chamada «mecânica das matrizes» numa tentativa de descrever matematicamente os estados possíveis do electrão num átomo de hidrogénio, que tinham sido postulados em 1913 pelo dinamarquês Niels Bohr, o criador da «teoria quântica antiga». Por seu lado, e trabalhando independentemente, Schrödinger propôs a «mecânica ondulatória» para resolver o mesmo problema: escreveu uma equação que descreve como ondas os estados do electrão. Embora não tenha sido evidente logo no início, as duas formulações são perfeitamente equivalentes: eram apenas - e são - duas maneiras diferentes, mas igualmente válidas, de descrever os mesmos fenómenos.

É incrível que uma teoria velha de cem anos (aliás mais do que centenária, porque antes de Bohr tinha surgido, em 1900, a ideia revolucionária do alemão Max Planck de considerar que a luz existe em pacotes ou quanta de energia) continua hoje a dar aplicações após as muitas que já deu. Duas grandes concretizações da teoria quântica são os transístores e os lasers, que actualmente são imprescindíveis nos computadores e nas telecomunicações. Mas hoje trabalha-se no desenvolvimento da computação quântica e da criptografia quântica, que prometem revolucionar a computação e as comunicações. Não se trata de novos avanços teóricos, mas sim de novos desenvolvimentos práticos, alicerçados na teoria que se conhece há muito. A teoria quântica está bem e recomenda-se!

Não demorou muito a reconhecer, a meio dos anos de 1920, que tanto as matrizes de Heisenberg como a equação de onda de Schrödinger descreviam probabilidades. Einstein, que contribuiu em 1905 para a teoria quântica, com a sua explicação do efeito fotoeléctrico com base na natureza corpuscular da luz, foi das pessoas que mais duvidou das ideias de probabilidade que estão por detrás dos trabalhos de Heisenberg e Schrödinger.  Ele declarou que «Deus não joga aos dados», ao que Bohr respondeu: «Não compete a si, Einstein, dizer a Deus o que Ele deve fazer». Schrödinger partilhou em boa parte as dúvidas de Einstein: o famoso gato que tem o seu nome não passa de uma objecção à sua própria teoria. Tudo indica que o mundo das partículas atómicas é mesmo regido por probabilidades. E as aplicações que hoje se anunciam tiram partido desse estranho mundo das probabilidades. Como disse Fernando Pessoa sobre a Coca-cola, a propósito da teoria quântica poder-se-ia afirmar que «primeiro estranha-se, depois entranha-se.»

As descobertas de Heisenberg e Schröedinger foram momentos «eureka» experimentados por duas mentes isoladas em geografias muito distintas. Os diálogos entre eles e com outros físicos, à cabeça dos quais estava Bohr, mostravam que era possível uma comunhão de ideias. Heisenberg, com  apenas 23 anos (receberia o Nobel em 1932, com 31), mas já docente na Universidade de Göttingen, foi, em Junho de 1925, curar-se de uma arreliadora febre dos fenos numa pequena ilha do arquipélago alemão da Heligolândia, no mar do Norte. Foi neste cenário que ele, trabalhando no problema do átomo de hidrogénio, teve a sua epifania. O próprio autor conta a descoberta no seu livro Diálogos sobre Física Atómica (Verbo, 1976; o original alemão é de 1969), uma obra que me deliciou enquanto estudante universitário: 

«No primeiro momento senti-me profundamente emocionado. Tinha o pressentimento de que através da superfície dos fenómenos atómicos entrevia um fundo subjacente de beleza interior fascinante, e que quase desmaiava ao pensar que agora tinha de continuar em contacto com esta série de estruturas matemáticas que a Natureza abrira perante mim. Estava de tal modo impressionado que não conseguia pregar olho.» 

Eram três da manhã e o físico, iluminado como estava, saiu de casa para a escuridão da noite, subiu a um penhasco frente ao mar e esperou pelo nascer do sol acima do imenso oceano. O encontro com a teoria quântica parece quase místico…

Por sua vez, a epifania de Schrödinger teve lugar numa vivenda em Arosa, perto de Davos, nos Alpes suíços, em Dezembro de 1925, quando ele tinha 39 anos (receberia o prémio Nobel em 1933). Deixando a mulher em casa, o físico tinha ido passar férias de Natal com uma ex-namorada. O seu casamento era «aberto»: a esposa, com quem esteve casado até ao fim da vida, tinha na altura um amante matemático, colega do marido na Universidade de Zurique. Foi no silêncio da neve e provavelmente ajudado pelas chamas da paixão erótica que ele chegou à sua celebrada equação. Mas ainda hoje não se sabe quem foi a sua musa. Guardava cadernos com notas diarísticas, mas o caderno de 1925 desapareceu misteriosamente. É como que um mistério quântico que talvez nunca se venha a desvendar. Schrödinger haveria de ter outras amantes ao longo da vida, mas o pico da sua carreira foi atingido naquele Inverno envolto em sensualidade. 

Tanto Heisenberg como Schrödinger foram grandes humanistas, homens das «duas culturas». Já referi o livro de Heisenberg que o revela – ele discutia temas filosóficos com colegas em passeios na montanha e tocava piano em serões domésticos. Por sua vez, Schrödinger tinha igualmente preocupações filosóficas. Um dos seus livros, que também li enquanto estudante, foi Vida, Espírito e Matéria (Publicações Europa-América, 1963, há uma reedição em fac-simile recente). O primeiro texto desse volume, «Que é a vida?» (original de 1944), fala da vida, tendo sido premonitório da moderna genética, ao passo que o segundo, «Matéria e espírito» (original de 1956), fala da base física da consciência, do futuro do conhecimento e do diálogo entre ciência e religião.

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

BARRO OU ARGILA, O ARGILITO NO JARGÃO PETROGRÁFICO

Por A. Galopim de Carvalho

Diz o Velho Testamento que, depois de ter feito o mundo, Deus pegou no barro e fez o homem. E o homem, depois de ter lascado a pedra, pegou no barro e fez o primeiro vaso.

Depois do sílex, a principal matéria-prima mineral foi o barro, com o qual os nossos antepassados do Neolítico começaram a fazer recipientes cerâmicos diversos, de início, rudimentares, e, progressivamente, mais aperfeiçoados.

Argila, termo que herdámos do grego, argilós (a partir do étimo argos, que significa branco), através do latim, argila, é o barro, material de todos conhecido, na linguagem vulgar, com origem no latim hispânico, barrum.

Argilito é uma forma, proposta pelos sedimentólogos, tida por mais apropriada para, na petrografia sedimentar, dizer argila ou barro. É descrito como uma rocha sedimentar essencialmente composta por argilominerais associados a quartzo, feldspatos e micas naturalmente pulverizados, e, e, ainda, impregnações de óxidos e hidróxidos de ferro (hematite, goethite) e matéria orgânica, que lhe conferem colorações, respectivamente avermelhada, amarelo acastanhada e castanha-escura a negra.

Argilominerais são descritos quimicamente como silicatos hidratados de alumínio e/ou magnésio, associados ou não a outros elementos como, por exemplo, cálcio e sódio. São filossilicatos, (por aposição do elemento grego phylon, que significa folha), isto é, silicatos em cuja estrutura interna os átomos estão dispostos em folhas paralelas, sob a forma de cristais ou agregados cristalinos, de pequeníssimas dimensões (nanométricas, no geral, inferiores a 0,004 mm), só visíveis ao microscópio electrónico. 

Entre as espécies ou grupos de espécies mais comuns de argilominerais, destacam-se: caulinite, ilite, esmectites, palygorskite e clorite, apenas cinco entre os muitos conhecidos. Face ao que se conhece sobre a sua génese nos diferentes sistemas bioclimáticos, eles permitem, como nenhum outro componente mineral dos sedimentos, inferir reconstituições paleoambientais do maior interesse em geologia.

Enquanto o termo barro se manteve na linguagem vulgar, o termo argila guindou-se ao estatuto de vocábulo do léxico científico.

Toda a argila é branca, quando liberta de impurezas, como os ditos óxidos e outras substâncias que lhe confiram colorações.

Os romanos dispunham ainda do termo creta para referir a mesma substância e que passou ao português antigo sob a forma de greda, termo hoje muito menos usado. No conceito que todos temos de rocha, como um material coeso rígido e duro, como qualquer pedra, o argilito não é uma rocha, mas é-o no contexto da sistemática petrográfica, onde ocupa lugar bem definido no conjunto das rochas sedimentares. Rocha ou não, como se queira entender, é, sem sombra de dúvida, uma fase ou etapa, dita exógena (superficial), do grande ciclo das rochas.

O argilito corresponde ao mudstone (de mud, lama e stone, pedra) dos geólogos de língua inglesa e ao lamito dos brasileiros, um vocábulo que ainda não entrou no nosso léxico da especialidade.

Na classificação do alquimista persa Avicena (980-1037), a argila foi considerada na classe das “terras”, ao lado de outras (“pedras”, “sais”, “metais”, “minerais fusíveis”). Este critério manteve-se até começos do século XIX, estando bem exemplificado na sistemática do químico e mineralogista sueco, Torbern Bergman (1749-1817). É esta a razão que explica que os ingleses designem a argila por earth (terra), os franceses por terre e que nós ainda usemos o termo terra com o mesmo significado em expressões como terra rossa terracota, e terra de pisoeiro ou terra fulónica (por tradução do inglês fuller’s earth). 

Acrescente-se que pisoeiro era o artífice que pisoava (lavava e desengordurava com um tipo especial de argila, dita esméctica) a lã, usando o pisão. Diga-se que terracota é uma maneira de dizer cerâmica ou argila cozida no forno, sem ser vidrada. E que terra rossa é uma expressão italiana internacionalizada, alusiva a um material de cor vermelha, composto essencialmente por argila e óxido de ferro, resultante do processo de dissolução das rochas carbonatadas pelas águas pluviais carregadas de dióxido de carbono.

A argila é componente essencial ou subordinado de algumas rochas sedimentares (arenitos de cimento argiloso, calcários argilosos e margas), de diversos xistos argilosos e da ardósia (já no domínio das rochas metamórficas) e está quase sempre presente nos solos e em muitas rochas alteradas (saibros). Quando dizemos que uma rocha ou um solo contém argila, queremos dizer que, na sua composição, estão geralmente presentes um, dois ou três dos citados argilominerais que, na grande maioria, resultam da alteração dos feldspatos das rochas, como granitos, gnaisses, sienitos, dioritos, gabros, basaltos e muitas outras.

Na maior parte dos casos, os argilitos entendidos como rochas sedimentares, resultam, via de regra, de uma sedimentação detrítica de argilominerais e outros (com destaque para quartzo, feldspato e micas) finamente pulverizados (à atrás dita dimensão nanométrica, no geral, inferiores a 0,004 mm), posteriormente transportados até ao local de sedimentação. No âmbito petrográfico são considerados argilitos terrígenos, detríticos ou herdados que, podem sofrer transformações, em função dos ambientes geológicos a que forem submetidos.

Fala-se de argilas de alteração meteórica, relativamente às que formam a capa de meteorização superficial, exercida sobre rochas ricas em feldspatos (gabro, basalto, sienito e outras) e também sobre rochas argilosas como xistos e ardósia. São consideradas argilas de alteração deutérica, (do grego deuterós, ulterior, secundário), as geradas no subsolo, por efeito de águas muito quentes (hidrotermais), ascendentes, residuais do magmatismo, bem como dos vapores e dos voláteis associados, e de águas meteóricas penetradas na crosta e, aí, aquecidas por efeito do grau geotérmico. 

O qualificativo deutérico, sinónimo de hipogénico (origem profunda, do grego hipo- inferior, no sentido de por debaixo, e genesis, origem), alude à posterioridade dos minerais resultantes desse tipo de alteração, secundários relativamente aos minerais da rocha magmática, entendidos como primários. Existem outras acumulações de argilominerais, cuja génese tem lugar no próprio local, por síntese, a partir de substâncias em solução nas águas. São as argilas de neoformação, com muito pouca expressão geológica, mas com grande significado nos solos actuais.

Face ao que se conhece sobre a génese dos argilominerais nos diferentes sistemas bioclimáticos, eles permitem, como nenhum outro componente mineral dos sedimentos e como se disse atrás, inferir reconstituições paleoambientais do maior interesse em geologia.

domingo, 26 de janeiro de 2025

Como se divertiam! Um conto de Isaac Asimov

     Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião  
 
Tradução do conto The fun they had, de Isaac Asimov, publicado em 1951 e a que fizemos alusão aqui.

Nessa noite, Margie fez uma anotação no seu diário. Na página de 17 de Maio de 2157, escreveu: “Hoje o Tommy encontrou um livro. Um livro de verdade!”
Era um livro muito antigo. O avô de Margie contou-lhe uma vez que, quando era pequeno, o seu avô lhe tinha contado que tinha havido um tempo em que as histórias eram sempre impressas em papel. Viravam-se as páginas, que eram amarelas e se enrugavam, e era muito divertido ver que as palavras se mantinham paradas em vez de se deslocarem no ecrã. E, quando se voltava à página anterior, lá estavam as mesmas palavras que se tinham lido antes.
— Caramba, – disse Tommy - que desperdício! Suponho que quando acabares o livro, o deitas fora. O nosso ecrã de televisão já mostrou um milhão de livros e dá para muitos mais. Eu nunca o deitaria fora.
— O mesmo acontece com o livro, - respondeu Margie.
Ela tinha onze anos e não tinha visto tantos telelivros como o Tommy. Ele tinha treze anos.
— Onde é que o encontraste?
— Em minha casa - Tommy apontou sem olhar, porque estava ocupado a ler - no sótão.
— De que trata?
— Da escola.
— Da escola? O que é que se pode escrever sobre a escola? Eu odeio a escola.
Margie sempre detestou a escola, mas agora mais do que nunca. O professor automático dava-lhe testes de geografia, uns atrás dos outros, e os resultados eram cada vez piores. A mãe de Margie tinha abanado tristemente a cabeça e chamado o inspetor do condado.
Era um homenzinho rechonchudo, de rosto rubicundo, que trazia uma caixa de ferramentas com puxadores e fios. Sorriu a Margie e deu-lhe uma maçã, depois desmontou o professor.
Margie esperava que ele não conseguisse voltar a montá-lo, mas ele conseguiu e, passada uma hora, lá estava ele outra vez, grande, negro e feio, com um ecrã enorme onde se mostravam as lições e apareciam as perguntas. Mas isso não era o pior. O que Margie mais detestava era a ranhura através da qual tinha de inserir os trabalhos de casa e os testes.
Tinha sempre que os escrever num código que foi obrigada a aprender quando tinha seis anos, e o professor automático calculava a classificação num instante.
O inspetor sorriu ao terminar a tarefa e deu uma palmadinha na cabeça de Margie.
— A culpa não é da menina, Sra. Jones. - disse ele à mãe - Acho que a secção de Geografia estava demasiado rápida. Às vezes acontece. Sintonizei-a para um nível adequado a uma criança de dez anos. Mas o padrão geral de progresso é muito satisfatório. – e voltou a acariciar a cabeça da Margie.
Margie ficou desiludida. Tivera esperança que o professor fosse afastado. Uma vez, levaram o professor de Tommy durante um mês inteiro porque a secção de História tinha sido completamente apagada.
Então, ela disse a Tommy:
— Quem é que quer escrever sobre a escola?
Tommy olhou para ela com ar de superioridade.
— Porque não é uma escola como a nossa, tonta. É uma escola como a de há centenas de anos – e acrescentou com altivez, pronunciando a palavra muito lentamente – séculos...
Margie sentiu-se magoada.
— Bem, não sei que escola é que eles tinham há tanto tempo – leu o livro por cima do ombro de Tommy e acrescentou: - de qualquer modo, tinham um professor.
— Claro que tinham um professor, mas não era um professor normal. Era um homem.
— Um homem? Como é que um homem pode ser professor?
— Ele explicava as coisas aos miúdos, dava-lhes trabalhos de casa e fazia-lhes perguntas.
— Um homem não é suficientemente inteligente.
— Claro que é. O meu pai sabe tanto como o meu professor.
— Não é possível. Um homem não pode saber tanto como um professor.
— Aposto contigo que sabe quase o mesmo.
Margie não estava disposta a discutir o assunto.
— Eu não gostaria que um homem estranho viesse a casa ensinar-me.
Tommy soltou uma gargalhada.
— És tão ignorante, Margie. Os professores não viviam na casa. Tinham um edifício especial e todos os miúdos iam para lá.
— E aprendiam todos a mesma coisa?
— Claro que sim, desde que tivessem a mesma idade.
— Mas a minha mãe diz que um professor tem de estar sintonizado para se adaptar à idade de cada criança e que cada criança deve ser ensinada de forma diferente.
— Bem, antes não era assim. Se não gostas, não tens de ler o livro.
— Eu não disse que não gostava - apressou-se a dizer Margie.
Na verdade, ela queria ler tudo sobre aquelas escolas estranhas. Ainda não tinham terminado quando a mãe de Margie a chamou:
— Margie! Escola!
Margie olhou para cima.
— Ainda não, mãe.
— Agora! – gritou a senhora Jones - E também deve ser a hora de Tommy.
— Posso continuar a ler o livro contigo depois da escola? - perguntou Margie a Tommy.
— Talvez - disse ele de modo petulante, e foi-se embora a assobiar, com o livro velho e poeirento debaixo do braço.
Margie entrou na aula. Era ao lado do quarto e o professor automático já estava ligado e à espera. Ligava-se sempre à mesma hora todos os dias, excepto aos sábados e domingos, porque a mãe dizia que as raparigas aprendiam melhor se estudassem com horário regular. O ecrã estava iluminado.
— A lição de aritmética de hoje - disse o professor- é sobre a adição de fracções. Por favor, insere o trabalho de casa de ontem na ranhura adequada.
Margie obedeceu, com um suspiro. Estava a pensar nas antigas escolas, quando o avô do avô era pequeno. Todas as crianças da vizinhança iam para lá, riam e gritavam no recreio, sentavam-se juntas na sala de aula, iam juntas para casa ao fim do dia. Aprendiam as mesmas coisas e, por isso, podiam ajudar-se uns aos outros a fazer os trabalhos de casa e a falar sobre eles. E os professores eram pessoas... O ecrã do professor automático piscou.
— Quando adicionamos as fracções ½ e ¼...
Margie pensava que as crianças deviam adorar a escola dos tempos antigos. Pensava como elas se deviam divertir.

FIM

sábado, 25 de janeiro de 2025

The fun they had

 
O leitor M. Jorge sugeriu-nos a leitura do conto The fun they had, de Isaac Asimov, publicado em 1951. Procurei e encontrei uma versão em banda desenhada ainda recente. Agradeço-lhe porque não conhecia o texto, que me leva a confirmar a ideia de que Asimov percebeu bem, ao seu tempo, a progressão dos discursos anti-escola e anti-professor, mas também, anti-livro e anti-conhecimento. Num outro conto, As fitas da educação, isto está bem claro.

Ver o texto aqui.

O QUE IMPORTA SABER SOBRE O MAGMA (1)

Por A. Galopim de Carvalho

Comecemos por dizer que magma é um material da crosta ou do manto terrestres, na grande maioria de composição silicatada, total ou parcialmente fundido, provido de mobilidade que, ao solidificar, gera as chamadas rochas magmáticas ou ígneas. O termo radica no grego, "magma", que significa matéria rochosa. Como ingredientes fundamentais do magma figuram quase sempre pouco mais de uma dezena de elementos químicos, os mais abundantes na crosta terrestre e, por isso, ditos principais ou maiores, cujas percentagens em peso são:

Oxigénio (O) - 46,6
Silício (Si) - 27,7
Alumínio (Al) - 8,1
Ferro (Fe) - 5,0
Cálcio (Ca) - 3,6
Sódio (Na) - 2,8
Potássio (K) - 2,7
Magnésio (Mg) - 2,1 

São estes, pois, os principais constituintes dos minerais das rochas magmáticas, entre os quais os silicatos que, por si só, representam cerca de 99% da crosta terrestre. 

A estes elementos há ainda que juntar manganês /Mn), fósforo (P), titânio (Ti), carbono (C), enxofre (S) e hidrogénio (H). praticamente sempre presentes, embora em menores percentagens (em média).O carbono, quando ligado quimicamente ao oxigénio, forma o conhecidíssimo dióxido de carbono que, com outros gases de menor representatividade igualmente libertados do magma, se evola durante as erupções vulcânicas.

O hidrogénio quando combinado com o oxigénio, gera a água. Nos resultados das análises químicas das rochas é normal haver referência a dois tipos de água. Um deles conhecido por «água mais» (H2O+) ou água de constituição, corresponde à água que faz parte da composição química de alguns dos seus minerais. O outro, designado por «água menos» (H2O-), corresponde à água de impregnação ou higroscópica (humidade), que se elimina aquecendo a rocha entre 105 e 110° C.

Parte da água inicialmente contida no magma perde-se, quer em profundidade, no interior da crosta, indo alimentar outras fases da evolução petrogenética, quer à superfície, no vulcanismo. É esta água, no estado de vapor, que também se evola nas erupções vulcânicas.

Para além dos já referidos como elementos principais ou maiores (do inglês “major elements”), aqueles cujas percentagens, em peso, nas rochas é superior a 1%, há ainda a considerar os elementos menores (do inglês, “minor elements”) cuja presença nas rochas se situa, em termos percentuais, abaixo daquele valor. Nestes há que distinguir elementos secundários (entre 1% e 0,1%) e elementos vestigiais ou elementos-traço (do inglês, “trace-elements”) que, como o nome indica, estão representados em quantidades ínfimas. A sua presença na composição dos minerais e das rochas é hoje fácil e rotineiramente pesquisada nos estudos petrológicos e geoquímicos. Consoante o rigor exigido pelas análises ou possibilitado pelos equipamentos disponíveis, a sua quantificação é expressa em ppm (partes por milhão) ou em cifras ainda menores, em ppb (partes por milhar de milhões, ppb, porque os autores em língua inglesa, chamam bilião ao milhar de milhões).

O termo oligoelemento (do grego, “oligós”, ínfimo) é ambíguo, pois tem sido usado quer como sinónimo de elemento menor quer como de elemento vestigial. 

Uma outra classificação dos elementos com interesse geoquímico considera elementos litófilos, os habituais na formação da maioria das rochas (silício, alumínio, cálcio, sódio, potássio), elementos voláteis onde se incluem todos os que se podem vaporizar a partir dos fundidos de silicatos, a temperaturas inferiores a 1400°C, em ambiente moderadamente redutor. O outro grupo compreende os elementos refractários que vaporizam acima do mesmo patamar e nos quais se separam elementos oxífilos (magnésio, crómio, titânio) e siderófilos (níquel, cobalto), consoante acompanham o oxigénio ou o ferro (em condições redutoras).

"Só a tecnologia que tenha um papel claro no apoio à aprendizagem deve ser permitida na escola", afirma a UNESCO

Vários jornais reproduzem a notícia veiculada pela Agência Lusa: a UNESCO acaba de publicar uma actualização do seu relatório de monitorização da educação saído em 2023 (Technology in education – A tool on whose terms? Ver também aqui e aqui). Nesta "actualização especial" com o título To ban or not to ban? Monitoring countries’ regulations on smartphone use in school (ver aqui) destaca o seguinte:

Aumenta o número de países que proibiram o uso de telemóveis nas escolas desde 2023. São agora, no início de 2025, 79. Há países que não adoptaram essa proibição, mas alguns dos seus estados ou regiões e, também, escolas fizeram-no;

A monitorização que está a ser feita da proibição (em Espanha, no Reino Unido e na Bélgica) indica vantagens da mesma nos aspectos que têm sido reiteradamente indicados como críticos: melhoria da concentração e dos resultados académicos em especial dos alunos com mais dificuldades de aprendizagem; recuperação da autoestima sobretudo em raparigas; redução de situações de bullying,

A UNESCO alerta para o facto de o uso das tecnologias digitais, com destaque para os telemóveis com acesso a redes sociais, poder ser "um bloqueio para a educação", Por isso, "só a tecnologia que tenha um papel claro no apoio à aprendizagem deve ser permitida na escola.

Esta organização não recomenda um proibicionismo cego dessas tecnologia, pelo contrário, destaca a importância de os países, os estados, as regiões e as escolas atenderem a necessidades particulares dos alunos, bem como de lhes ser proporcionada aprendizagem sobre os riscos que lhes estão associados e as possibilidades de uso que devem ser aproveitadas.

Vale muito a pena ler a dita "actualização" e ver o vídeo que a acompanha:

domingo, 19 de janeiro de 2025

PELITOS

 Por A. Galopim de Carvalho

Já o disse e não é demais repetir que, por razões dinâmicas, decorrentes dos diâmetros das respectivas partículas, o silte e a argila reagem de modo semelhante aos agentes de transporte (em suspensão na água ou no ar) e têm por destino os mesmos ambientes de sedimentação: os mais distantes das fontes, os mais profundos, os mais tranquilos ou menos energéticos. Neste termos, os SILTITOS são quase sempre argilosos e os ARFGILITOS, quase sempre siltosos. Dado o teor de alumina próprio dos minerais argilosos (silicatos hidratados de alumínio), alguns autores utilizam a expressão rocha aluminosa em vez de rocha argilosa. Para estes autores, os pelitos são, via de regra, rochas aluminosas.

Em suspensão nas águas, as argilas acabam por decantar ou sedimentar por imobilização destas, fazendo-o, muitas vezes, depois de flocularem, isto é, de se aglutinarem entre si, constituindo agregados de partículas, mais rapidamente atraídos para o fundo.

Muita da poeira atmosférica é constituída por finíssimas partículas argilosas e siliciclásticas, de dimensão equivalente, levantadas do chão pelo vento, em tempo seco. É frequente, por exemplo, em Lisboa, no Verão e na sequência de “borrifos” de chuva, com vento suão, essa precipitação estival ser algo lamacenta, uma vez que incorpora as referidas poeiras vindas do Alentejo e, até, do norte de África. Nestas ocasiões, o fenómeno é particularmente bem visível nos pingos de lama sobre a pintura brilhante dos automóveis estacionados na cidade e dá-nos a confirmação do transporte destes materiais em suspensão na atmosfera.

A maior parte das rochas habitualmente adjectivadas de argilosas, como são os XISTOS ARGILOSOS, só o são no aspecto. Na realidade, são formadas por uma mistura de partículas realmente argilosas (argilominerais) com outras de silte, no qual predomina o quartzo. Os xistos argilosos representam cerca de 80% das rochas sedimentares.

São muitas e diversas as ocorrências de rochas silto-argilosas nas séries continentais siliciclásticas mesozóicas e cenozóicas, onde constituem, geralmente, intercalações lenticulares no seio de arenitos, uma associação a que já se fez a devida referência. Muitas das “argilas” citadas na nossa bibliografia geológica referente a estas unidades estratigráficas são, de facto, misturas silto-argilosas. Correspondem, no conjunto, aos "mudstones" (1) (de "mud", lama) dos geólogos de língua inglesa, termo que os brasileiros traduziram como "lamito", um nome que ainda não entrou no nosso vocabulário da especialidade.

Quando os pioneiros alemães faziam uso do termo pelito (do grego "pelos", lama) e os americanos introduziam o termo LUTITO (do latim "lutu", lama, vasa) para designar o mesmo tipo de sedimentos silto-argilosos, estava-se ainda longe de separar as duas classes dimensionais (siltes e argilas) neles reunidas e só mais tarde definidas na escala, internacionalmente aceite, de Wentworth (1922). Com o mesmo significado granulométrico de pelito, o lutito é, para alguns autores, restrito aos materiais não coesos (móveis), reservando-se o primeiro destes dois nomes para as correspondentes rochas consolidadas.

Em 1834, o inglês Charles Lyell introduziu na literatura geológica o termo "loess", por adaptação do termo vulgar germânico "Löss" (do alemão "lose", friável, não coeso). O loess foi então definido, entre os geólogos, como um depósito sedimentar detrítico, não estratificado, mais fino do que as areias finas, friável, não coeso, de origem eólica em ambiente periglaciário, contendo uma fracção terrígena (essencialmente silte+argila) e, por vezes, uma outra, calcária. Por dissolução do carbonato de cálcio, nos níveis mais superficiais, o loess dá origem ao "limon des plateaux" (dos franceses) ou "Loehm" dos alemães, constituindo boas terras aráveis e, por vezes, usado como barro no fabrico de tijolos. O carbonato dissolvido precipita nos níveis mais baixos, formando concreções, conhecidas entre os geólogos por “bonecas do loess” ("Löss Kindchen", "loess dolls" ou "poupées du loess"). Na classificação de Lasaulx, o loess figura entre os então chamados “sedimentos puros”, a par do cascalho e da areia. Com o passar do tempo, alguns autores têm usado o termo loess em alusão ao mesmo tipo de sedimentos detríticos muito finos, independentemente do modo e do ambiente sedimentar em que teve origem.

Quando impregnados de água e, por vezes, misturados com matéria orgânica, como acontece nos solos, os sedimentos silto-argilosos constituem o que vulgarmente de designa por lama (do latim, com a mesma grafia, que significa atoleiro, charco), que corresponde à "boue" dos autores franceses, ao "mud" e ao "loam" dos ingleses, ao "Loehm" dos alemães e ao "fango" (2) dos nossos irmãos ibéricos. Quando incoesos, submersos e embebidos de água, os pelitos ou lutitos podem ser referidos por LODO (do latim "lutu", lama) e também por VASA, nome que importámos do holandês wase (lama) através do francês vase.
 
Geralmente silto-argilosas, as VARVAS (3) foram inicialmente definidas como depósitos lacustres subactuais finamente laminados (à escala milimétrica ou inferior) com alternância de finos leitos argilosos (escuros devido à presença de matéria orgânica) e siltíticos (claros), indicadores da variação dos processos físicos, químicos e biológicos decorrentes da alternância gelo-degelo nos glaciares a montante. Cada par de lâminas (clara e escura) equivale, pois, a um ano e, assim, as varvas têm sido utilizadas em geocronologia absoluta (4), em depósitos lacustres do Quaternário. Este termo está na base de um outro – VARVITO – aplicado a depósitos igualmente laminados e consolidados, semelhantes à varvas no aspecto rítmico, mas mais antigos e com outro tipo de outras origens.

A rematar esta referência aos pelitos ou lutitos, resta aludir a alguns nomes de uso corrente. BARRO (do latim hispânico, "barrum") designa um material argiloso impuro, independentemente da sua origem, que tanto pode ser sedimentar (na sequência da deposição, no essencial, de partículas argilosas), como residual (na sequência da alteração de uma rocha preexistente rica em aluminossilicatos, como são os feldspatos).

Entendem-se por impurezas do barro os detritos líticos e minerais (no geral, quartzo, feldspato, micas, etc.) bem como as impregnações de óxidos e hidróxidos de ferro responsáveis pelas habituais colorações avermelhadas (hematite) e amarelo-acastanhadas (limonite).

Outros nomes, muito menos frequentes, para designar o barro são terra de GREDA (5), (termo caído em desuso) e MATACA e TIJUCA (no Brasil). Nas classificações anteriores ao séc. XIX, o barro figurava na classe das “terras”, razão pela qual os franceses ainda usam o termo "terre", os ingleses "earth" e nós ainda utilizamos expressões como terracota, terra sigilata, terra de pisoeiro, terra rossa e terra de greda.

Como produtos de alteração, no âmbito das chamadas rochas residuais, recordam-se os barros vermelhos de Ral (Ferreira do Zêzere), de Santa Catarina (Tomar), da Menoita (Guarda) e no Alentejo, por alteração quer dos xistos, quer de plutonitos básicos (gabros), quer do grande filão dolerítico que percorre esta província de NE para SW. Com conhecido interesse na agricultura cerealífera, também os chamados “barros de Beja”, negros, resultaram da alteração dos gabrodioritos locais. Igualmente residuais são os caulinos associados aos granitos e gnaisses da faixa litoral a norte de Aveiro (já atrás referidos, a propósito dos saibros) e, ainda, as esmectites resultantes da arenização dos gabrodioritos de Benavila (Avis).

(continua)
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(1) - "Mudstone" - Termo introduzido na terminologia geológica, em 1839, pelo geólogo inglês R. Murchinson, para referir uma rocha xistenta, muito friável, do Silúrico do País de Gales.
(2) - "Fango" - Relacionada com este termo espanhol, dispomos, em português, da palavra fangoterapia, o tratamento clínico com lamas.
(3) - Varva - Termo introduzido por G. Ger, em 1912, a partir do sueco "varv".
(4) - Geocronologia absoluta – Permite conhecer a idade em anos.
(5) - Greda - Do latim "creta", argila. O mesmo étimo está na origem do termo cré, usado para designar o calcário friável que deu o nome ao Cretácico e a Creta, a ilha mediterrânea.

sábado, 18 de janeiro de 2025

SE NÃO HÁ PROFESSORES, ENTÃO, ACABE-SE COM OS PROFESSORES!

Com frequência, tomo conhecimento de iniciativas, de projectos, de empreendimentos declarados disruptivos e inovadores destinados a apoiar, a dar suporte ao ensino. Como a escassez de professores diplomados é crescente e não se encontra facilmente quem, não tendo diploma, queira apresentar-se como professor, a oportunidade de negócio é grande, há que aproveitá-la!

Se as novas tecnologias digitais já proporcionavam plataformas, documentos e equipamentos para ajudar os professores ou para os substituírem, com a "democratização" da inteligência artificial essa oportunidade viu-se ampliada e diversificada. Não faltam propostas de empresas, fundações, ONG, universidades que mais parecem propaganda a milagres: se isto for acolhido, então... resolve-se isto e aquilo. Nenhum problema, nenhum constrangimento.

Imagem recolhida aqui.
Eis um exemplo com o qual me cruzei pela segunda vez: trata-se de uma empresa com o curioso nome de 21st Century Digital Teaching, tem sede no Reino Unido e quer expandir-se pela Europa (ver aqui). Não se pode dizer que lhe falte ambição: propõe-se resolver a crise da falta de professores. 

Como fará isso? Reduzindo substancialmente o número de professores necessários ao funcionamento do sistema. Parece um contrassenso, não é? Para se resolver a falta de professores, diminui-se o número de professores.

Em concreto: amplia-se o espectro digital inteligente com avatares, com uma app de ensino, e com uma plataforma. Tudo isto deu muito trabalho a conseguir. Imagino que sim.

Mas, dizem os responsáveis pela empresa, assim se consegue uma aprendizagem mais individualizada, maior envolvimento dos alunos, maior foco da sua parte (em tempos mais reduzidos dado que a sua atenção não vai além de cinco minutos), mais possibilidade de ser acompanhado e de ter feedback personalizado. Também se apontam vantagens para os (poucos) professores que operam no sistema: aligeira-lhes a tarefa de avaliar e dar feedback, permite-lhes ter uma ideia precisa da evolução dos alunos para os ajudar a conseguir melhor desempenho, torna as suas aulas mais funcionais.

E, claro, os sistemas poupam dinheiro, é o velho princípio: "fazer mais com menos".
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Nota
: Uma entrevista aos empresários em causa pode ser encontra aqui e uma tradução da notícia pode ser lida aqui

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

O PREÇO DA BORREGA

Por A. Galopim de Carvalho 
 
Dito assim, cruamente, o “preço da borrega” era o custo da virgindade de uma adolescente, pago geralmente à mãe da jovem, pelo dono da herdade, pelos favores sexuais que ele esperava que ela lhe prestasse.
 
Contava a minha mãe que um dado lavrador, bem conhecido na cidade, senhor de muitas terras, viúvo, mas ainda com forças para se mexer, combinara com a mãe de uma jovem trabalhadora, levá-la para casa a pretexto de ela ali trabalhar como criada de servir, como então se dizia. A velha criada, ainda do tempo da falecida, dizia ele, já só tinha forças para tratar da cozinha. A mãe da rapariga não desconhecia os propósitos do lavrador, mas a tradicional pobreza que então ainda se vivia nos campos do Alentejo era muita e jogava a favor do patrão. Uma dúzia de conto de reis foi quanto a mãe da rapariga terá recebido pela “honra” da filha. 

Meses a fio sem trabalho, vivendo do que a terra lhes oferecia e da generosidade da venda, na aldeia, onde os fiados não paravam de crescer (só amortizados depois da ceifa, da apanha da azeitona ou da tiragem da cortiça, quando tal tinha lugar), menos uma boca a comer em casa e contar, todos os meses, com o ordenado daquela filha, já era uma ajuda a não desperdiçar. 
 
Com a jovem em casa, o lavrador tinha artes de a seduzir e, num caso ou noutro, em que a jovem engravidasse, havia de encontrar, entre os seus trabalhadores, um homem que a quisesse por mulher. Por essa aceitação o “felizardo” recebia, do patrão, uma casa para morar, entre as muitas que havia no monte, mais um pedaço de terra para cultivar, uma parelha de mulas, uns dinheiritos para começar a vida e a promessa de apadrinhar a criança. Afilhados dos grandes senhores da terra, nesses anos, dizia a minha mãe, tinham atrás de si uma história deste tipo, vinda de tempos antigos e continuada por alguns terratenentes sobre as suas criadas, uma realidade que se reporta até aos primeiros anos do século que passou. 
 
Ficcionei este drama em O Preço da Borrega, na antiga Editorial Notícias, em 1995, com duas reedições na Âncora Editora. Agostinho da Silva, meu amigo, nos últimos anos da sua vida, e Vergílio Ferreira, que conheci enquanto professor no Liceu de Évora, encorajaram-me a publicá-lo. Natália Correia leu-o, gostou, classificou-o de etnografia ficcional e estava a tentar que alguém dos seus conhecimentos o aceitasse para passar ao cinema, quando a morte a surpreendeu. Foi pena, porque o tema merecia a divulgação que o cinema dá. Enviei um exemplar ao António-Pedro Vasconcelos, que me escreveu a agradecer, sem, contudo, me dizer se o leu ou não.

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

(MAIS) UM PAÍS QUE PROÍBE O USO DE TELEMÓVEIS NA ESCOLA

Na sequência e em coerência com o que havia sido anunciado, o Presidente do Brasil faz vingar a lei que proíbe o uso de telemóveis em todas as escolas do país (ver aqui a notícia do Público). Terá dito: "a gente precisa voltar a permitir que humanismo não seja trocado por algoritmos". 

Os algoritmos são produções humanas e podem ser usadas para o melhor que encontramos no humanismo. Ou para o contrário, como toda a técnica. Mas, sim, percebo o que Lula da Silva quis dizer: na escola, precisamos de recuperar (ou de conseguir) uma relação profunda com o conhecimento a partir do contacto professor-alunos e em suportes que dêem boas provas em termos de aprendizagem.

domingo, 12 de janeiro de 2025

RENASCER

Por A. Galopim de Carvalho
 
No léxico geológico o vocábulo “palingénese”, radicado nos étimos gregos “palim” que quer dizer de novo, e “génesis”, que significa acto de gerar, veicula a ideia de renascer. O termo foi usado por alguns autores para referir a fase do ciclo petrogenético que conduz à geração do granito por fusão, no interior profundo de uma montanha em formação, das rochas nela envolvidas, rochas que, por sua vez, resultaram da acumulação dos sedimentos derivados da erosão de terrenos em que tinham lugar granitos de uma geração anterior.
 
Esta ideia suscitou-me a reflexão que aqui vos deixo, com votos de um bom Domingo, mesmo com chuva, que tanta falta nos faz.
 
Renascer é uma constante nas histórias do Universo, da Terra e também dos homens.

Renasce, todos os anos, plena de luz, a Primavera, pondo fim ao frio e sempre triste Inverno que, também ele, renascerá meses mais tarde.

Todos os dias, o Sol morre no longínquo Poente, para renascer na manhã seguinte, do outro lado do mundo, numa alusão da morte e do renascer da natureza.

Fénix, a ave da mitologia egípcia, ateava o fogo ao seu ninho e deixava-se consumir pelas chamas, renascendo depois, dos seus restos calcinados.

Na expressão figurativa do cristianismo, o renascer da Fénix é o símbolo da ressurreição de Cristo.

Há 14 anos, “Fénix 2” foi o nome escolhido para designar a cápsula que, numa operação prodígio da engenharia mineira, fez renascer, um a um, os 33 mineiros da mina de São José, no Chile, soterrados a cerca de 700 metros de profundidade.

No final da Idade Média, na transição para a Idade Moderna, teve início, nas cidades de Florença e Siena, um período marcado por transformações em muitas áreas da vida humana, em particular nas artes, na filosofia e nas ciências, com evidentes reflexos na sociedade, na economia, na política e na religião. Foi a ruptura com as estruturas antigas em transição gradual do feudalismo para o ideal humanista e naturalista. Deu-se-lhe o nome de Renascimento, dado que fez renascer as referências culturais da Antiguidade Clássica.

Renascem as cidades depois de destruídas por catástrofes naturais ou pelas guerras. Renascem, para a vida, as mulheres e os homens que se libertam dos agentes opressores, sejam eles outros homens ou mulheres ou as tristemente célebres substâncias psicoactivas.

Renascem os cravos vermelhos, todos os anos, em Abril e, logo a seguir, nos campos, renascem as espigas de trigo, as papoilas e, à noite, o tracejar dos pontos de luz dos pirilampos, ao mesmo tempo que, nas avenidas, praças e jardins, o chão se cobre de um tapete de pétalas lilases de jacarandás.

sábado, 11 de janeiro de 2025

Uma polémica cultural à portuguesa

Depois de uma polémica cultural à portuguesa, pouco renhida e logo esquecida, ou, pelo menos, cuidadosamente omitida no momento de pompa e circunstância, lá foram, na passada semana, os restos mortais de Eça de Queiroz parar a Santa Engrácia. 

Os amáveis votos que se dirigem a quem falece - "Descanse em Paz" - não se aplicam, por certo, ao escritor: rumou de Paris para o cemitério do Alto de São João, depois para o cemitério de Santa Cruz do Douro e, agora, voltou a Lisboa.
 
Não acompanhei a cerimónia, não me interessou. Passei os olhos por duas ou três fotografias: um  cenário dejà vu, triste, apesar de tudo estar no seu devido lugar e muito bem apresentado. Diferente seria se dedicássemos igual esforço a pensar em como levar a ler e a amar, na escola pública, as páginas que Eça escreveu.
 
Faço minhas as palavras de Eugénio Lisboa, que bem tentou que Eça ficasse, para a eternidade, onde estava: "eu acho", escreveu "que o único Panteão adequado a um grande e vital escritor é a permanência dele no coração dos seus múltiplos leitores" (aqui). E os leitores fazem-se (diria eu, sobretudo,) na escola.
 
Aqui ficam alguns dos textos que Eugénio Lisboa publicou sobre essa polémica que, a bem dizer, parece nunca ter existido:
- TRASLADAÇÃO DOS RESTOS MORTAIS DE EÇA DE QUEIROZ PARA O PANTEÃO (aqui)
- POR FAVOR, NÃO PANTEONEM O EÇA! (aqui)
- AVISO POR CAUSA DA MORAL, DO BOM SENSO E DA LEGALIDADE (aqui)
- EÇA DE QUEIRÓS NÃO ERA “PESSOA DE BEM” (aqui)
- O PANTEÃO DE UM ESCRITOR SÃO OS SEUS LEITORES (aqui)
- EÇA NO PANTEÃO NÃO TEM ADESÃO (aqui)

"A fronteira entre ciências e letras é arbitrária"

 Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião

Na Europa e na América, os sistemas de ensino públicos descartam as artes e as humanidades, fazendo prevalecer a ciência que pode "servir" a tecnologia". Isto acontece no ensino não superior e no superior: marginalizam-se ou extinguem-se disciplinas, vias de escolaridade, cursos que "não têm utilidade" no mercado de trabalho, onde cada um "vale" o preço que lhe é conferido pelas competências funcionais que adquirir e possa pôr a render nesse marcado. 
 
Sobre este e outros temas, relacionando a actualidade com o passado sempre presente, nos fala Irene Vallejo, no livro ao lado indicado e do qual extraímos a seguinte passagem:
 
“A fronteira entre ciências e letras é arbitrária. Para os gregos antigos só existia o território comum do saber e o obstáculo único da ignorância. Os primeiros filósofos foram físicos e o grande Aristóteles era biólogo. Os pitagóricos descobriram a importância oculta da matemática na música e o escritor romano Lucrécio expôs a teoria dos átomos em versos apaixonados. O antagonismo atual entre as duas culturas é irreal: precisamos de equações e de poesia. Ninguém é mais esperto por escolher o cálculo ou a história. As metas dos cientistas e dos artistas são as mesmas: compreender o mundo, derrubar preconceitos, tornar-nos livres. Por isso, devíamos deixar de levar estas divisões tão à letra ou considerá-las de ciência certa.” 
 
Irene Vallejo, O Futuro Recordado, Bertrand Editora, 2024, pág. 28.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

SOBRE A MORTE

Texto meu que saiu no livro de Paulo João Santos, Encontros com a Morte (Oficina da Escrita):

Dizer que a morte é o fim da vida é uma definição muito redutora, pois a vida – entendida não na sua dimensão individual, mas como um fenómeno colectivo – não só se prolonga para além da morte de cada ser vivo, como tem necessariamente de incluir a morte para que as espécies assegurem o seu normal desenvolvimento. A vida pressupõe a reprodução, mas tornar-se-ia rapidamente impossível a vida conjunta de todos os indivíduos se acaso não houvesse morte, até pela exaustão de recursos ambientais. Para que uns tenham a oportunidade de viver, outros têm de morrer. A evolução das espécies assenta na mudança de características de uma população ao longo de várias gerações, sendo a morte parte inextrincável desse processo.  Morrer é a coisa mais natural da vida. E, no entanto, sendo a biologia como é, nós, humanos, encaramos a morte como um mal. E temos medo dela. Talvez para exorcizar esse medo, tendemos a projectar, para além dela, uma vida não material, que não se sabe bem o que será. Somos os únicos seres vivos que imaginam e desejamos vidas para além da morte.

Como é que eu vejo a morte, em particular a minha. Morrerei como toda a gente. Mas não penso nisso. Julgo que viver o dia-a-dia é, para todos ou quase todos, esquecer a morte. Procuro não me lembrar da morte, embora tenha a certeza de que ela um dia se vai lembrar de mim. Consta que o norte-americano Richard Feynman, Prémio Nobel da Física de 1965, terá dito no leito de morte, para onde o tinha lançado uma doença fatal: «Não gostaria de morrer segunda vez. É tão aborrecido.” Sei que há quem acredite na reencarnação, mas eu acredito que a vida é única, isto é, para cada indivíduo, irrepetível. Só conto morrer uma vez. Se me pedem para pensar nesse momento, direi que, gostando de viver (costumo dizer que, se aparecer morto, investiguem bem porque não fui eu), espero que ela seja o menos má possível, isto é, tardia e, tanto quanto possível, indolor. De facto, temo mais o eventual sofrimento do que propriamente a morte.

Sei que a morte não se faz sem sofrimento, próprio e alheio. Já sofri a morte de familiares e amigos, que me fizeram passar um mau bocado. A morte não passa do fim da existência de um ser humano, o que está longe de significar o fim da existência da espécie humana, e procuro tirar consolação desse facto. Somos mortais, mas a nossa espécie terá, se tiver juízo, um longo futuro à sua frente, tal como já tem um prolongado passado. O mundo não acaba quando cada um de nós acabar: de nós ficam os genes, passados à prole (embora não seja obrigatório tê-la), assim como ficam, para usar um dito proverbial, as árvores que plantámos e os livros que escrevemos. Fica, espero, alguma memória de nós, tanto biológica como cultural. Confesso que sou um optimista: acredito que o mundo pode ser melhor. Eu, que prefiro a república à monarquia, acharia insuportável ser governado por um velhinho D. Afonso Henriques. Tal como na biologia, na sociedade a morte é também uma condição de renovação e de progresso.

Embora não tendo a certeza (um cientista não deve ter certezas!), estou em crer que não sobreviverei à minha morte, a não ser no sentido de deixar alguma memória. Olho para uma minha ficha bibliográfica na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, que já tive a honra de dirigir, e leio “1956 -  “. Sei que, um dia, um bibliotecário preencherá o espaço depois do tracinho, podendo desde já assegurar que o ano será posterior a 2022. Consegui, felizmente sem dificuldades de maior, chegar à idade que tenho. Em séculos anteriores dificilmente isso teria acontecido. Conforta-me bastante a ideia – espero que não me acusem de vaidade – de que os meus escritos me sobrevivam, devidamente catalogados e acessíveis, para memória futura. As palavras sobrevivem ao corpo. 

A pergunta é inevitável: mas não acredita que a alma sobreviva ao corpo? Embora a palavra “alma” continue a fazer sentido para muitos, prefiro chamar “mente” ao que dantes se chamava “alma.” E, neste quadro, a minha resposta é clara: não, não acredito. Estou em crer que a minha mente precisa do meu corpo, muito em particular do meu cérebro. E não fico nada aborrecido com isso. Quando não estiver cá o meu cérebro e, portanto, a minha mente, haverá, com certeza, outras que mais do que compensarão a falta da minha. E elas, poderão, ainda que de uma forma grosseira, comunicar com a minha através do que deixei. Os livros mostram-nos que, num certo sentido, é possível “comunicar com os mortos.” Como disse o astrofísico e comunicador de ciência americano Carl Sagan, em Cosmos, ao abrir um livro, “ouve-se a voz de outra pessoa – talvez alguém que já tenha morrido há milhares de anos.”

Quem sou eu? Um ser humano nascido em 1956, quando os genes do meu pai e da minha mãe se mesclaram. Eu não me lembro desse meu big bang, mas tenho boas razões para acreditar que já fui um minúsculo óvulo fecundado. Cresci e apareci. Decerto que o meu “eu” é mais que uma colecção de células, mas não existe sem essa colecção de células, entre as quais muitos neurónios. A questão da identidade pessoal, associada à questão da consciência, é para a ciência ainda hoje um mistério. Mas não desistimos de procurar mecanismos cerebrais, isto é, neuronais, da consciência. A minha consciência foi-se fazendo, à medida que os meus neurónios se multiplicavam. Eu sou ainda a criança e o jovem que fui, mas sou, definitivamente, uma outra pessoa, moldada pela experiência da vida, resultado de inúmeros desejos e incidentes. A experiência da vida – a passagem pelo tempo em imprescindível interacção com o ambiente – causa efeitos, uns bons e outros nem tanto.

Envelhecemos, que é como quem diz desgastamo-nos. Esse é um fenómeno natural, é uma condição da matéria da vida, tal como de outra matéria. A biologia faz o que pode para contrariar esse processo de desgaste: as células, cada uma delas com o nosso ADN, vão sendo restauradas; vão-se dividindo ao longo da nossa vida; e algumas, porque defeituosas, são mesmo eliminadas para não causarem danos. Ao fim de algum tempo, a maioria das nossas células foram renovadas. Umas renovam-se mais rapidamente do que outras. O curioso é que as células do cérebro são das mais estáveis, em suporte da ideia de que esse órgão é um bastião da nossa identidade (em menor escala, o mesmo se passa com o coração, em suporte da ideia antiga que o coração é o nosso centro). À medida que o tempo passa, o processo de renovação celular torna-se, porém, cada vez mais difícil. O médico francês Jacques Ruffié, autor de O Sexo e a Morte (Dom Quixote, 1987) diz que “o envelhecimento é um fenómeno banal, constante”, isto é, em qualquer idade estamos a envelhecer e não apenas quando somos velhos. A morte, quando não sucede por um azar de qualquer tipo, é um resultado natural do envelhecimento. Como disse o sociólogo francês Edgar Morin, que já tem mais de cem anos, o envelhecimento é “a vanguarda da morte.” A morte é inevitável porque não podemos evitar envelhecer.

Embora possa parecer estranha a quem nunca ouviu falar dela, vale a pena acentuar a relação profunda que há entre o sexo e a morte. O sexo é aquilo que permite aos seres vivos como nós ultrapassar a morte, ao prolongar a espécie no futuro, continuando a “árvore da vida”. Nos seres sexuados é maior a miscigenação dos genes (uma bela “invenção” da evolução!) e com isso as possibilidades de êxito evolutivo. Mas a morte é a contrapartida obrigatória. Ruffié abordou essa dicotomia no referido livro: “A morte é um fenómeno biologicamente necessário, sem o qual a sexualidade estaria sem objectivo”. E, noutro passo: “O sexo e a morte são dois tributos que pagamos ao progresso evolutivo. São dois fenómenos complementares, mas surpreendentemente contrastados. O primeiro ocorre na alegria, no prazer, e na esperança; o segundo no sofrimento, no horror e no vazio”. Na mitologia grega já coexistiam Eros e Tanatos, os deuses da vida e da morte. Pareciam radicalmente opostos, mas a biologia moderna veio relacioná-los.

Na mesma linha de Ruffié, escreveu o geneticista francês Albert Jacquard, em A Herança da Liberdade: da animalidade à humanitude (Dom Quixote, 1988), sobre a morte: “Esse desaparecimento é necessário: é a contrapartida da capacidade de procriar. (…) Os seres que dispõem do poder singular de fazer um a partir de dois, de dar existência ao imprevisível, de criar, têm o privilégio de serem únicos, o que implica que um dia desapareçam. O procriador tem de dar lugar ao procriado. Todos os seres ditos ‘sexuados’ partilham este poder e pagam o preço do desaparecimento: mas só o homem tem consciência disso.” A permanente consciência da perenidade é o nosso drama.

Com o avanço da tecnologia, temos tentado uma miríade de possibilidades para prolongar cada vez mais a nossa vida, atenuando o drama, sem o eliminar: a moderna medicina, fundada no conhecimento da biologia, tem conseguido com sucesso adiar a morte, mas sem nunca a vencer. Há quem acalente o ingénuo sonho de descobrir o elixir da imortalidade, ou, pelo menos, o elixir da longa vida, que permita viver mais do que viveu a francesa Jeanne Calment, falecida aos 122 anos, a mais longeva de todos os humanos, pelo menos nos tempos mais recentes. Mas, como diz Ruffié, “a imortalidade biológica continuará para sempre a ser um mito fora do nosso alcance.” A morte nunca será vencida, porque não o pode ser.

Embora sabendo que a Natureza impõe a morte, sei bem que o homem quer resistir tanto quanto pode ao seu destino. Resiste fisicamente e resiste mentalmente. Também sei que não somos só um conjunto de células e que a ciência não explica todas as dimensões do humano. Somos seres espirituais e essa nossa espiritualidade sobressai especialmente no confronto com a morte. Temos a capacidade de acreditar na transcendência e longe de mim a ideia de apoucar a crença no divino e a esperança de vida eterna que tantos partilham. O facto de eu não precisar de me agarrar à ideia de vida eterna não implica que não entenda que outros precisem dela. De facto, a maioria dos seres humanos não podem passar sem Deus. Somos todos iguais, todos membros da espécie Homo sapiens, mas também todos diferentes. Possuímos uma estrutura biológica semelhante, mas temos experiências sociais e culturais bastante distintas. E necessidades diversas.

Repito, para que a ideia se instale: Do ponto de vista científico, a morte não é um problema, é uma solução. Mas, do ponto de vista filosófico e, obviamente, também teológico, é mesmo um problema: a morte é vista como um mal. Por que razão é considerada um mal? Porque será a ausência de eternidade individual um mal? Não poderia o contrário da morte, a eternidade, ser um mal maior, uma vez que acabaria por se tornar um tédio infinito? Há, na história das ideias, alguns argumentos sobre a morte que gostaria aqui de invocar. Os dois são muito antigos. Um deles é de Epicuro, o famoso filósofo grego dos séculos IV e III a.C., que, na sua Carta a Meneceu, nos sossega: “Portanto, o mais atemorizador dos males, a morte, nada é para nós, porque, quando existimos, a morte não está presente e, quando a morte está presente, não existimos. Deste modo, ela nada é nem para os vivos nem para os mortos, porque os primeiros não a têm e os últimos já não existem.” E o outro é de Lucrécio, o filósofo romano do século I a.C., autor no poema latino De Rerum Natura, em português “Da Natureza das Coisas” (também o nome do blogue que mantenho, com outras pessoas, há muitos anos): “Vê, olhando para trás, como nada significou para nós toda a porção de eternidade que se passou antes do nascer. Eis o espelho que a Natureza nos apresenta do tempo futuro, do que virá depois da nossa morte. Surge nisto algum horror, alguma tristeza? Não é tudo muito mais seguro do que o sono?”

Termino, voltando a Jacquard: “Que eu nasci, é um facto; que morrerei, é uma certeza, mas não é ainda um facto. Entre estes dois acontecimentos – um real, perfeitamente situado no tempo, o outro virtual, com data imprevisível – envelheço. A minha idade é a medida do esgotamento progressivo do tempo que os separa.”  O  meu pai, que não tinha uma grande instrução e que infelizmente já faleceu, dizia, na velhice: “Quem já muito andou não tem muito para andar.” Ser temporalmente limitado é uma condição de cada ente humano e a consciência disso é uma manifestação de sabedoria.

sábado, 4 de janeiro de 2025

O FENÓMENO DA CONSCIÊNCIA É COMO O DA EXISTÊNCIA DO UNIVERSO - DAVID LODGE

Faleceu David Lodge, o polifacetado escritor britânico que manteve na ficção uma ironia finíssima e absolutamente corrosiva. A diversidade humana é irmanada nas fraquezas e nas safadezas, no que esconde e no que revela, nos pensamentos inconfessáveis e nos comportamentos desconcertantes. A sua vasta galeria de retratos que desenhou oferece-nos possibilidades inesperadas para encaixarmos as nossas pequenas e grandes misérias.

E isso só nos faz bem! Põe-nos na linha! Ou, pelo menos, devia...

Sobretudo se formos do tipo de nos levarmos muito a sério, de nos acharmos criaturas bem sucedidas, de nos vermos no topo do mundo. A passagem pela universidade, como professor, ajudou Lodge a "captar" este tipo e a dissecá-lo.

Pessoas que, como ele, remexem na consciência humana, trazendo à luz o que queremos enfiar à força na cave escura, são muito precisas para, através de uma substancial irracionalidade, dar alguma racionalidade ao real.

Sobre a consciência, disse Lodge a Luís Faria, jornalista do Expresso em 2016 (ver aqui):

"Escreveu um romance inteiro sobre a questão da consciência. Na altura, estava a estudar o assunto. 

Sim, a inteligência artificial. Pareceu-me bom material para ficção. Usei-o de modo a que houvesse um debate, entre um romancista e um cientista cognitivo, sobre se era possível descrever a consciência. Foi muito instrutivo para mim. Quando comecei, não sabia nada sobre inteligência artificial. Aprendi um pouco. Mas não acho que a ciência cognitiva alguma vez explique por completo o fenómeno da consciência. Há filósofos que dizem taxativamente que não. É como a existência do Universo".

PERDER A ALMA POR UM PRATO DE LENTILHAS

A poesia de Eugénio Lisboa como leitura da intemporal (e, portanto, actual) condição humana. Perder a alma é sempre um mal, mas perdê-la, o...