quarta-feira, 8 de outubro de 2025

CINEMA EM ÉVORA, NOS ANOS 30 E 40

Por A. Galopim de Carvalho
 
Lembremos, porque nunca é demais saber, que a palavra “cinema” radica no grego, “kinema”, que quer dizer movimento e que o termo “cinema”, que hoje anda na boca de toda a gente, é o encurtamento de “cinematógrafo”, a palavra usada ao tempo dos irmãos Auguste e Louis Lumière, franceses de origem, que, por volta de 1890, inventaram esta forma de registar o movimento através da fotografia.

Dizia o meu pai que “cinema é como se, numa fotografia, as pessoas se movimentassem”.

Na segunda metade dos anos 30, chegou a Évora uma furgoneta de cor vermelha mostrando, em grande tamanho e a branco aquele seu conhecido logotipo em que as palavras BAYER, uma escrita na horizontal e outra, na vertical, se cruzam a meio, na letra Y. Percorrendo as ruas, anunciava que, à noite, na então praça 28 de Maio, hoje Praça 1. º de Maio, frente ao portão do Jardim Público, haveria cinema, especialmente dedicado às crianças.
 
Sentados no chão, felizes, irrequietos e excitados pela perspectiva de vermos cinema, esperámos com impaciência o desenrolar do pano branco a fazer de “écran”, encostado à parte lateral da furgoneta, à nossa frente, e ao aprontar do projector manual, atrás de nós. Sem som e iluminadas pela “força” da bateria, as imagens de curtíssimas metragens de Charlot foram novidade, mesmo para muitos dos crescidos que nos acompanhavam. 
 
No Verão desses anos havia cinema na esplanada do então Hotel Alentejano, o antigo Palácio da Inquisição. Foi aí que, na companhia do meu pai, vi filmagens dos jogos olímpicos de 1936, em Berlim. 
 
Não sei se mais cedo, mas, no Verão dos anos 40, havia cinema ao ar livre, na Praça de Touros e na esplanada do antigo quartel dos Bombeiros Voluntários, localizados onde hoje de situa o Tribunal. Na Praça de Touros, as pessoas finas tinham lugar na arena, com mesas, cadeiras e criados para lhes servirem cervejas, laranjadas ou pirolitos, refrescados em celhas com pedras de gelo e acompanhados de tremoços e “ervilhanas” (amendoíns). A malta assistia das bancadas, sendo que, à noite, o Sol ou Sombra das tardes da Festa Brava não contava para diferenciar o preço das entradas. O que contava era escolher ficar de frente ou de viés para o “écran”. Na esplanada dos Bombeiros, os que podiam instalavam-se nas “cadeiras” (daquelas de abrir e fechar, feitas de ferro e ripas de madeira).

Um aspecto igualmente importante na história da evolução sociológica da cidade é recordar que, nesses anos, o cinema, à semelhança dos cafés, era um lugar de homens, onde as mulheres só podiam entrar ao lado dos maridos, ou as filhas, na companhia dos pais.

Nesse tempo, em que os rapazes (nunca as raparigas) pré-adolescentes podiam brincar na rua e andar livremente por toda a cidade, e uma vez que os lugares no cinema não eram marcados e não havia classificação dos filmes por idades dos espectadores, qualquer criança podia entrar desde que fosse pela mão de um adulto. 
 
Foi assim que, pelos meus 11 e 12, me regalei a ver tudo o que era filmes, desde os “dramalhões” da época, como “Tortura da Carne”, com o Akim Tamiroff, aos de rir, com Abbott e Costello e Bucha e Estica, sem esquecer os do Tarzan, com Johnny Weissmuller, e os da Lassie. 
 
Muitas das minhas brincadeiras de rua tiveram inspiração nos “cobóis” do cinema desses anos. Tom Mix, Buck Jones e Ken Maynard corriam pelas ruas gritando “camones” e dando tiros com a boca. Foram anos de grande desenvolvimento na arte e na indústria do cinema, inclusivé em Portugal, mas não é meu propósito (porque me faltam conhecimentos para tal) falar do cinema que se fazia cá dentro e lá fora.

Que eu me lembre havia cinema aos Domingos e às Quintas-feiras. Lembro-me ainda que, nesses anos, em plena Guerra, a hora de Verão fora aumentada de mais uma hora do que o habitual, o que fazia com que as sessões ao ar livre tivessem de esperar pelo escurecer, o que só acontecia por volta das dez da noite.

No Inverno e no tempo frio ou chuvoso tínhamos cinema no Teatro Garcia de Resende e no Salão Central Eborense, com matinés aos Domingos. Aí já os lugares eram marcados, pelo que a minha frequência às sessões da 7.ª arte diminuíram consideravelmente.

domingo, 5 de outubro de 2025

Book 2.0 2025 | Ciência, Sustentabilidade e Edição (Science, Sustainabil...

NO DIA MUNDIAL DO PROFESSOR

 Hoje, 5 de Outubro, é o Dia Mundial do Professor

A data foi instituída pela UNESCO em 1994  para celebrar a Recomendação da UNESCO sobre o Estatuto dos Professores, em 5 de Outubro de 1966. 

Num tempo em que assistimos a uma desvalorização da profissão docente, que conduziu a uma crise sem precedentes de falta de professores nas escolas, recordemos um texto do início do século XX, cuja capa aqui apresentamos.

Trata-se de um discurso proferido em Maio de 1912, por Boavida Portugal, e do qual transcrevemos algumas passagens (com actualização da grafia):

Eu não sei de classe social que tenha mais nobres pergaminhos. Os aristocratas buscavam os seus nas cinzas mortas do passado; vós conquistais a realeza do presente, preparando o futuro. E o futuro, como ave que vai correndo ao vosso encontro, cada manhã vos leva um novo e mais nobre pergaminho. O professor é como a raiz: tem o poder de organizar a matéria. É a força de coesão dentro das sociedades. É ele que faz do indivíduo um homem, porque o ensina a ler, e só quando se sabe ler se tem o pensamento em comum, se pertence à sociedade.

O fim da educação deve consistir, não em mobilar o espírito, mas em formá-lo; não em procurar conhecimentos, mas em desenvolver aptidões. Verdadeiramente homem não é o que sabe, é o que produz. 

Se a nossa moral se baseia no interesse, criemos valores.

A escola do futuro deve ser o aprendizado da vida. A missão do professor será criar o amor pela ação.

A educação deve formar homens livres, de hábitos sãos, prontos para a vida.

Há missões nobres dentro da vida das civilizações. Mas, dentre todas as nobrezas, ressalta a do professor, como elemento social, guia de todos os elementos sociais, palmeira dominando o deserto, águia pairando nos ares, tentando a subir, convidando a voar.

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Nota: José Boavida Portugal (1885-1931) foi jornalista  e escritor. Foi também  professor e, nessa qualidade, publicou, em 1917, um livro intitulado "Educação Cívica", que foi aprovado pelo Ministério para a instrução primária, para a formação de professores e para a educação de adultos.

sábado, 4 de outubro de 2025

O "STATU QUO" DA PRAXE ACADÉMICA

No percurso que, na segunda quinzena de Setembro, fiz até à universidade para chegar às primeiras aulas da manhã, encontrei sempre dois ou três grupos de praxe. Tentei, como em anos passados, não ouvir as ordens grosseiras, ofensivas dos estudantes mais velhos e os coros subservientes, servis dos que acabam de chegar. Não são as palavras em si que me incomodam é a situação: pessoas maiores de idade - adultos, portanto -, que humilham e se deixam humilhar. Estas pessoas hão-de humilhar outras que chegarão.
 
São pessoas que, estando entre os 18 e os 25 anos, se diz serem da "geração ansiosa", da "geração frágil", da "geração floco de neve". Por isso, as instituições de ensino superior desdobram-se em medidas destinadas a promover o seu "bem-estar emocional": são linhas de apoio psicológico e programas de promoção da saúde mental; são atendimentos e grupos de acompanhamento; são consultas individuais... Tudo para prevenir e intervir na depressão, na ansiedade, no stress. E ainda há os canais de denúncia anónima para, tal como o próprio nome indica, denunciar anonimamente as variadíssimas modalidades de que o assédio, a ameaça e afins se revestem.
 
Algo não bate certo. A praxe reúne muitos ingredientes que atentam contra o "bem-estar emocional" (seja isso o que for) de qualquer um. Portanto, diria que é preciso muita resistência ou indiferença "emocional" para se passar por uma experiência daquelas e não se ficar abalado. Não vejo ali gente frágil, ansiosa, que se desfaz ao primeiro sopro; vejo ali gente capaz de abdicar da decência mínima (já nem falo em dignidade) que deve reivindicar para si e para os outros.
 
É certo que nem todos os estudantes aderem às praxes e que muitos são críticos das mesmas (veja-se, por exemplo o artigo Praxe: a grande hipocrisia da geração universitária de Alexandre Pinto, estudante da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto), mas a verdade é que não conseguem fazer valer a sua posição.
 
O fenómeno é complicado, reconheça-se, pelo que tem merecido vários estudos assinados sobretudo por sociólogos. Elísio Estanque é um deles, note-se o livro da sua autoria que ao lado se identifica. Num artigo que recentemente publicou (O culto da subserviência) põe a tónica nas relações entre o que agora se denomina "agentes educativos": estudantes, dirigentes e empresas. Vale a pena tentar perceber essas relações (perversas, digo eu):

"O tema das praxes estudantis pode até parecer esgotado e merecer o desinteresse da opinião pública e publicada. Com efeito, há décadas [que existem] tentativas de regulação e controlo por parte das universidades. Os comportamentos gregários e tribais da atual juventude estudantil persistem em deixar-se confundir com a naturalização dos abusos: autoritarismo, sexismo, marialvismo, conservadorismo são algumas das formas de abuso de poder e de violência simbólica que se perpetuam entre as sucessivas gerações de jovens que ingressam nas universidades portuguesas.

No caso da Universidade de Coimbra (UC), que está na origem destes rituais académicos, as débeis medidas de contenção adotadas por algumas faculdades revelam-se até agora impotentes, senão mesmo inócuas, para debelar um fenómeno que, nos seus atuais contornos, constitui, a diversos títulos, uma perigosa perversão da cultura estudantil e até das próprias tradições académicas. De resto, a atitude de anuência por parte da UC não é alheia a toda uma mentalidade juvenil onde predominam o consumismo e a alienação. Em Coimbra a força dos patrocinadores de cerveja, por exemplo, é mais importante do que a força das ideias para a eleição de uma dada candidatura para as estruturas dirigentes do associativismo.

(...) Triste espetáculo de grupos de jovens “caloiros”, de ambos os sexos, perfilados em modo de formatura paramilitar e a gritar as mais incríveis obscenidades sob o comando dos seus colegas mais “velhos” que (...) os/as obrigam a manter-se de olhos no chão ou a rastejar ou a andar de quatro ou a mergulhar no lago, etc. No Jardim da Sereia, no Jardim Botânico ou no Parque Verde da cidade, é vê-los, eles e elas, numa berraria descontrolada, a despejar baldes de água ou até mesmo cervejas pela cabeça abaixo dos caloiros, dando corpo ao que podemos considerar um autêntico viveiro de imbecilização dos e das imberbes estudantes, onde o que mais se glorifica é o culto do autoritarismo e consequentemente do servilismo perante o poder do mais velho (...).
 
Parece assim evidente que a leitura dominante na UC desaconselhe a interferir demasiado numa matéria que, apesar de considerada “inócua”, é muito conveniente para ajudar a manter o statu quo, seja no associativismo académico, seja na Universidade e no seu governo (...)"

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

A PLATAFORMIZAÇÃO DISTÓPICA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR PÚBLICA

Estimada colega de outra universidade acaba de me enviar uma excelente entrevista, publicada no podcast O tempo contra o tempo, na qual se disserta sobre preocupações que temos em comum. A entrevistadora é a professora portuguesa Raquel Varela, o entrevistado é Roberto Leher, professor brasileiro, doutorado em Educação (ver aqui).

Incide-se na apropriação da educação escolar pública por parte das grandes empresas de big data e na incapacidade de os estados, as escolas e universidades lhes fazerem frente. Pior do que isso, da incapacidade de os sectores mais progressistas das sociedades perceberem a essência dessa apropriação, ajudando a consolidá-la. 

É a condição humana que se transforma e muito rapidamente, não segundo a utopia do seu aperfeiçoamento, mas segundo a distopia do seu alheamento.

terça-feira, 16 de setembro de 2025

O MINISTRO DA EDUCAÇÃO QUE ENSINA LITERACIA FINANCEIRA

A notícia é do Diário de Coimbra de hoje (ver aqui): o Ministro da Educação, Ciência e Inovação regressou à escola secundária onde foi aluno para dar uma aula de "literacia financeira", a qual se constitui, a par da "educação para o empreendedorismo", o centro da "Educação para a cidadania". 
 
O tema foi "A poupança e a capacidade de imaginar o futuro".

A iniciativa tem algo de estranho (por isso foi notícia) e há razões para tal, eis duas delas: a ideia de "poupança para..." veiculada na "literacia financeira" deve merecer uma cuidadosa abordagem ético-didáctica; além disso, trata-se de um (agora) político a exercer funções docentes. Recordo que, no respeitante à educação financeira já tínhamos os bancários a "dar aulas" (ver aqui).

Congresso Livre-Pensamento, em Coimbra

O Congresso Livre-Pensamento terá lugar na Casa Municipal da Cultura, em Coimbra, no sábado, dia 27 de setembro de 2025, às 14h. 

  • João Monteiro, biólogo e presidente da AAP, irá refletir sobre os últimos anos do ateísmo em Portugal;

  • Anabela Pinto, investigadora e docente com carreira internacional na área das ciências da vida e psicologia, irá abordar a importância do pensamento crítico na avaliação das crenças religiosas;

  • J. Xavier de Basto, informático e dirigente da Associação República e Laicidade irá responder à questão se Portugal será mesmo um país laico;

  • Joel Santos, João Sequeira e Tânia Casimiro são três arqueólogos que irão falar do seu trabalho em torno da arqueologia do lixo religioso;

  • Eva Monteiro, licenciada em filosofia e dirigente da AAP, irá falar de religião, seitas e mentalidade de culto.
Será também realizada uma homenagem a Tomás da Fonseca, escritor e livre-pensador, cujas obras marcaram o século XX. 

A entrada é gratuita, mas dada a limitação de lugares é necessária inscrição (aqui).

O Programa completo pode ser consultado aqui



segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Rui Pita - A Reforma Pombalina de 1772 na Universidade de Coimbra

AO CUIDADO DO SENHOR MINISTRO DA EDUCAÇÃO

Carta que se recebe deve, por princípio, ter resposta. Por isso está certo que professores respondem às cartas do Ministro da Educação, Ciência e Inovação. Abaixo reproduzo, com a devida autorização da autora, uma dessas cartas que lhe foi enviada há um ano, mas que não perdeu actualidade.

Exmo. Senhor Ministro,

Recebi a carta que vossa excelência dirigiu aos professores, que muito agradeço e que li com a maior atenção.

Há 38 anos que sou professora de Filosofia, profissão que abracei com paixão e que, apesar de todos os reveses, me tem realizado pelo contacto humano que encetei com as várias gerações de jovens que ensinei e às quais transmiti a importância do esclarecimento e do conhecimento.

Andei com a "casa às costas", estive na Madeira, no continente fui colocada a 400 Km de casa, e a frequentar o segundo ano da profissionalização em serviço e, tristemente, até nesse ano ignorei a minha situação pessoal e familiar, tendo cumprido com devoção as tarefas que me foram atribuídas.

Hoje estou exausta, exaurida, mas como os meus alunos não têm culpa do desaire em que se tornou a escola pública e a vida dos docentes, não desisto da minha missão: lutar contra a ignorância e inércia e alertar para os problemas que assolam a humanidade e que não podemos obliterar.

Há quinze anos voltei a estudar, ingressei num mestrado e há dez anos num doutoramento, ambos na
Universidade de Coimbra. Ainda que congelada e sem a perspetiva de obter qualquer bonificação quando o terminasse, encontrei aí a possibilidade de me enriquecer e melhorar o meu desempenho enquanto professora.

Como a carreira descongelou em 2018, ano em que defendi a tese, tive os dois anos de bonificação. Quanto ao mestrado a bonificação foi de um mês e uma semana!

Senhor Ministro, serve este preâmbulo para o situar naquela que foi a minha luta pessoal e profissional, para que compreenda que me sinto profundamente discriminada por não me ter contemplado na recuperação do tempo de serviço, para a qual tanto lutei.

Vossa excelência refere que temos de dar aos professores a importância que eles merecem. Pelos vistos o Ministério de vossa excelência não tratou os professores de forma equivalente. Uns são mais importantes do que outros!

Estou no 10.º escalão muito fruto do meu esforço durante vários anos em que passava as férias a estudar e a escrever, tendo abdicado de tempo junto da minha família.

Também estive congelada, subi tardiamente aos escalões de topo, fiz malabarismos económicos para que as minhas duas filhas pudessem estudar e tivessem a possibilidade de aprender/ aprofundar conhecimentos de inglês e francês, e hoje sinto-me profundamente injustiçada.

Se, como docentes, não devemos deixar ninguém para trás, o Senhor Ministro também não devia deixar nenhum professor para trás.

Sinto que fiquei para trás. Eu e muitos!

Senhor Ministro, se nada for feito, se não enquadrar todos nas medidas a que têm direito, não terá nenhum professor a prolongar a sua vida profissional para colmatar a falta de professores! Não me sinto em dívida para tal sacrifício.

Atenciosamente
Maria Dulce Marques da Silva

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

EM QUE ACREDITA O SENHOR MINISTRO DA EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E INOVAÇÃO E A SUA EQUIPA?

No passado Ano Darwin, numa conferência que fez no Museu da Ciência, em Coimbra, o Professor Alexandre Quintanilha, começou por declarar o seguinte: “os biólogos não acreditam na teoria da evolução”. 

É, como se percebe, uma declaração desafiante cujo objectivo foi o de distinguir "crença" de "ciência", para, de seguida, explicar que a teoria da evolução não decorre de "acreditarmos" nela, porque ela está assente em factos validados pela comunidade científica. Não é uma questão de crença, mas de ciência.

Talvez, à altura, ele já tivesse percebido (eu ainda não tinha) que as palavras "acreditar, "acredito", "acreditamos", "acredita-se", haviam saído da linguagem religiosa (onde têm todo o sentido) para entrarem em força na linguagem comum e, pior, na linguagem política, jornalística e, também na linguagem académica.

Estas palavras são tão frequentemente usadas pelos meus estudantes que rara é a aula em que não tenho de retomar a explicação do Professor Alexandre Quintanilha, acrescentando que o pensamento e a acção educativa dependem do conhecimento filosófico e do conhecimento científico. Por esta ordem. E que o conhecimento filosófico também não depende de "crenças".

Se pensarmos a partir de crenças, não poderá haver escrutínio de ideias, não poderá haver crítica com vista a um entendimento comum, nem sequer ligação à realidade: cada um acredita no que acredita, segue o caminho que a sua crença lhe dita e ninguém tem nada a ver com isso.

Presumo que o Senhor Ministro da Educação, Ciência e Inovação, nunca terá ponderado este aspecto (que é, afinal, de ordem epistemológica, e manifesto na linguagem). Será por isso que usa tantas vezes as ditas palavras nas cartas que escreve aos directores e aos professores. 

Nas duas cartas que agora lhe dirige, com data de ontem, explica no que ele e a sua equipa acreditam. A saber:

- "Acredito que durante este ano daremos mais um passo para que o País tenha uma Escola Pública mais forte, mais inclusiva e mais inovadora."

- [Ser professor] "é acreditar no potencial de cada aluno, mesmo perante desafios."

- "É na sala de aula que (...) todos os alunos podem acreditar na igualdade de oportunidades".

- "Acreditamos, também, que receber bem os novos professores (...) é essencial para que se sintam parte da comunidade escolar desde o primeiro dia."

- "Porque acreditamos no poder transformador da Educação (...)"

Sendo crenças, não sou capaz de as discutir e, portanto, fico-me pela sua reprodução.

domingo, 7 de setembro de 2025

SOBRE O GRANITO E A SUA ORIGEM, NUMA CONVERSA TERRA-A-TERRA.

Por A. Galopim de Carvalho

Paisagem granítica na Serra da Gardunha.
Já dissemos que não há um, mas sim, vários tipos de rochas a que o vulgo dá o nome de granito.

Deixando este tema para outras conversas, comecemos agora por dizer que o termo granito,Na imagem: paisagem granítica na Serra da Gardunha. em sentido restrito, designa uma rocha plutónica (gerada em profundidade, na crosta), granular, rica em sílica (mais de 70%), com quartzo essencial, expresso e abundante (20 a 40%), e feldspato alcalino (ortoclase, microclina, albite). Como mineral ferromagnesiano contém, geralmente, biotite, sendo raros os granitos com anfíbolas ou piroxenas. Entre os seus minerais acessórios, destacam-se moscovite, apatite, zircão e magnetite. Esta rocha corresponde ao que, numa linguagem mais rigorosa, se designa por “granito alcalino”. O termo granito, atribuído ao italiano Andrea Caesalpino, surgiu em 1596, e radica no latim granum, que significa grão.

Imagine o leitor uma paisagem como a do norte de Portugal, essencialmente formada por granitos, xistos argilosos e grauvaques, na margem ocidental da placa litosférica euroasiática, à beira de um oceano (o Atlântico) que a separa de uma outra placa (a Americana). Como é sabido, os agentes atmosféricos (a humidade, a água da chuva, o oxigénio e o dióxido de carbono do ar e as variações de temperatura) alteram (“apodrecem”) as rochas e é essa alteração, ou meteorização, que gera a capa superficial (rególito) que dá origem ao solo.

- E quais são os materiais desta capa de alteração e do respectivo solo? – Pergunta-se.

Restringindo a resposta ao local em questão, aos principais minerais destas rochas, e à situação climática que aqui exerce a sua influência, diremos que, no granito, o feldspato altera-se, transformando-se parcial e, de início, superficialmente, em argila. Alterando-se o feldspato, os restantes grãos minerais descolam-se uns dos outros e a rocha perde coesão (esboroa-se entre os dedos). Os grãos de biotite (uma mica contendo ferro) também se alteram e dessa alteração resulta o seu aspecto “enferrujado”, o que confere à rocha exposta as cores de castanho-amarelado, que contrasta com a cor da rocha sã, acabada de cortar. O quartzo não sofre qualquer alteração, o mesmo sucedendo à mica branca (moscovite) que apenas se divide em palhetas cada vez mais pequenas e delgadas. No xisto argiloso, que além de argila tem quartzo em grãos finíssimos, microscópicos (ao nível de poeiras), tem lugar a perda de coesão destes materiais. No grauvaque acontece outro tanto, com a libertação dos seus componentes arenosos (os mesmos do granito, mas muito mais finos).

Podemos agora dizer que os rególitos e os solos desta região de Portugal têm uma fracção arenosa com quartzo abundante, algum feldspato, micas e um fracção argilosa ou barrenta que faz o pó dos caminhos, em tempo seco, e a lama, em tempo de chuva. Podemos igualmente dizer que, quando chove com certa intensidade, as águas de escorrência arrastam estes materiais, com suficiente visibilidade na componente argilosa em suspensão. Isso vê-se frequentemente nas enxurradas, nas águas barrentas dos rios e, até, no mar, frente às fozes desses rios.

As pedras (cascalho) vão ficando, em parte, pelo caminho, outras atingem o litoral e não passam daí. As areias enchem as praias, as dunas e o fundo rochoso da plataforma continental. As areias mais finas e as argilas, incapazes de se depositarem em mar de pequena profundidade, constantemente agitado pela ondulação, progridem no sentido do largo, indo depositar-se na vertente continental (onde ficam em situação instável). As muitíssimo mais finas, essencialmente argilosas, vão imobilizar-se mais longe, no fundo oceânico. Sempre que, por exemplo, um sismo abala a região, os sedimentos em situação de depósito instável na vertente desprendem-se, indo decantar sobre os já acamados no dito fundo.

Imaginemos que este processo (alteração das rochas, erosão, transporte e acumulação no mar) se repete ao longo de milhões de anos e que dele resultam alguns milhares de metros de espessura deste tipo de sedimentos. Imaginemos, ainda, que o mesmo se passa do lado de lá do Atlântico.

A tectónica global ensina-nos que este oceano, como todos os outros, ao longo da história da Terra, irá fechar-se. Isso terá como resultado o encurtamento do espaço coberto pelos ditos sedimentos que, à semelhança de um papel que amarrotamos entre as mãos, sofrerão enrugamentos, com “dobras” que vêm para cima, formado novas montanhas, e outras que vão para baixo, formando as “raízes” dessas montanhas.

É sabido que a Terra conserva grandes quantidades de calor no seu interior e que a temperatura aumenta com a profundidade, o mesmo sucedendo com pressão (dita litostática). Assim, dos sedimentos envolvidos nas citadas “raízes”, os mais superficiais ficarão sujeitos a pressões e temperaturas relativamente baixas, sofrendo ligeiríssima transformação (anquimetamorfismo), dando origem a rochas na fronteira entre as sedimentares e as metamórficas, como são o xisto argiloso, o grauvaque e, um pouco mais abaixo, a ardósia. Continuando em profundidade, com o aumento da pressão e da temperatura, mas sempre com transformações no estado sólido, formar-se-ão outras rochas francamente metamórficas, de graus progressivamente mais elevados, expressas na sequência: filádios ou xistos luzentes (uma vez que a componente argilosa se transformou em minerais que têm brilhos característicos, ”luzentes”, como a sericite, a clorite ou o talco), xistos porfiroblásticos, micaxistos e, ainda mais abaixo, gnaisses (estes representando o grau mais elevado).

A profundidades na ordem dos 30 quilómetros, a temperatura pode atingir os 800oC, e a pressão ultrapassar as 4000 atmosferas. Neste ambiente e na presença de água (toda a contida na composição das argilas) terá lugar a fusão dos minerais menos refractários (quartzo e feldspatos). Entra-se aqui no domínio do chamado ultrametamorfismo e o processo toma o nome de anatexia (do grego aná, novo, e teptikós, fundido), ou palingénese (do grego pálin, de novo, e génesis, geração), dando origem a migmatitos.

Logo que a fusão seja total, entra-se no domínio do magmatismo, com a formação de um magma que, dados os materiais envolvidos, só pode ser de composição granítica, magma que, uma vez arrefecido e solidificado, gerará um novo granito.

A história acabada de descrever nesta espécie de antevisão é a que julgamos saber contar relativamente à que, há pouco mais de 300 milhões de anos, deu origem à orogenia hercínica ou varisca e ao granito, ao xisto e ao grauvaque que nela se geraram e que marcam a paisagem do norte de Portugal. Do mesmo modo, esta história conta a de todas as paisagens afins do planeta, desde as mais antigas, com mais de 4000 milhões de anos, às mais recentes com escassos milhões.

Relativamente ao granito, a mais importante rocha magmática que forma a “ossatura” dos continentes, sabemos que o primeiro resultou de um processo de diferenciação, lenta e complexa, de uma crosta primitiva, de natureza próxima da do basalto. Sabemos também que qualquer geração de granito tem, atrás de si, outro granito e que, muitos milhões e anos depois (400 a 500, em média), renascerá numa nova geração de granito.

Esta história é, afinal, a expressão (reconhecível ao nível das paisagens da Terra) do conhecido Ciclo de Wilson (do geólogo canadiano John Tuzo Wilson (1909-1993), relativo às sucessivas aberturas e fechos dos oceanos da Terra.

Notas:

- Grauvaque – rocha sedimentar arenítica e coesa, gerada nos grandes fundos marinhos, a par dos xistos argilosos. Contém, sobretudo, quartzo (20 a 50%), feldspatos e micas. O termo foi Introduzido na nomenclatura litológica, em 1789, por Lasius, e radica no alemão grauwacke, que significa pedra cinzenta.
- Migmatito – rocha ultrametamórfica, gerada por anatexia, de que resulta uma composição granitóide, na qual uma parte foi fundida e outra, mais refractária, permaneceu no estado sólido. Situa-se na passagem das rochas metamórficas da catazona (como é o gnaisse) ao granito franco.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

CENSURA E EDUCAÇÃO NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL DURANTE AS DITADURAS DE FRANCO E DE SALAZAR

A censura de livros para a infância e juventude tem um historial antiquíssimo e não há fronteiras físicas políticas, morais ou sociais que a detenham. O seu estudo é fundamental não apenas para a  compreender, mas também para lhe fazer frente. Se considerarmos que uma das funções da educação escolar é abrir (não fechar) janelas para o mundo, isso é nada menos do que fundamental.

Ramón Tena Fernández, Sara Reis da Silva e José Soto Vázquez, investigadores em Espanha e Portugal acabam de publicar uma obra, com edição da Universidade de Castilla La Mancha, sobre a censura que incidiu nesses livros em ambos os países durante a ditaduras de Franco e Salazar.
 
Passado que é o primeiro meio século desde o seu fim, são poucos os estudos sobre o tema concreto da literatura infanto-juvenil. Este livro constitui um contributo de grande valia para superar essa lacuna e, naturalmente, para incentivar a exploração de um tipo de censura particular. 
 
Nele se apresentam modos expeditos de controlo legislativo que permitiram o veto a livros, bem como temas que foram objecto primordial de atenção censória. São visados contos de fadas, banda desenhada, teatro, adaptações dos contos tradicionais... É que mais do que o género literário, era o conteúdo que importava (e continua a importar) aos censores. 

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

NO INÍCIO DO ANO ESCOLAR MAIS UM APELO PARA SE VOLTAR AO PAPEL E AO LÁPIS

No jornal Público de hoje foi publicada uma entrevista realizada por Andreia Sanches a um ex-ministro da educação da Suécia, país que cedo adoptou políticas de autarquização da educação escolar e de participação directa das famílias na mesma, bem como de digitalização da aprendizagem (ver, por exemplo, aqui). Mas foi também um dos países que cedo percebeu que, para manter a democracia, tinha de arrepiar caminho. Dado o grande interesse do que foi perguntado e respondido — ainda que não seja novo —, tomamos a liberdade de transcrever alguns passos do texto:

"Nos anos 1990, a Suécia era considerada um modelo em termos de Educação. Os seus alunos conseguiam lugares de destaque nas avaliações internacionais feitas regularmente pela OCDE. E várias das políticas que tornavam aquele país especial — transferência de poder para as comunidades locais, grande investimento no ensino independente, garantia da "liberdade de escolha" total às famílias — serviram de inspiração a outros. O país foi também pioneiro na digitalização da educação. As escolas foram equipadas com computadores e tablets. Livros de papel foram substituídos por manuais digitais. Mas, desde o início dos anos 2000, os resultados dos alunos começaram a piorar. Johan Pehrson, que foi ministro da Educação até Junho, sublinha que não foi só na Suécia. "Coincide com a entrada dos smartphones no mundo ocidental", e em especial na vida das gerações mais novas. E também na vida das escolas (...). 

Lembrou que, por detrás de cada aplicação nas redes sociais, há milhares de engenheiros a pensar como é que a vão tornar mais atraente para as crianças. E viciante. É por isso que a escola deve ser "uma zona livre" de smartphones e redes sociais. Mas é preciso mais.

É preciso assumir que se foi demasiado longe no uso de ecrãs nas escolas, e que, afirma, é mesmo preciso ter livros, físicos, para aprender. "Pensámos que quanto mais ecrãs, quanto mais plataformas digitais utilizássemos, melhor sistema educativo teríamos." Foi um erro, reconhece. Foi por isso que o Governo anunciou uma reforma que passa por "regressar ao essencial": ler, escrever, saber matemática, garantir calma e disciplina nas aulas... (...)

A Suécia tem muito medo de uma coisa: de não ser um país moderno. Pensámos que quanto mais ecrãs, quanto mais plataformas digitais utilizássemos, melhor sistema educativo teríamos (...). Estava errado. Estamos a voltar ao que é essencial, ao papel e à caneta, e aos livros em papel para os mais novos... Queremos ter engenheiros, os melhores e mais qualificados do mundo, queremos inteligência artificial (IA) e digitalização, mas isso é para a universidade e para depois da universidade (...).

Depois, as redes sociais estão a envenenar a geração mais jovem.

A escola é financiada pelo Estado, é o local onde as crianças de famílias desfavorecidas devem ter a oportunidade de se equipararem às outras crianças, porque a educação é a verdadeira ferramenta para tornar as pessoas independentes e prepará-las para o futuro (...). Também temos de trabalhar no sentido de os pais serem responsáveis para que as crianças tenham uma infância mais livre de smartphones. Esta era a minha visão enquanto ministro da Educação. Mas o Governo sueco continua nesta via, o que me deixa muito satisfeito (...). 

Tudo foi muito subsidiado pelas empresas tecnológicas (...) e havia uma enorme concorrência entre as duas maiores (...). Ofereceram muitas plataformas digitais, muitos computadores e ecrãs inteligentes, iPads ou similares. No início, argumentou-se que esta era uma forma de tornar o acesso a este tipo de tecnologias mais justo, porque também as crianças de famílias desfavorecidas podiam obter os seus equipamentos... Mas hoje em dia vê-se que é ao contrário, que os miúdos privilegiados têm pais que lhes tiram os smartphones e lhes põem um livro à frente e dizem: "Leiam!" (...).

É claro que se pode ter o equipamento e utilizá-lo na educação, mas tem de ter um valor acrescentado (...) no computador da escola, onde não há redes sociais e outras coisas a perturbar, e tem de haver os livros físicos, em cada disciplina (...).

Além disso, a criança deve poder ir para o pátio da escola no intervalo entre as aulas, deve encontrar-se com os seus colegas, deve discutir com eles, deve brincar, deve mexer-se para não ficar sentado, obeso e doente. É preciso conhecer pessoas, é uma forma de combater o bullying, de acabar com a solidão. Eu quero ter um dos países mais digitalizados do mundo, mas isso é para os adultos e as crianças aprenderam a usar a digitalização de forma sensata. Na Suécia, hoje, aos 15 anos, as crianças usam [ecrãs] seis horas por dia, não dormem. E não estão concentradas na sala de aula.

Depois, há 30 anos, começámos a ter um problema com aquilo a que chamamos as friskolor. Que são escolas independentes, que podem ser geridas por empresas privadas [ou fundações, ou cooperativas de pais] financiadas pelo Estado, para que os pais tenham liberdade total de escolha da escola para os seus filhos, seja pública ou privada.

O meu partido era muito favorável a isto (...) mas depois ficou demasiado desregulado e acabámos por ter um sistema escolar em que as grandes empresas ganham dinheiro com a educação, o que não é aceitável. A tendência é para reduzirem as bibliotecas, para reduzirem o equipamento necessário para fazer experiências (...). E há grandes diferenças [no investimento na educação] entre regiões (...) houve [com as escolas independentes] uma inflação das notas. Passou a ser um argumento para “vender” a escola: “Venham, porque aqui temos boas notas! Damos notas altas!"

(...) Houve aqui um cocktail negativo: o Estado entregou a educação a pequenos municípios sem capacidade (enquanto grandes municípios tiveram capacidade); houve demasiada liberdade dada a grandes empresas para gerir escolas como negócios (mas existem diferentes tipos de ONG, diferentes tipos de outros actores que não trabalham para ter lucro e têm uma boa reputação (...). 

O Estado tem de assumir mais controlo. E temos de voltar ao que é essencial. Não se aprende com um iPhone. E todas as pessoas que trabalham com crianças e estudam a forma como elas aprendem sabem que elas são muito vulneráveis, e é muito fácil ficarem muito viciadas.

A única forma de Portugal, a Suécia e todos os países semelhantes protegerem os seus valores (...) e manterem a democracia é concentrarmo-nos na educação".

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

APOROFOBIA

Amanhã começa um novo ano lectivo, pautado pela revisão da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (por Resolução do Conselho de Ministros n.º 127/2025, de 29 de agosto). Ainda que, como tenho dito neste blogue, esteja em desacordo com o destaque que nela é dado à "educação" financeira-empresarial (vindo de trás), a verdade é que as escolas (sobretudo nas pessoas dos seus directores e professores) têm autonomia para orientar a componente de Cidadania e Desenvolvimento em função dos valores que se encontram consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), constante nessa Estratégia como referência.

Mesmo que não se possa estabelecer uma relação directa entre o ensino desses valores e os efeitos desejáveis que pode ter na pessoa e na sociedade, no imediato e no futuro, não se pode também negar toda e qualquer relação, pelo que precisamos de continuar a pressupor que o trabalho curricular com base na Ética é nada menos do que fundamental.

Sem querer afirmar a ideia de que a escola tem de responder a necessidades prementes da sociedade, reconheço que, em nome do bem-comum, é sua obrigação ajudar a dirimir alguns problemas que a todos afectam. Um desses problemas, que volta para ensombrar os nossos dias, é a ameaça, em diversas frentes, à dignidade da pessoa, atentando directamente contra a democracia. 

A isto a escola pública não pode ficar indiferente. E, portanto, recusando o doutrinamento, recorrendo a "conhecimento poderoso", tem obrigação de promover a atitude de cidadania dos mais jovens. Se considerarmos, como a imprensa e resultados de eleições nos dão a ver, que a hostilização do outro que vemos como diferente está em crescendo, vale a pena oferecer aos alunos conceitos que possam ancorar essa atitude.

A minha sugestão vai, neste texto, para o conceito de aporofobia, apresentado pela filósofa espanhola Adela Cortina, no início dos anos de 1990, que deu título a um dos seus livros, tendo sido, em 2017, incluído no Dicionário da Língua Espanhola da Real Academia Espanhola e considerado, pela Fundação do Espanhol Urgente como palavra do ano.

Aporofobia provém de dois étimos gregos: áporos, que significa desamparado, miserável, indigente ou, simplesmente, pobre, e fobéo, que significa ter medo, rejeitar, hostilizar. Logo, designa a tendência de distanciamento daqueles a que se atribuem essas características. Diz Cortina que a palavra lhe surgiu ao perceber que os estrangeiros ricos e famosos tendem a ser bem acolhidos. Portanto, nem tudo pode ser explicado pela xenofobia.

A tendência aporofóbica percorre todas as épocas e lugares mas não sem contestação, o que tornou possível alicerçar as ideias de igualdade e de fraternidade, fixadas como valores éticos, no primeiro artigo da mencionada Declaração:

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.

Vale a pena ler uma entrevista à professora Cortina, catedrática emérita de Ética da Universidade de Valência, realizada por Irene Hernández Velasco uma vez que, lamentavelmente, nos quase cinco anos passados, não perdeu actualidade (aqui)

"Por que é importante que exista uma palavra para nomear o ódio aos sem-abrigo? Porque as pessoas precisam de dar nomes às coisas para reconhecer que elas existem e identificá-las; ainda mais se forem fenómenos sociais, não físicos, que não podem ser apontados com o dedo. Dar um nome à rejeição dos pobres permite visualizar essa patologia social, investigar as suas causas e decidir se concordamos que ela continue a crescer ou se estamos dispostos a desativá-la porque nos parece inadmissível.

A aporofobia é um fenómeno sobretudo dos nossos tempos, em que o sucesso e o dinheiro são concebidos por muitos como valores supremos? Infelizmente, sempre existiu, está no íntimo dos seres humanos, é uma tendência universal. O que acontece é que alguns modos de vida e algumas organizações políticas e económicas potenciam mais a rejeição aos pobres do que outros. Se nas nossas sociedades o sucesso, o dinheiro, a fama e o aplauso são os valores supremos, é praticamente impossível conseguir que se tratem todas as pessoas da mesma forma, que se reconheçam como seus iguais.

Como se manifesta a aporofobia na sociedade? Pode dar-nos alguns exemplos? Claro. Os imigrantes e refugiados são mal recebidos em todos os países, e alguns partidos políticos até ganham votos quando prometem fechar-lhes as portas. Tratamos com muito cuidado as pessoas que nos podem fazer favores, ajudar-nos a encontrar um emprego, ganhar eleições, apoiar-nos para conseguir um prémio e abandonamos aquelas que não nos podem dar nada disso. A sabedoria popular diz que é preciso trocar favores em provérbios como 'hoje por ti, amanhã por mim', e os pais costumam aconselhar os filhos a aproximarem-se das crianças em melhor situação. O bullying escolar é um exemplo de aporofobia (...).

De onde vem a aversão e o medo dos pobres, o que alimenta a aporofobia? É algo biológico, neuronal ou cultural? Para explicar com uma palavra bonita, é biocultural. A evolução do nosso cérebro e da nossa espécie é ao mesmo tempo biológica e cultural, ambas as dimensões estão entrelaçadas, influenciam-se reciprocamente. No caso da aporofobia, há uma base biológica, uma tendência para colocar entre parênteses aqueles que não interessam, a qual pode ser reforçada pela cultura, 
ou fragilizada se recorrermos a outras tendências, como a simpatia ou a compaixão.

Defende que a aporofobia é universal e que todos os seres humanos são aporofóbicos. Em que se baseia essa afirmação? No facto de que a antropologia evolutiva mostra que os seres humanos são animais recíprocos, dispostos a dar aos outros, desde que recebam algo em troca, seja da pessoa a quem deram, seja de outra em seu lugar. Esse mecanismo recebeu o nome de reciprocidade indireta e é a base biocultural das nossas sociedades contratuais, tanto políticas como económicas. Estamos dispostos a cumprir os nossos deveres se o Estado proteger os nossos direitos, estamos dispostos a cumprir os nossos contratos se os outros também o fizerem. Mas quando há pessoas que parecem não nos poder dar nada de importante em troca, excluímo-las desse jogo de dar e receber. Essas são as pessoas pobres, as excluídas.

As religiões têm tradicionalmente pregado em favor dos pobres. O catolicismo assegura, por exemplo, que deles será o reino dos céus (...). A crise das religiões está relacionada com a aporofobia? Mais do que crise das religiões, eu diria que, salvo exceções, vivemos em sociedades pós-seculares. Nelas, o poder político e o religioso não estão unidos, o que é excelente, porque assim o pluralismo é um facto, mas as religiões não desapareceram, continuando a ser uma fonte de vida e de sentido para muitas pessoas e para muitos grupos sociais. Até os seus valores, juntamente com outros, estão na raiz dos valores da ética cívica desses países. Quanto ao cristianismo, ele efetivamente aposta em todos os seres humanos e no cuidado da natureza, mas, por isso mesmo, num mundo em que há ricos e pobres, faz uma opção preferencial pelos pobres, exigindo que eles (...) possam sair da pobreza (...).

Considera que a rejeição dos pobres está por detrás da onda de xenofobia que assolou os Estados Unidos e a Europa nos últimos anos? E, se sim, porquê? Quando as situações políticas e económicas são más, procuram-se bodes expiatórios e os estrangeiros pobres são vítimas propícias. Fechar-lhes as portas, afirmar que são um perigo e defender os de dentro contra os de fora é a tática dos supremacistas. Mas, acima de tudo, contra os que são pobres (…) o supremacismo nacionalista rejeita os mais desfavorecidos e essa tática dá-lhes votos. No século XXI, devemos reverter essa tendência (…). A aporofobia atenta contra a democracia porque atenta contra a igualdade de dignidade de todas as pessoas, exclui os pobres, aqueles que parecem não ter nada para trocar. É radicalmente excludente, quando a democracia é inclusiva.

(...) Estamos conscientes de que somos aporofóbicos? Não estamos. Por isso, é preciso falar dessa patologia na esfera da opinião pública e tentar descobrir até que ponto está enraizada nas nossas vidas. Felizmente, há grupos a trabalhar nesse sentido, jovens que fazem os seus trabalhos de conclusão de curso, de mestrado e projetos de investigação sobre a aporofobia.

A aporofobia também se manifesta entre países? Os Estados mais ricos demonstram aversão aos mais pobres? (...). É claro que os países buscam a ajuda dos mais poderosos e isso explica, por exemplo, que se aproximem da China, esquecendo que ela não quer falar de direitos humanos. E no seio de cada país (...) existe a tendência para um afastamento dos mais desfavorecidos, para os tratar como leprosos no sentido bíblico da palavra.

Como se pode combater a aporofobia
? Tomando consciência de que ela existe e que não é apenas uma questão económica, mas sim a rejeição dos mais desfavorecidos em cada situação. Acho que se combate [afirmando] o igual valor das pessoas e educando no respeito pela dignidade de todas elas, e não apenas com palavras, mas mostrando na vida quotidiana que [somos] igualmente dignos." 

Vale também a pena ver uma entrevista conduzida por Juan Carlos Hervás, na qual Cortina afirma a enorme importância da educação na superação da aporofobia.



CINEMA EM ÉVORA, NOS ANOS 30 E 40

Por A. Galopim de Carvalho   Lembremos, porque nunca é demais saber, que a palavra “cinema” radica no grego, “kinema”, que quer dizer movime...