O que designei, em texto anterior, por "avaliação totalitária" (ver aqui) tem, de facto, o sentido que expliquei: avaliar tudo o que interessa, de modo contínuo e com envolvimento de todos os participantes, com recurso a critérios que se prendem com uma certa acepção de eficácia. Logo, essa avaliação não é neutra (de resto, nenhuma avaliação o é) pois decorre de escolhas que são previamente feitas: escolhe-se isto em vez daquilo.
EM NOME DA "QUALIDADE"
Trata-se de uma avaliação que é feita em nome da "qualidade" e das "boas práticas" (no sentido que lhe é dado no campo fabril, de potenciar os recursos e evitar o desperdício) e que admite uma mesma concretização, quer se reporte a sistemas sociais (como o judicial, de saúde ou educativo) quer se reporte a casas de banho das autoestradas.
É a avaliação que, em primeira instância, apela à "satisfação do cliente". O "cliente" é chamado e diz. Não precisa de saber nem de compreender, expressa o seu agrado ou desagrado, imediato e superficial, acerca do serviço que lhe foi prestado. Assinala-o numa escala tipo Lickert e escusa de justificar, mas se o quiser fazer está à vontade... Ah, sim, e não precisa de se identificar, o anonimato é o seu abrigo seguro.
Tudo isto leva o "cliente" a supor que tem poder, que a sua voz há-de ser processada e que dela advirão consequências. Dificilmente vislumbrará que aquilo que se lhe solicita recai sobre aspectos que interessam a quem tem, de facto, poder para conceber essa avaliação, a qual controla os mais diversos domínios da vida colectiva e pessoal.
NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR
Tendo as instituições de ensino superior adoptado uma lógica empresarial, solicitam aos seus "clientes" ("estudantes") que avaliem os serviços e as disciplinas ("unidades curriculares") que frequentam, solicitam que avaliem os serviços, as disciplinas que leccionam e, ainda, que se pronunciam sobre a avaliação que os estudantes fazem das mesmas. Para tanto, usam-se questionários online.
Se lermos a Lei (aqui e aqui), percebemos que os itens constantes nestes questionários correspondem directamente ao que nela está previsto e ao "espírito" que veicula. As instituições parecem limitar-se a operacionalizar e executar, por isso, tais itens (alguns deles iníquos) são muito parecidos de instituição para instituição.
Detenho-me em dois aspectos muito óbvios que, entre vários outros, distorcem esta avaliação.
Um aspecto é a dupla condição (de avaliador e de avaliado) que é conferida aos mesmos sujeitos. Se A avalia B e B avalia A, cria-se, mesmo que implicitamente, uma tensão entre ambos, procurando cada um geri-la em função das vantagens que possa retirar para si mesmo.
Outro aspecto, ligado ao anterior, é o desequilíbrio em termos de objectividade e responsabilidade, que se introduz na relação pedagógica. Quando se trata de avaliação sumativa, os professores têm (e bem) de atender aos regulamentos e normas da instituição (que são cada vez mais e mais pormenorizados), têm (e bem) de explicitar (no início do semestre/ano lectivo, por escrito) as opções para as "unidades curriculares" que leccionam, têm (e bem) de se guiar por critérios pertinentes e objectivos de classificação, têm (e bem) de corrigir com rigor de modo que os estudantes possam (caso queiram) perceber a sua prestação. Tudo isto é público e requer a assinatura dos professores. Por seu lado, aos alunos é solicitado que "se pronunciem" sobre o trabalho dos professores sem outro suporte que não seja as suas percepções e afins. E anonimamente.
Deixo o leitor com as palavras de Raquel Varela, uma das poucas pessoas, entre professores, que em Portugal tem trazido a debate este cenário muito mais complexo do que descrevi e que, no meu entender, arruína o ensino superior (ver aqui):
"Pode um aluno avaliar um professor? (...). É legal e legítima a avaliação anónima de docentes, e com as cores e os números com que se avalia num supermercado?
Faço uma declaração de interesses. Como aluna recusei-me, por escrito, a fazer avaliações anónimas, sempre. Como professora em qualquer instituição, e estive em várias, sou contra a figura anónima, seja do que for, avaliação, denúncia. É coisa de ditaduras (...).
Fiz duas ou três queixas na vida em serviços, inúteis, mas por escrito assinadas. E quando fui alvo de assédio moral pela direcção de uma instituição onde estava, escrevi uma carta, com cc para toda a direcção superior, relatando, assinando, e tinha um contrato precário (...). Era o que defendia com 18 anos e o que defendo com 46 anos.
O medo, de perder o emprego, ou ter conflitos, ou de ter más notas, não pode legitimar a bufaria e a cobardia, sob pena de vivermos numa sociedade onde não é possível viver (...).
A sua gravidade, porém, deixa a descoberto a Universidade neoliberal, e em geral a completa inversão da noção de educação e avaliação, que tomou conta das escolas públicas e também do ensino superior no mundo (sim, em todo o mundo neoliberal) (...).
É eticamente perigoso, incluindo para a saúde mental do próprio professor. Não é possível um aluno avaliar um professor (...).
As instituições de ensino devem ser espaços de conhecimento apaixonante? Ou pelo contrário empresas de venda de certificados, com notas inflaccionadas, ao sabor da delação e do medo? (...).
Assim, não se faz ciência, não se educa, não se promove o conhecimento. Trata-se de gestão pela ameaça. Deplorável."