domingo, 7 de setembro de 2025

SOBRE O GRANITO E A SUA ORIGEM, NUMA CONVERSA TERRA-A-TERRA.

Por A. Galopim de Carvalho

Paisagem granítica na Serra da Gardunha.
Já dissemos que não há um, mas sim, vários tipos de rochas a que o vulgo dá o nome de granito.

Deixando este tema para outras conversas, comecemos agora por dizer que o termo granito,Na imagem: paisagem granítica na Serra da Gardunha. em sentido restrito, designa uma rocha plutónica (gerada em profundidade, na crosta), granular, rica em sílica (mais de 70%), com quartzo essencial, expresso e abundante (20 a 40%), e feldspato alcalino (ortoclase, microclina, albite). Como mineral ferromagnesiano contém, geralmente, biotite, sendo raros os granitos com anfíbolas ou piroxenas. Entre os seus minerais acessórios, destacam-se moscovite, apatite, zircão e magnetite. Esta rocha corresponde ao que, numa linguagem mais rigorosa, se designa por “granito alcalino”. O termo granito, atribuído ao italiano Andrea Caesalpino, surgiu em 1596, e radica no latim granum, que significa grão.

Imagine o leitor uma paisagem como a do norte de Portugal, essencialmente formada por granitos, xistos argilosos e grauvaques, na margem ocidental da placa litosférica euroasiática, à beira de um oceano (o Atlântico) que a separa de uma outra placa (a Americana). Como é sabido, os agentes atmosféricos (a humidade, a água da chuva, o oxigénio e o dióxido de carbono do ar e as variações de temperatura) alteram (“apodrecem”) as rochas e é essa alteração, ou meteorização, que gera a capa superficial (rególito) que dá origem ao solo.

- E quais são os materiais desta capa de alteração e do respectivo solo? – Pergunta-se.

Restringindo a resposta ao local em questão, aos principais minerais destas rochas, e à situação climática que aqui exerce a sua influência, diremos que, no granito, o feldspato altera-se, transformando-se parcial e, de início, superficialmente, em argila. Alterando-se o feldspato, os restantes grãos minerais descolam-se uns dos outros e a rocha perde coesão (esboroa-se entre os dedos). Os grãos de biotite (uma mica contendo ferro) também se alteram e dessa alteração resulta o seu aspecto “enferrujado”, o que confere à rocha exposta as cores de castanho-amarelado, que contrasta com a cor da rocha sã, acabada de cortar. O quartzo não sofre qualquer alteração, o mesmo sucedendo à mica branca (moscovite) que apenas se divide em palhetas cada vez mais pequenas e delgadas. No xisto argiloso, que além de argila tem quartzo em grãos finíssimos, microscópicos (ao nível de poeiras), tem lugar a perda de coesão destes materiais. No grauvaque acontece outro tanto, com a libertação dos seus componentes arenosos (os mesmos do granito, mas muito mais finos).

Podemos agora dizer que os rególitos e os solos desta região de Portugal têm uma fracção arenosa com quartzo abundante, algum feldspato, micas e um fracção argilosa ou barrenta que faz o pó dos caminhos, em tempo seco, e a lama, em tempo de chuva. Podemos igualmente dizer que, quando chove com certa intensidade, as águas de escorrência arrastam estes materiais, com suficiente visibilidade na componente argilosa em suspensão. Isso vê-se frequentemente nas enxurradas, nas águas barrentas dos rios e, até, no mar, frente às fozes desses rios.

As pedras (cascalho) vão ficando, em parte, pelo caminho, outras atingem o litoral e não passam daí. As areias enchem as praias, as dunas e o fundo rochoso da plataforma continental. As areias mais finas e as argilas, incapazes de se depositarem em mar de pequena profundidade, constantemente agitado pela ondulação, progridem no sentido do largo, indo depositar-se na vertente continental (onde ficam em situação instável). As muitíssimo mais finas, essencialmente argilosas, vão imobilizar-se mais longe, no fundo oceânico. Sempre que, por exemplo, um sismo abala a região, os sedimentos em situação de depósito instável na vertente desprendem-se, indo decantar sobre os já acamados no dito fundo.

Imaginemos que este processo (alteração das rochas, erosão, transporte e acumulação no mar) se repete ao longo de milhões de anos e que dele resultam alguns milhares de metros de espessura deste tipo de sedimentos. Imaginemos, ainda, que o mesmo se passa do lado de lá do Atlântico.

A tectónica global ensina-nos que este oceano, como todos os outros, ao longo da história da Terra, irá fechar-se. Isso terá como resultado o encurtamento do espaço coberto pelos ditos sedimentos que, à semelhança de um papel que amarrotamos entre as mãos, sofrerão enrugamentos, com “dobras” que vêm para cima, formado novas montanhas, e outras que vão para baixo, formando as “raízes” dessas montanhas.

É sabido que a Terra conserva grandes quantidades de calor no seu interior e que a temperatura aumenta com a profundidade, o mesmo sucedendo com pressão (dita litostática). Assim, dos sedimentos envolvidos nas citadas “raízes”, os mais superficiais ficarão sujeitos a pressões e temperaturas relativamente baixas, sofrendo ligeiríssima transformação (anquimetamorfismo), dando origem a rochas na fronteira entre as sedimentares e as metamórficas, como são o xisto argiloso, o grauvaque e, um pouco mais abaixo, a ardósia. Continuando em profundidade, com o aumento da pressão e da temperatura, mas sempre com transformações no estado sólido, formar-se-ão outras rochas francamente metamórficas, de graus progressivamente mais elevados, expressas na sequência: filádios ou xistos luzentes (uma vez que a componente argilosa se transformou em minerais que têm brilhos característicos, ”luzentes”, como a sericite, a clorite ou o talco), xistos porfiroblásticos, micaxistos e, ainda mais abaixo, gnaisses (estes representando o grau mais elevado).

A profundidades na ordem dos 30 quilómetros, a temperatura pode atingir os 800oC, e a pressão ultrapassar as 4000 atmosferas. Neste ambiente e na presença de água (toda a contida na composição das argilas) terá lugar a fusão dos minerais menos refractários (quartzo e feldspatos). Entra-se aqui no domínio do chamado ultrametamorfismo e o processo toma o nome de anatexia (do grego aná, novo, e teptikós, fundido), ou palingénese (do grego pálin, de novo, e génesis, geração), dando origem a migmatitos.

Logo que a fusão seja total, entra-se no domínio do magmatismo, com a formação de um magma que, dados os materiais envolvidos, só pode ser de composição granítica, magma que, uma vez arrefecido e solidificado, gerará um novo granito.

A história acabada de descrever nesta espécie de antevisão é a que julgamos saber contar relativamente à que, há pouco mais de 300 milhões de anos, deu origem à orogenia hercínica ou varisca e ao granito, ao xisto e ao grauvaque que nela se geraram e que marcam a paisagem do norte de Portugal. Do mesmo modo, esta história conta a de todas as paisagens afins do planeta, desde as mais antigas, com mais de 4000 milhões de anos, às mais recentes com escassos milhões.

Relativamente ao granito, a mais importante rocha magmática que forma a “ossatura” dos continentes, sabemos que o primeiro resultou de um processo de diferenciação, lenta e complexa, de uma crosta primitiva, de natureza próxima da do basalto. Sabemos também que qualquer geração de granito tem, atrás de si, outro granito e que, muitos milhões e anos depois (400 a 500, em média), renascerá numa nova geração de granito.

Esta história é, afinal, a expressão (reconhecível ao nível das paisagens da Terra) do conhecido Ciclo de Wilson (do geólogo canadiano John Tuzo Wilson (1909-1993), relativo às sucessivas aberturas e fechos dos oceanos da Terra.

Notas:

- Grauvaque – rocha sedimentar arenítica e coesa, gerada nos grandes fundos marinhos, a par dos xistos argilosos. Contém, sobretudo, quartzo (20 a 50%), feldspatos e micas. O termo foi Introduzido na nomenclatura litológica, em 1789, por Lasius, e radica no alemão grauwacke, que significa pedra cinzenta.
- Migmatito – rocha ultrametamórfica, gerada por anatexia, de que resulta uma composição granitóide, na qual uma parte foi fundida e outra, mais refractária, permaneceu no estado sólido. Situa-se na passagem das rochas metamórficas da catazona (como é o gnaisse) ao granito franco.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

CENSURA E EDUCAÇÃO NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL DURANTE AS DITADURAS DE FRANCO E DE SALAZAR

A censura de livros para a infância e juventude tem um historial antiquíssimo e não há fronteiras físicas políticas, morais ou sociais que a detenham. O seu estudo é fundamental não apenas para a  compreender, mas também para lhe fazer frente. Se considerarmos que uma das funções da educação escolar é abrir (não fechar) janelas para o mundo, isso é nada menos do que fundamental.

Ramón Tena Fernández, Sara Reis da Silva e José Soto Vázquez, investigadores em Espanha e Portugal acabam de publicar uma obra, com edição da Universidade de Castilla La Mancha, sobre a censura que incidiu nesses livros em ambos os países durante a ditaduras de Franco e Salazar.
 
Passado que é o primeiro meio século desde o seu fim, são poucos os estudos sobre o tema concreto da literatura infanto-juvenil. Este livro constitui um contributo de grande valia para superar essa lacuna e, naturalmente, para incentivar a exploração de um tipo de censura particular. 
 
Nele se apresentam modos expeditos de controlo legislativo que permitiram o veto a livros, bem como temas que foram objecto primordial de atenção censória. São visados contos de fadas, banda desenhada, teatro, adaptações dos contos tradicionais... É que mais do que o género literário, era o conteúdo que importava (e continua a importar) aos censores. 

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

NO INÍCIO DO ANO ESCOLAR MAIS UM APELO PARA SE VOLTAR AO PAPEL E AO LÁPIS

No jornal Público de hoje foi publicada uma entrevista realizada por Andreia Sanches a um ex-ministro da educação da Suécia, país que cedo adoptou políticas de autarquização da educação escolar e de participação directa das famílias na mesma, bem como de digitalização da aprendizagem (ver, por exemplo, aqui). Mas foi também um dos países que cedo percebeu que, para manter a democracia, tinha de arrepiar caminho. Dado o grande interesse do que foi perguntado e respondido — ainda que não seja novo —, tomamos a liberdade de transcrever alguns passos do texto:

"Nos anos 1990, a Suécia era considerada um modelo em termos de Educação. Os seus alunos conseguiam lugares de destaque nas avaliações internacionais feitas regularmente pela OCDE. E várias das políticas que tornavam aquele país especial — transferência de poder para as comunidades locais, grande investimento no ensino independente, garantia da "liberdade de escolha" total às famílias — serviram de inspiração a outros. O país foi também pioneiro na digitalização da educação. As escolas foram equipadas com computadores e tablets. Livros de papel foram substituídos por manuais digitais. Mas, desde o início dos anos 2000, os resultados dos alunos começaram a piorar. Johan Pehrson, que foi ministro da Educação até Junho, sublinha que não foi só na Suécia. "Coincide com a entrada dos smartphones no mundo ocidental", e em especial na vida das gerações mais novas. E também na vida das escolas (...). 

Lembrou que, por detrás de cada aplicação nas redes sociais, há milhares de engenheiros a pensar como é que a vão tornar mais atraente para as crianças. E viciante. É por isso que a escola deve ser "uma zona livre" de smartphones e redes sociais. Mas é preciso mais.

É preciso assumir que se foi demasiado longe no uso de ecrãs nas escolas, e que, afirma, é mesmo preciso ter livros, físicos, para aprender. "Pensámos que quanto mais ecrãs, quanto mais plataformas digitais utilizássemos, melhor sistema educativo teríamos." Foi um erro, reconhece. Foi por isso que o Governo anunciou uma reforma que passa por "regressar ao essencial": ler, escrever, saber matemática, garantir calma e disciplina nas aulas... (...)

A Suécia tem muito medo de uma coisa: de não ser um país moderno. Pensámos que quanto mais ecrãs, quanto mais plataformas digitais utilizássemos, melhor sistema educativo teríamos (...). Estava errado. Estamos a voltar ao que é essencial, ao papel e à caneta, e aos livros em papel para os mais novos... Queremos ter engenheiros, os melhores e mais qualificados do mundo, queremos inteligência artificial (IA) e digitalização, mas isso é para a universidade e para depois da universidade (...).

Depois, as redes sociais estão a envenenar a geração mais jovem.

A escola é financiada pelo Estado, é o local onde as crianças de famílias desfavorecidas devem ter a oportunidade de se equipararem às outras crianças, porque a educação é a verdadeira ferramenta para tornar as pessoas independentes e prepará-las para o futuro (...). Também temos de trabalhar no sentido de os pais serem responsáveis para que as crianças tenham uma infância mais livre de smartphones. Esta era a minha visão enquanto ministro da Educação. Mas o Governo sueco continua nesta via, o que me deixa muito satisfeito (...). 

Tudo foi muito subsidiado pelas empresas tecnológicas (...) e havia uma enorme concorrência entre as duas maiores (...). Ofereceram muitas plataformas digitais, muitos computadores e ecrãs inteligentes, iPads ou similares. No início, argumentou-se que esta era uma forma de tornar o acesso a este tipo de tecnologias mais justo, porque também as crianças de famílias desfavorecidas podiam obter os seus equipamentos... Mas hoje em dia vê-se que é ao contrário, que os miúdos privilegiados têm pais que lhes tiram os smartphones e lhes põem um livro à frente e dizem: "Leiam!" (...).

É claro que se pode ter o equipamento e utilizá-lo na educação, mas tem de ter um valor acrescentado (...) no computador da escola, onde não há redes sociais e outras coisas a perturbar, e tem de haver os livros físicos, em cada disciplina (...).

Além disso, a criança deve poder ir para o pátio da escola no intervalo entre as aulas, deve encontrar-se com os seus colegas, deve discutir com eles, deve brincar, deve mexer-se para não ficar sentado, obeso e doente. É preciso conhecer pessoas, é uma forma de combater o bullying, de acabar com a solidão. Eu quero ter um dos países mais digitalizados do mundo, mas isso é para os adultos e as crianças aprenderam a usar a digitalização de forma sensata. Na Suécia, hoje, aos 15 anos, as crianças usam [ecrãs] seis horas por dia, não dormem. E não estão concentradas na sala de aula.

Depois, há 30 anos, começámos a ter um problema com aquilo a que chamamos as friskolor. Que são escolas independentes, que podem ser geridas por empresas privadas [ou fundações, ou cooperativas de pais] financiadas pelo Estado, para que os pais tenham liberdade total de escolha da escola para os seus filhos, seja pública ou privada.

O meu partido era muito favorável a isto (...) mas depois ficou demasiado desregulado e acabámos por ter um sistema escolar em que as grandes empresas ganham dinheiro com a educação, o que não é aceitável. A tendência é para reduzirem as bibliotecas, para reduzirem o equipamento necessário para fazer experiências (...). E há grandes diferenças [no investimento na educação] entre regiões (...) houve [com as escolas independentes] uma inflação das notas. Passou a ser um argumento para “vender” a escola: “Venham, porque aqui temos boas notas! Damos notas altas!"

(...) Houve aqui um cocktail negativo: o Estado entregou a educação a pequenos municípios sem capacidade (enquanto grandes municípios tiveram capacidade); houve demasiada liberdade dada a grandes empresas para gerir escolas como negócios (mas existem diferentes tipos de ONG, diferentes tipos de outros actores que não trabalham para ter lucro e têm uma boa reputação (...). 

O Estado tem de assumir mais controlo. E temos de voltar ao que é essencial. Não se aprende com um iPhone. E todas as pessoas que trabalham com crianças e estudam a forma como elas aprendem sabem que elas são muito vulneráveis, e é muito fácil ficarem muito viciadas.

A única forma de Portugal, a Suécia e todos os países semelhantes protegerem os seus valores (...) e manterem a democracia é concentrarmo-nos na educação".

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

APOROFOBIA

Amanhã começa um novo ano lectivo, pautado pela revisão da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (por Resolução do Conselho de Ministros n.º 127/2025, de 29 de agosto). Ainda que, como tenho dito neste blogue, esteja em desacordo com o destaque que nela é dado à "educação" financeira-empresarial (vindo de trás), a verdade é que as escolas (sobretudo nas pessoas dos seus directores e professores) têm autonomia para orientar a componente de Cidadania e Desenvolvimento em função dos valores que se encontram consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), constante nessa Estratégia como referência.

Mesmo que não se possa estabelecer uma relação directa entre o ensino desses valores e os efeitos desejáveis que pode ter na pessoa e na sociedade, no imediato e no futuro, não se pode também negar toda e qualquer relação, pelo que precisamos de continuar a pressupor que o trabalho curricular com base na Ética é nada menos do que fundamental.

Sem querer afirmar a ideia de que a escola tem de responder a necessidades prementes da sociedade, reconheço que, em nome do bem-comum, é sua obrigação ajudar a dirimir alguns problemas que a todos afectam. Um desses problemas, que volta para ensombrar os nossos dias, é a ameaça, em diversas frentes, à dignidade da pessoa, atentando directamente contra a democracia. 

A isto a escola pública não pode ficar indiferente. E, portanto, recusando o doutrinamento, recorrendo a "conhecimento poderoso", tem obrigação de promover a atitude de cidadania dos mais jovens. Se considerarmos, como a imprensa e resultados de eleições nos dão a ver, que a hostilização do outro que vemos como diferente está em crescendo, vale a pena oferecer aos alunos conceitos que possam ancorar essa atitude.

A minha sugestão vai, neste texto, para o conceito de aporofobia, apresentado pela filósofa espanhola Adela Cortina, no início dos anos de 1990, que deu título a um dos seus livros, tendo sido, em 2017, incluído no Dicionário da Língua Espanhola da Real Academia Espanhola e considerado, pela Fundação do Espanhol Urgente como palavra do ano.

Aporofobia provém de dois étimos gregos: áporos, que significa desamparado, miserável, indigente ou, simplesmente, pobre, e fobéo, que significa ter medo, rejeitar, hostilizar. Logo, designa a tendência de distanciamento daqueles a que se atribuem essas características. Diz Cortina que a palavra lhe surgiu ao perceber que os estrangeiros ricos e famosos tendem a ser bem acolhidos. Portanto, nem tudo pode ser explicado pela xenofobia.

A tendência aporofóbica percorre todas as épocas e lugares mas não sem contestação, o que tornou possível alicerçar as ideias de igualdade e de fraternidade, fixadas como valores éticos, no primeiro artigo da mencionada Declaração:

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.

Vale a pena ler uma entrevista à professora Cortina, catedrática emérita de Ética da Universidade de Valência, realizada por Irene Hernández Velasco uma vez que, lamentavelmente, nos quase cinco anos passados, não perdeu actualidade (aqui)

"Por que é importante que exista uma palavra para nomear o ódio aos sem-abrigo? Porque as pessoas precisam de dar nomes às coisas para reconhecer que elas existem e identificá-las; ainda mais se forem fenómenos sociais, não físicos, que não podem ser apontados com o dedo. Dar um nome à rejeição dos pobres permite visualizar essa patologia social, investigar as suas causas e decidir se concordamos que ela continue a crescer ou se estamos dispostos a desativá-la porque nos parece inadmissível.

A aporofobia é um fenómeno sobretudo dos nossos tempos, em que o sucesso e o dinheiro são concebidos por muitos como valores supremos? Infelizmente, sempre existiu, está no íntimo dos seres humanos, é uma tendência universal. O que acontece é que alguns modos de vida e algumas organizações políticas e económicas potenciam mais a rejeição aos pobres do que outros. Se nas nossas sociedades o sucesso, o dinheiro, a fama e o aplauso são os valores supremos, é praticamente impossível conseguir que se tratem todas as pessoas da mesma forma, que se reconheçam como seus iguais.

Como se manifesta a aporofobia na sociedade? Pode dar-nos alguns exemplos? Claro. Os imigrantes e refugiados são mal recebidos em todos os países, e alguns partidos políticos até ganham votos quando prometem fechar-lhes as portas. Tratamos com muito cuidado as pessoas que nos podem fazer favores, ajudar-nos a encontrar um emprego, ganhar eleições, apoiar-nos para conseguir um prémio e abandonamos aquelas que não nos podem dar nada disso. A sabedoria popular diz que é preciso trocar favores em provérbios como 'hoje por ti, amanhã por mim', e os pais costumam aconselhar os filhos a aproximarem-se das crianças em melhor situação. O bullying escolar é um exemplo de aporofobia (...).

De onde vem a aversão e o medo dos pobres, o que alimenta a aporofobia? É algo biológico, neuronal ou cultural? Para explicar com uma palavra bonita, é biocultural. A evolução do nosso cérebro e da nossa espécie é ao mesmo tempo biológica e cultural, ambas as dimensões estão entrelaçadas, influenciam-se reciprocamente. No caso da aporofobia, há uma base biológica, uma tendência para colocar entre parênteses aqueles que não interessam, a qual pode ser reforçada pela cultura, 
ou fragilizada se recorrermos a outras tendências, como a simpatia ou a compaixão.

Defende que a aporofobia é universal e que todos os seres humanos são aporofóbicos. Em que se baseia essa afirmação? No facto de que a antropologia evolutiva mostra que os seres humanos são animais recíprocos, dispostos a dar aos outros, desde que recebam algo em troca, seja da pessoa a quem deram, seja de outra em seu lugar. Esse mecanismo recebeu o nome de reciprocidade indireta e é a base biocultural das nossas sociedades contratuais, tanto políticas como económicas. Estamos dispostos a cumprir os nossos deveres se o Estado proteger os nossos direitos, estamos dispostos a cumprir os nossos contratos se os outros também o fizerem. Mas quando há pessoas que parecem não nos poder dar nada de importante em troca, excluímo-las desse jogo de dar e receber. Essas são as pessoas pobres, as excluídas.

As religiões têm tradicionalmente pregado em favor dos pobres. O catolicismo assegura, por exemplo, que deles será o reino dos céus (...). A crise das religiões está relacionada com a aporofobia? Mais do que crise das religiões, eu diria que, salvo exceções, vivemos em sociedades pós-seculares. Nelas, o poder político e o religioso não estão unidos, o que é excelente, porque assim o pluralismo é um facto, mas as religiões não desapareceram, continuando a ser uma fonte de vida e de sentido para muitas pessoas e para muitos grupos sociais. Até os seus valores, juntamente com outros, estão na raiz dos valores da ética cívica desses países. Quanto ao cristianismo, ele efetivamente aposta em todos os seres humanos e no cuidado da natureza, mas, por isso mesmo, num mundo em que há ricos e pobres, faz uma opção preferencial pelos pobres, exigindo que eles (...) possam sair da pobreza (...).

Considera que a rejeição dos pobres está por detrás da onda de xenofobia que assolou os Estados Unidos e a Europa nos últimos anos? E, se sim, porquê? Quando as situações políticas e económicas são más, procuram-se bodes expiatórios e os estrangeiros pobres são vítimas propícias. Fechar-lhes as portas, afirmar que são um perigo e defender os de dentro contra os de fora é a tática dos supremacistas. Mas, acima de tudo, contra os que são pobres (…) o supremacismo nacionalista rejeita os mais desfavorecidos e essa tática dá-lhes votos. No século XXI, devemos reverter essa tendência (…). A aporofobia atenta contra a democracia porque atenta contra a igualdade de dignidade de todas as pessoas, exclui os pobres, aqueles que parecem não ter nada para trocar. É radicalmente excludente, quando a democracia é inclusiva.

(...) Estamos conscientes de que somos aporofóbicos? Não estamos. Por isso, é preciso falar dessa patologia na esfera da opinião pública e tentar descobrir até que ponto está enraizada nas nossas vidas. Felizmente, há grupos a trabalhar nesse sentido, jovens que fazem os seus trabalhos de conclusão de curso, de mestrado e projetos de investigação sobre a aporofobia.

A aporofobia também se manifesta entre países? Os Estados mais ricos demonstram aversão aos mais pobres? (...). É claro que os países buscam a ajuda dos mais poderosos e isso explica, por exemplo, que se aproximem da China, esquecendo que ela não quer falar de direitos humanos. E no seio de cada país (...) existe a tendência para um afastamento dos mais desfavorecidos, para os tratar como leprosos no sentido bíblico da palavra.

Como se pode combater a aporofobia
? Tomando consciência de que ela existe e que não é apenas uma questão económica, mas sim a rejeição dos mais desfavorecidos em cada situação. Acho que se combate [afirmando] o igual valor das pessoas e educando no respeito pela dignidade de todas elas, e não apenas com palavras, mas mostrando na vida quotidiana que [somos] igualmente dignos." 

Vale também a pena ver uma entrevista conduzida por Juan Carlos Hervás, na qual Cortina afirma a enorme importância da educação na superação da aporofobia.



domingo, 17 de agosto de 2025

O FERRO

Por A. Galopim de Carvalho

(in "Nós e as Pedras", em preparação)

O ferro (Fe), do latim "ferrum", com o mesmo significado, é um elemento químico metálico bem representado na Terra, abundante no núcleo, menos abundante no manto, menos ainda, mas suficientemente significativo (5%), na crosta. Tido por um dos pilares das sociedades envolvidas na Revolução Industrial, iniciada em Inglaterra, no século XVIII é um dos metais mais utilizados na sociedade humana, desde a Pré-história, tendo dado nome (Idade do Ferro) aos últimos tempos deste longo período da história do Homem, com início há cerca de 1200 a. C.

De cor cinzenta-prateada, em superfície acabada de cortar, oxida facilmente, na presença do oxigénio do ar e, sobretudo, em ambiente húmido, formando ferrugem. É maleável e dúctil e tem boa condutividade térmica e elétrica.
 
É o principal componente do aço (liga de ferro com carbono) e o seu uso está em toda a parte, do mais simples e minúsculo prego, à mais importante viga em uso na construção civil. Está nos mais variados tipos e tamanho de motores, carrocerias e múltiplos equipamentos industriais e domésticos, entre agulhas de costurar, tesouras, grelhas do fogão e outras. Está nos carris dos muitos milhares de ferrovias que atravessam países de todo mundo, em máquinas e ferramentas de todas as indústrias e, até, em nós, como componente fundamental da hemoglobina, a proteína do sangue que transporta oxigénio, dando vida a todos os recantos do corpo. Fundamental à nossa existência, encontramo-lo, sobretudo, nas carnes vermelhas, fígado, leguminosas (feijão, lentilha), vegetais verde-escuros, com destaque para os espinafres.

O ferro, na Natureza, está presente em três óxidos (hematite, magnetite e goethite), num carbonato (siderite), dois sulfuretos (pirite e calcopirite) e diversos silicatos, entre biotite, anfíbolas, piroxenas e olivinas, apelidados, em conjunto, por ferromagnesianos. Hematite (Fe₂O₃), um dos mais importantes dos seus minérios. A palavra vem do grego "haimatités", que significa "pedra de sangue", com raiz no termo "haima", que significa sangue. Utilizada como pigmento natural, conhecida como ocre vermelho. A variedade com brilho metálico tem o nome de especularite, do latim "speculum", que signific espelho.

Magnetite (Fe₃O₄), igualmente importante, foi um dos primeiros minerais observados com propriedades magnéticas naturais. Os gregos notaram esse comportamento nas "magnetis lithos" ou pedras da Magnésia, uma área da Grécia antiga (na Tessália), conhecida pela existência de pedras com propriedade de atraírem objectos de ferro.

Goethite (FeO(OH)) é um hidróxido e um dos minerais de ferro mais comuns à superfície Terra, geralmente formado por meteorização de outros minerais ricos em ferro. Ocorre geralmente em solos e crostas ferruginosas, sendo de destacar o chamado (ferro dos pântanos) de origem sedimentar, bem exemplificado em "la minette" (diminutivo de "mine", em francês) o minério de ferro da Lorena, no noroeste da França, de baixo teor. Utilizada como pigmento natural, conhecida como “ocre castanho” e tem interesse científico em áreas como paleoclimatologia e ciência do solo, por fornecer pistas sobre o ambiente de formação. O nome goethite é uma homenagem ao escritor e pensador alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1833), um importante autodidacta em mineralogia.

Limonite não é um mineral, é um termo genérico usado para designar uma mistura de hidróxidos de ferro, como goetite e lepidocrocite e, por vezes, argila, de cor amarelada a acastanhada. O nome radica no grego "leimon", que significa pântano. Isto porque a limonite é própria deste tipo ambientes húmidos, onde se forma como produto de alteração de minerais ricos em ferro.

Siderite (FeCO₃), o carbonato de ferro natural, é uma importante fonte de ferro, embora não tão tanto quanto a hematite ou a magnetite. Ocorre em filões hidrotermais de baixa temperatura e em depósito sedimentares, sendo comum nas formações ferríferas bandadas (Banded Iron Formations, BIFs). O nome vem do grego "sideros", que significa ferro.

Minerais ferromagnesianos são silicatos que contêm quantidades significativas de ferro (Fe) e magnésio (Mg). São, em geral, escuros, densos e têm elevada importância geológica, pois fazem parte da composição de muitas rochas ígneas e metamórficas, sendo essenciais para a compreensão da evolução magmática e da classificação das respectivas rochas.

Entre os principais silicatos ferromagnesianos destacam-se: olivina, comum em rochas máficas e ultramáficas; piroxenas (como a augite), importantes em rochas basálticas e gabros; anfíbolas (como a hornblenda), presentes em rochas como o anfibolito e o diorito; Biotite, mica preta, comum em granitos e gnaisses

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

ÚLTIMO I


 Tenho saudades do I, agora que já não se publica. Durante mais de um ano fiz longas críticas de livros (duas páginas) para esse jornal. Dei algumas entrevistas longas ou curtos depoimentos. A última entrevista foi sobre ciência e religião  dada a Diana Gomes (transcrevo em baixo, com receio que morra o arquivo digital do I). Paz à alma do I, que parece vai ter uma reencarnação como revista do Sol.


O físico Carlos Fiolhais diz que sim. Nesta entrevista exploramos as fronteiras entre ciência e religião, a figura histórica de Jesus Cristo e o lugar da fé no século XXI. 

DG-  É possível ser simultaneamente um cientista e um crente? 

CF- Sim, são inúmeros os exemplos de cientistas crentes. Há até cientistas que são padres ou pastores. Por exemplo, o padre belga George Lemaître foi não apenas um físico amigo de Einstein, mas também o autor da teoria do Big Bang. Lemaître era um sacerdote católico, mas, na Igreja Anglicana, John Polkinghorne, também já falecido, era não só físico teórico, como pastor e teólogo. Em Portugal, o professor de Física do Técnico João Resina era um padre com uma paróquia a seu cargo. E o padre jesuíta Luís Archer foi o introdutor da moderna genética entre nós. Na história da ciência há uma longa lista de jesuítas ativos na ciência: em Portugal foram jesuítas que introduziram o microscópio, inventado por Galileu em 1609, e que o transferiram para o Oriente, em particular para a China, onde dirigiram um observatório astronómico. Ainda hoje o Vaticano tem um Observatório Astronómico, com um bom telescópio, no Arizona, EUA, dirigido por um jesuíta. O Papa Francisco, que é jesuíta, tem formação na área da Química, tendo trabalhado num laboratório de análises. É o autor de uma encíclica (Laudatio Se) bem informada pela ciência. De facto, a ciência baseia-se em factos, mas também aí podemos falar de crenças, crenças justificadas com base no método científico, ao passo que a fé assenta em crenças que não são abonadas pelo esse método. O Padre Lemaître escreveu: “Os meios de investigação de um cientista crente são os mesmos que os do seu colega não-crente. Num certo sentido, o investigador abstrai-se da sua fé na sua investigação. Ele faz isso não porque a sua fé lhe poderia causar dificuldades, mas sim porque ela não tem diretamente nada a ver com a sua atividade científica. Afinal, um cristão não age de forma diferente do que qualquer não-crente, quando se trata de caminhar ou de correr”. 

DG-  Como vê a relação entre fé e ciência no século XXI? Ainda há um conflito irreconciliável? 

CF- Fé e ciência podem coexistir. Sendo diferentes dimensões do ser humano, no meu entender, podem e devem coexistir pacificamente. Podem até colaborar, desde que cada uma não se queira substituir à outra, dominando-a ou excluindo-a. Há questões que a ciência pode responder com o método que lhe é próprio, outras que não pode. Por exemplo, sobre o próprio fenómeno da crença religiosa a ciência pode dizer umas coisas – é o que fazem as neurociências, a biologia evolutiva, etc.– , mas ficam aquém da compreensão da religiosidade do homem. O homem é um animal religioso. Mais de 80% dos habitantes da Terra reconhecem-se como crentes e mesmo entre os outros podemos falar de espiritualidade, ainda que esta possa ser difusa e difícil de definir. A fama do conflito talvez venha do caso Galileu, mas ocorreu em 1633 e a Igreja Católica, embora tardiamente e com palavras cuidadas, já reconheceu o seu erro. 

DG-  Na Páscoa celebra-se a ressurreição, que é, por definição, um milagre – algo que contraria as leis naturais. 

CF- A ciência deve tentar explicar o inexplicável ou aceitar que há territórios que lhe são vedados? A ciência pode e deve tentar o inexplicável que está ao seu alcance. Mas não pode – e por isso também não deve – responder a todas as questões. Para alguns crentes, milagres são interrupções locais e transitórias das leis naturais. Nesse sentido, os cientistas dizem que não há milagres. Há coisas na Natureza por explicar, mas os cientistas partem do princípio que poderão vir a ser explicadas com base nas leis conhecidas ou com base em novas leis. A teologia católica liga os milagres a sinais de Deus. Trata-se de uma interpretação, que parte de uma crença num Ser omnipotente. Há muitas subtilezas no assunto. Mas julgo que a Igreja já não lê a Bíblia literalmente. A Bíblia é um livro de fé e não de ciência. O objetivo da ciência não é procurar Deus: Deus não se encontra com um telescópio, um microscópio ou um acelerador de partículas. Não existem provas científicas da existência ou da não existência de Deus. O conteúdo de livros como um recente, de dois leigos franceses (tanto em ciência como em religião), intitulado “Deus. A ciência e as provas”, é um completo equívoco. As convicções da fé seriam até muito fracas se pudessem ser abaladas por uma qualquer observação ou experiência científicas. A força da ciência reside bastante na sua universalidade: ela une pessoas de diferentes credos religiosos. 

DG-  Como cientista, como encara os relatos de milagres atribuídos a Jesus? 

CF- Da mesma maneira que encaro quaisquer outros milagres. As narrativas de milagres são bem anteriores a Jesus Cristo e continuaram, depois dele, até aos nossos dias. Com todo o respeito pelos crentes que acreditam em milagres, eu, que fui educado e vivo numa cultura católica, não acredito em milagres. Não acredito num Deus omnipotente que fala connosco por meio desses ou doutros sinais, mas, com certeza, Jesus Cristo foi uma figura histórica bem real, que deixou uma marca relevantíssima no mundo, da qual somos herdeiros. Herdeiro ele próprio do judaísmo, é o autor de uma revolução moral. As frases que lhe são atribuídas são para mim mais extraordinárias do que os milagres. Por exemplo, a frase que encontramos no Evangelho de São João: ‘Amai-vos uns aos outros’, que está na base da referida ‘revolução moral’. Ou a frase, que encontramos em São Mateus: ‘Bem-aventurados os pobres em espírito, porque é deles o Reino dos Céus’. É curioso o que Einstein – o físico de origem judaica mas não crente (nunca entrou numa sinagoga para rezar) – disse sobre a figura histórica de Jesus Cristo: ‘Ninguém pode ler os Evangelhos sem sentir a presença real de Jesus. A sua personalidade pulsa em cada palavra. Nenhum mito está preenchido com tanta vida’.

DG- Qual é o papel da historiografia crítica – como a do Jesus Seminar, por exemplo– na nossa perceção atual de Jesus?

CF-  Não é fácil fazer esse tipo de historiografia. O Jesus Seminar, fundado pelo estudioso norte-americano Robert Funk, é um dos grupos que se abalança a essa tarefa. A história de Jesus, como qualquer outro trabalho histórico, nunca estará terminada. Pode sempre haver novos dados ou novas interpretações com base nos dados existentes. 

DG- Qual é o papel do ensino da ciência na construção de um pensamento crítico sobre religião? 

CF- O ensino da ciência é parte essencial da moderna cidadania. Transmite-nos não apenas um conjunto de factos, conceitos articulados em teoria, mas sobretudo um método que nos permite obter um certo conhecimento do mundo e, portanto, também de nós próprios. A escola está muito habituada a transmitir “conteúdos” e nem sempre transmite bem o método – o ceticismo, o espírito crítico, o rigor metodológico – que nos permite descartar erros e chegar ao que podemos chamar verdades provisórias. Os cientistas exercem o espírito crítico ao mais alto grau, mas essa sua atitude pode ser útil na vida quotidiana. A ciência está longe de ser tudo na vida. Mas o espírito critico que a ciência usa pode usar-se também fora da ciência, incluindo no estudo da religião. Os estudos teológicos devem não só estar informados pela ciência como usar a racionalidade na medida do possível. Sei que hoje vivemos num mundo largamente dominado pela irracionalidade, mas penso que a racionalidade continua a ser a maior marca da nossa espécie: o Homo Sapiens

DG- . Se Jesus Cristo vivesse hoje, como reagiria à ciência moderna, à física quântica, à inteligência artificial ou à genética? 

CF- Não sei, francamente. Isso é história virtual. Mas Jesus Cristo foi revolucionário no seu tempo. Seria revolucionário em qualquer tempo. 

DG-  Podemos pensar em Jesus Cristo como um “cientista” do seu tempo, no sentido em que desafiava o conhecimento estabelecido?

CF-  Não. Chamar cientista a Jesus Cristo é um abuso de linguagem. A ciência moderna não existia no seu tempo. E os seus ensinamentos, como o ‘Amai-vos uns aos outros’, não são do domínio da ciência, mas da moral. De resto, os cientistas não são os únicos a desafiar o pensamento estabelecido. Podem ser também historiadores, políticos, filósofos, teólogos, etc. Algumas seitas religiosas invocam o nome da ciência, mas de um modo vazio. Por exemplo, um japonês criou em 1986 uma seita chamada ‘Happy Science’, que antes de ser um movimento religioso chamava-se Instituto de Investigação da Felicidade Humana. Acho que é um meio de enganar as pessoas. Basta dizer que o dito líder reclama ser uma reincarnação de uma divindade de Vénus. Em Vénus faz demasiado calor para poder ter lá antepassados…

ENTREVISTA QUE O DAVID MARÇAL E EU DEMOS A «NOVOS LIVROS» (J. A. NUNES CARNEIRO) SOBRE O NOSSO LIVRO «PIPOCAS COM TELEMOVEL«

 


P-Qual a ideia que esteve na origem deste vosso livro "Pipocas com Telemóvel e outras histórias de falsa ciência"?

    R-A ideia foi falar de falsa ciência. Discutir ideias, produtos e serviços que dizem basear-se no conhecimento científico, não sendo isso verdade. A ciência tem credibilidade e muita gente usa-a para vender  banha da cobra. As estratégias mais comuns da falsa ciência são as figuras de autoridade e a linguagem aparentemente científica. Ou seja, alguém que se apresenta como uma pessoa muito importante e sábia e que usa palavras do léxico científico, como "quântica", "campos", "energia", etc. Só que essas são no contexto palavras vazias, sem qualquer significado, ditas só para impressionar. E a ciência não depende da palavra de gurus, mas sim de provas. No nosso livro falamos de ciência: não se pode dizer que algo não é ciência sem discutirmos as características da ciência. 

 NL-O livro vai na sua 9ª edição: a que se deve este tão grande êxito editorial?

R- Provavelmente porque escolhemos exemplos próximos do quotidiano das pessoas. Falamos de falsa ciência na internet, no supermercado, nos jornais, na saúde e até mesmo nas universidades (caso das fraudes científicas). E também porque tentamos ter alguma graça. Nós pelo menos achamos piada a algumas coisas que escrevemos, embora não saibamos se a maioria dos leitores concorda!

NL-O estilo e a abordagem de contadores de histórias que utilizam pode ser uma das razões para o sucesso dos vossos livros?

R- O livro é um conjunto de histórias encadeadas, mas cada uma delas tem uma certa autonomia. Nessas histórias fazemos ligações a muitas coisas para além da ciência. Isso torna a leitura do livro fácil. Por exemplo, pode-se ler numa ordem diferente daquela que resulta da sucessão de páginas, consoante os temas que mais interessam ao leitor.

     NL-Na era das poluídas redes sociais, que espaço pode a ciência reivindicar junto dos leitores jovens (e menos jovens)?

R- O espaço próprio dos livros, que é do pensamento aprofundado, não é possível noutros meios como as redes sociais. Certamente que um livro não chega a tanta gente como um vídeo viral de 30 segundos, mas o seu impacto em quem o lê é certamente superior. Seria desejável que o número de leitores, do nosso e de outros livros, fosse maior. Há que promover a leitura, procurando chegar a mais gente..


    NL-Pergunta prática: como podemos proteger-nos da falsa ciência que se propaga pela Internet (e não só nas redes sociais)?

R-A resposta é simples de enunciar: tendo mais cultura científica. Sabendo distinguir melhor a ciência da falsa ciência. E isso significa saber o que é a ciência: como acrescentamos novo conhecimento ao que já temos. Claro que promover a cultura científica é um grande desafio. Mas tal não é razão para desistirmos!

     NL-Nos dias de hoje, o interesse pela ciência estará a crescer?

R-O interesse pela ciência existe. Todos os grandes desafios do nosso tempo precisam da ciência. Desde o combate às alterações climáticas até à compreensão do fenómeno das redes sociais. Para vivermos mais e  melhor precisamos de ciência e tecnologia. A curiosidade é uma característica humana que decerto continuará a manifestar-se. Cada resposta que obtemos levanta novas perguntas!

 

ENTREVISTA QUE DEI COM O JOÃO PAULO ANDRÈ À UNIVERSIDADE DO MINHO (UM) SOBRE O NOSSO LIVRO «A HARMONIA DAS ESFERAS»

 


UM-    Como surgiu a ideia de escrever A Harmonia das Esferas?

JPA e CF- Para amantes da música como nós, reconhecendo as suas bases científicas – tanto por se tratar de um fenómeno físico, o som, como pelo facto de, desde a Antiguidade, ritmos, escalas, harmonia e estruturas musicais terem sido descritos por proporções matemáticas –, era quase inevitável que, um dia, nos lançássemos num projeto deste tipo. De resto, um de nós (JPA) teve um livro bem-sucedido sobre química e ópera («Poções e Paixões», também na Gradiva) e o outro (CF) tem-se servido da música diversas vezes para passar mensagens de divulgação de ciência.

 UM- Porquê a escolha deste título?

JPA E CF- «A Harmonia das esferas» ou «Música das esferas» é uma ideia da Antiguidade Clássica, que o astrónomo alemão Johannes Kepler retomou no século XVII. Desde os tempos dos pitagóricos, na Grécia antiga, que se acreditava que os astros, ao moverem-se nas esferas celestes, produziam uma música harmoniosa – inaudível para os ouvidos humanos (exceto os de Pitágoras), que era regida por proporções matemáticas. Essa música, que simboliza a ordem e a beleza do cosmos, é um conceito adequado para expressar a ligação íntima entre música e ciência que exploramos neste livro.

 UM- E como surgiu a possibilidade de colaboração entre os dois autores?

JPA e CF- Já nos conhecíamos há bastante tempo, mas foi há cerca de dois anos que, impulsionados pela paixão comum pela música e pela ciência, e pelo desejo de um de nós de expandir a ideia antes explorada – as relações entre química e ópera –, passando a abranger, por um lado, todas as ciências exatas e naturais, assim como a medicina, e, por outro lado, todos os tipos de música, decidimos unir os nossos interesses e competências para dar forma a este projeto.

 UM- Qual é a principal temática abordada na obra?

JPA e CF- O livro explora as múltiplas e férteis relações entre a música e a ciência, seja esta matemática, astronomia, física, química, biologia, geologia ou medicina. Como a ciência ainda não oferece respostas definitivas a algumas questões, por exemplo no que diz respeito à extraordinária capacidade humana de criar e apreciar música, optámos por incluir no subtítulo para além de «música e ciência» a expressão «mistérios do Universo». Estamos em crer que a biologia e as neurociências ainda terão muito a revelar sobre as ligações entre o som, o cérebro e as emoções humanas.

 JPA e CF- Qual é o público alvo? Um público generalista, ou mais académico?

Um público generalista. Tentámos escrever uma obra ao alcance de todos os que se interessem minimamente por música e/ou por ciência.

 UM- Qual a importância de associar o lançamento aos 50 anos da ECUM?

JPA e CF- O facto de este livro abordar uma temática transversal a um leque de ciências – é um livro multidisciplinar - terá certamente contribuído para a sua escolha como parte das celebrações dos 50 anos da ECUM.  A obra reflete o espírito multidisciplinar e criativo que a ECUM tem promovido ao longo do seu meio século de existência. Além disso, o livro junta as ciências com uma as artes, não só a música como artes plásticas e outras, numa tentativa de juntar as chamadas «duas culturas».  Queremos reforçar a ideia de que as ciências são parte da vasta cultura humana.

 UM- Se tivesse que escolher uma imagem, metáfora ou ideia para representar esta obra, qual seria?

JPA e CF- A metáfora está no título, «A harmonia das esferas». Tal como a antiga ideia da “harmonia das esferas”, o livro procura mostrar a ordem oculta que estrutura o Universo – não só nas relações físicas entre os corpos celestes, mas também nos processos químicos, nas funções cerebrais e nas respostas emocionais. Einstein, cuja imagem está na capa, dizia que obtinha o maior prazer da sua vida quando tocava violino.

 UM- Quantas páginas tem a obra?

JPA e CF- 368, incluindo figuras a cores extratexto.

 UM-  Quando começou a ser escrita

JPA e CF- Há cerca de dois anos.

UM- Onde pode ser adquirida?

 JPA e CF- Em todas as livrarias e nas plataformas «on-line» de venda de livros. Pode-se comprar diretamente na Gradiva. Façam-nos chegar a Vossa opinião.

ENTREVISTA QUE DEI AO COLÈGIO VALSASSINA (CV)

  CV (Colégio Valsassina, Simão Pignatelli): Quando se apercebeu da sua paixão pelas Ciências?

CF- Quando estava mais ou menos no 5.º ano do liceu (hoje 9.º ano do ensino básico), quando escolhi a área de ciências para a continuação de estudos. Nessa altura fui motivado não apenas pelas aulas de ciências, em particular de Física, mas também pelas leituras que fiz de livros de divulgação da ciência. Foi nesse tipo de livros que encontrei a aventura da ciência, a evolução do conhecimento humano sobre o cosmos. É talvez por isso que, muito mais tarde, também passei a escrever esse tipo de livros..

CV- Licenciou-se em Física na Universidade de Coimbra e doutorou-se em Física Teórica pela Universidade de Goethe, em Frankfurt, na Alemanha. O que o motivou a seguir esta área? Quais eram as suas perspetivas para o futuro?

CF- A Física é a mais geral das ciências naturais: seduziu-me a sua universalidade uma vez que tanto se aplica a objectos na Terra como no vasto céu. Sempre me interessou mais a teoria do quer a experiência. Nunca pensei em utilidades nem em empregos. O emprego como professor e investigador veio a acontecer naturalmente. Aos jovens de hoje só posso recomendar que, tal como eu, vão atrás dos seus sonhos.

CV- Qual o projeto em que participou que destaca ou que considera mais desafiante?

CF- O artigo mais citado sobre a «cola electrónica» entre os átomos, que comecei a realizar nos EUA, foi referido mais de 20 000 vezes, um recorde em Portugal. Mas, falando de projectos científicos, foi entusiasmante a constituição do Centro de Física Computacional da Universidade de Coimbra, e a montagem dos primeiros supercomputadores portugueses. E também tenho tido vários projectos científicos, pedagógicos e culturais. O mais recente é a formação de uma biblioteca com o meu nome num parque em Coimbra, onde ficarão os meus livros.

CV- Para comemorar o centenário da Mecânica Quântica, a Organização das Nações Unidas (ONU) proclamou oficialmente que 2025 fosse o Ano Internacional da Ciência e Tecnologia Quânticas. A Física Clássica é diferente da Física Quântica? Como define a Física Quântica para quem não está dentro do assunto?

CF- Sim, a física clássica aplica-se no mundo de todos os dias, é-nos familiar. A física quântica aplica-se no mundo microscópico, parecendo-nos bastante estranha. Mas a física clássica é um certo limite da física quântica. A física quântica descreve sistemas como os átomos em que os electrões dão saltos de energia, ao  absorver ou emitir luz. A luz de um certo comprimento de onda só é absorvida ou emitida em certas quantidades, ou «quanta» ou «pacotes».

CV- Quais as aplicações no nosso dia a dia do conhecimento acumulado pela Física Quântica?

CF- Os mais conhecidos que estão por todo o lado são os transístores e os lasers. Não poderíamos ter os computadores nem as comunicações modernas sem os saltos quânticos. Seria impossível a nossa vida actual se não explorássemos efeitos quânticos. E para o futuro está prometida a exploração de novos efeitos.

CV- Quais as principais aplicações para a sociedade e humanidade da Física Quântica?

CF- Para além das aplicações já referidas, gostaria de referir as lâmpadas LED e os dispositivos médicos como os raios X e a ressonância magnética. Mas o maior ganho que obtivemos com a física quântica foi a compreensão da estrutura e funcionamento do mundo.

CV- Como olha para o futuro daqui a 50 anos?

CF- Com optimismo nas possibilidades da ciência. Hoje estamos a experimentar no laboratório novas tecnologias como a computação quântica e a criptografia quântica, que prometem mudar a sociedade ainda mais.

CV- O tema do plano anual de atividades do Colégio para este ano letivo é “Despertar o Espanto”. Entendemos que a aprendizagem requer curiosidade, motivação e também surpresa e espanto. Como podemos ter o Espanto como ponto de partida para o processo de aprendizagem, provocando a admiração pelo mundo, e surpresa pelas descobertas?

CF- Einstein é um bom exemplo: ele ficou espantado com a teoria quântica, apesar de ter sido um dos seus autores. Como nela entravam probabilidades, reagiu dizendo que «Deus não joga aos dados». Parece que Einstein não tinha razão: os físicos invalidaram algumas das suas hipóteses contrárias  às probabilidades. O Universo é, de facto, um sítio espantoso, permitindo sempre sucessivas descobertas. Não pára de nos surpreender. Devemos estar permanentemente abertos a surpresas.

CV- Qual pensa que deve ser o papel da Escola e dos professores na promoção do pensamento crítico e científico?

CF- A Escola é essencial:  é uma das maiores  «invenções humanas». Permite transmitir às novas gerações os conhecimentos das antigas.

CV- Sabemos da sua paixão pela literatura, pelos livros. Se tivesse de escolher 2 livros que considera de referência, quais escolheria?

CF- Escolho na divulgação de ciência o «Cosmos», de Carl Sagan, sobre o Universo em geral, e «O Código Cósmico», de Heinz Pagels,  sobre a física quântica. Os dois estão publicados pela Gradiva, na colecção «Ciência Aberta», que dirijo.

CV- Tem vários livros publicados sobre Ciência e divulgação da Ciência. Como seleciona os temas dos livros? Como descreve o seu processo de escrita?

CF- Escrevo sobre os assuntos que conheço, portanto principalmente sobre temas de Física. Mas os métodos da Física são os da ciência em geral, pelo que tenho escrito sobre outros temas. Muitas vezes aproveito palestras que dei, que depois desenvolvo. Foi o caso do meu best-seller «Física Divertida», que agora saiu incluído em «Toda a Física Divertida».

CV- Considera que escrever para o público em geral é mais difícil ou mais gratificante do que fazer investigação?

CF- As duas actividades têm o seu encanto e podem coexistir. Coexistem em mim. É relevante que os cientistas levem a ciência ao público em geral: eles são afinal os portadores da curiosidade que é de todos.

CV- Vários dos seus livros são sobre a pseudociência ou a falsa ciência. Considera que a ciência está a perder espaço para as pseudociências e para as teorias da conspiração?

CF- A ciência goza de muito prestígio. As pseudociências procuram imitá-la, ou melhor «macaqueá-la», aproveitando-se desse prestígio. O facto de haver comunicações globais, proporcionadas pela ciência, permitiu a proliferação das pseudociências. Não tendo a ilusão de as conseguir  banir,  a ciência deve continuar a procurar o apoio da sociedade. Na divulgação da ciência é preciso marcar bem a distinção entre o original e uma cópia defeituosa.

CV- Qual deve ser o papel da comunicação científica na luta contra a desinformação?

CF- A ciência usa no seu método um conceito que é mais vasto do que a ciência: a racionalidade. A desinformação está ligada à irracionalidade, mas por vezes há uma certa racionalidade na desinformação: não falta quem procure dinheiro ou fama à custa da verdade. Admito que também haja alguma desinformação feita de boa fé. Não é nada fácil combater a desinformação mas não podemos desistir.

CV- Como vê o impacto das redes sociais na divulgação e na perceção da Ciência?

CF- Podem e devem ser usadas, isto é, mais usadas. Todos os meios de comunicação são úteis. Hoje a Internet alcança mais do que a televisão, que no passado foi o maior meio de comunicação de massas. Encontramos lá, no meio de muito lixo, muito bons materiais de divulgação da ciência.

CV. Como podemos aproximar a Ciência dos cidadãos e torná-la mais participativa?

CF- Pela minha parte faço o que posso. Vou a muitos lados, por exemplo a escolas como o Colégio Valsassina. Escrevo livros. Estou na imprensa, na rádio e na televisão. Faço podcasts. Estou nas redes sociais. Mas é claro que se pode sempre fazer mais e melhor.

CV- Portugal assinalou, em 2024, 50 anos de Liberdade e Democracia. O que significa para si a Liberdade?

A ciência precisa de liberdade como de pão para a boca. Em geral, nos regimes autoritários a ciência dá-se mal, porque ela exige livre circulação de pessoas, ideias e materiais. A ciência pode ser cultivada em regimes autoritários, mas o mais certo é surgirem problemas e contradições.

CV- Qual o papel da cultura científica e tecnológica na democracia portuguesa?

CF- Foi entrando na democracia portuguesa à medida que a ciência aumentava. Mas o governo está a fazer muito pouco nessa área. É preciso estar mais ligado e sociedade e inovar para conseguir mais confiança social! Os cidadãos portugueses ainda não têm suficiente consciência da ciência. Hoje em dia o conhecimento científico é a maior fonte de riqueza e os portugueses, mais ou menos novos, deveriam
 perceber que não poderão ser mais ricos se não investirmos mais na ciência e tecnologia. Nesse processo, deveríamos dar mais oportunidades aos jovens, pois é neles que há mais criatividade.

CV- Que mensagem deixa aos nossos alunos e às nossas alunas, que nasceram e viveram sempre em liberdade e em democracia?

CF- Que usem a liberdade e a democracia para expandirem os seus horizontes. Hoje em dia, no mundo global, é fácil saber mais, na escola e fora da escola. Nunca desperdicem uma oportunidade de saber mais!

CV- Muito obrigado pelo seu tempo e dedicação,

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

"EDUCAR É CULTIVAR, NÃO APENAS MEDIR DESEMPENHO"

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião

O texto que transcrevemos será de uma professora brasileira do, entre nós, designado primeiro ciclo, que acaba de se reformar. Mas poderia ser de uma professora – ou de um professor – português de qualquer nível de ensino, incluindo o superior; poderia ser de outro país... O desligamento de que fala pouco tem a ver com lugares, com contextos e com esta ou aquela profissão; tem muito a ver com a "cultura" de desligamento da realidade, de insensibilidade face ao outro, de brutalização do mundo, que se nos impõe e para a qual, de uma maneira ou de outra, contribuímos.

Hoje, um menino de 7 anos me disse que eu não servia para nada.” Assim começou meu último dia como professora primária em uma escola pública. Sem ironia. Sem raiva. Apenas uma voz indiferente, como se estivesse comentando sobre o tempo.
Você não sabe fazer TikToks. Minha mãe diz que pessoas velhas como você já deveriam se aposentar.

Eu sorri. Aprendi a não levar para o lado pessoal. Mas mesmo assim... algo dentro de mim quebrou um pouco mais.

Meu nome é professora Helena. Ensinei o 1.º ano em uma cidadezinha nos arredores de Belo Horizonte por 36 anos. Hoje, arrumei minha sala pela última vez. Quando comecei, no fim dos anos 80, ensinar era um chamado. Um laço sagrado. As pessoas confiavam em nós. Até nos admiravam. Não ganhávamos muito, mas havia respeito. E isso valia mais do que qualquer salário. Os pais levavam bolo de fubá nas reuniões. As crianças faziam cartões de aniversário cheios de erros de português e corações tortos. E quando alguém lia sua primeira frase em voz alta... Era uma alegria que nenhum dinheiro podia pagar.

Mas alguma coisa mudou. Devagar. Silenciosamente. Ano após ano. Até que um dia, olhei para minha sala e não reconheci mais o trabalho que tanto amei. Não é só por causa de tablets e lousas digitais – embora também seja. É o cansaço. A falta de respeito. A solidão. Antes, eu passava as tardes recortando maçãs de papel para enfeitar as paredes. Agora, passo preenchendo relatórios em um aplicativo de comportamento, caso algum pai resolva me processar.

Já gritaram comigo na frente de toda a turma. Não alunos  pais. Um deles me disse:
A senhora não sabe lidar com criança. Vi um vídeo no celular do meu filho.
Ele tinha me filmado enquanto eu tentava acalmar outro aluno em crise. Ninguém perguntou como eu estava. Ninguém quis saber que eu estava funcionando à base de chiclete, café e pura força de vontade.

As crianças também mudaram. E a culpa não é delas. Vivem num mundo acelerado, barulhento, desconectado. Chegam à escola sem dormir, viciadas em telas e emocionalmente despreparadas. Algumas vêm com raiva. Outros, com medo. Muitos não sabem segurar um lápis, esperar a vez ou dizer “por favor”. E esperam que a gente dê conta de tudo. Seis horas por dia. Sem assistentes. Com 28 alunos. E um orçamento que não dá nem pra bolo de aniversário.

Lembro de quando minha sala era um abrigo. Tínhamos um cantinho da leitura com almofadas coloridas. Cantávamos toda manhã. Aprendíamos a ser gentis antes de aprender a somar. E agora?
Agora me pedem para focar em “metas de aprendizagem”, “métricas”, “resultados mensuráveis”. Meu valor se mede pela forma como uma criança de 6 anos preenche bolinhas em uma prova padronizada de março.

Uma vez, um supervisor me disse:
–  Você é muito “afetiva”. Nosso município quer resultados.
Como se conectar com crianças fosse um defeito. Mas eu continuei. Porque sempre existiram momentos. Pequenos. Sagrados. Uma criança que cochichou pra mim:
–  Você parece minha vó. Queria morar com você.
Outra que deixou um bilhete na minha mesa:
–  Aqui me sinto seguro.
Ou aquele menino tímido que finalmente me olhou nos olhos e disse:
–  Li sozinho.

Agarrei esses momentos como se fossem boias salva-vidas. Porque eles me lembravam que, mesmo quando o mundo gritava o contrário, eu ainda estava fazendo algo que importava. Mas este último ano... me quebrou. A violência aumentou. Um aluno jogou uma cadeira pela sala. Outro me ameaçou:
Vou levar uma coisa de casa amanhã.
E tudo porque pedi para ele sentar.

O telefone da escola virou linha direta de emergência. A coordenadora pediu demissão em outubro. Em novembro, não havia mais professores substitutos. A exaustão virou uma névoa densa e constante. E eu? Comecei a me sentir invisível. Substituível. Como uma máquina velha em um mundo digital que já não acredita no toque humano.

Arrumei minha sala hoje. Arranquei desenhos desbotados das paredes – alguns de décadas atrás. Encontrei uma caixa de cartinhas de uma turma de 1995. Uma delas dizia:
Obrigado por gostar de mim mesmo quando fui bagunceiro.

Chorei ao ler. Porque, naquela época, ser professora significava alguma coisa. Hoje, parece uma profissão pela qual a gente precisa pedir desculpa. Não houve festa. Nem discurso. Só um aperto de mão do novo diretor, que me chamou de “senhora” e checou o celular no meio da despedida.

Esqueci minha caixa de adesivos. Minha cadeira de balanço. Minha paciência. Mas levei comigo a lembrança de cada criança que um dia me olhou com encanto, com confiança ou com alívio. Isso é meu. Ninguém pode me tirar.

Não sei o que vem agora. Talvez eu seja voluntária na biblioteca da cidade. Talvez eu aprenda a fazer pão caseiro. Ou talvez eu apenas me sente na varanda com um chá quente, lembrando de um tempo que era mais gentil. Porque sinto falta.

Sinto falta de quando ser professora era ser aliada, não alvo. Quando escola e família caminhavam juntas. Quando educar era cultivar, não apenas medir desempenho. Se você já foi professor ou professora, você entende.

(...) Fizemos [isso] pelo menino que aprendeu a amarrar os cadarços. Pela menina que finalmente sorriu depois de semanas em silêncio. Pelos que precisavam de nós de um jeito que nenhuma prova consegue mensurar. Fizemos por amor. Por esperança. Por acreditar que ainda dava para mudar o mundo.

Então, se um dia você encontrar uma professora – de ontem ou de hoje – agradeça (...). Com sua voz. Seus olhos. Seu respeito. Porque num mundo que corre depressa demais, elas ficaram. Num sistema que desmoronou, elas resistiram. E numa sociedade que as esqueceu, elas se lembraram de cada criança. Que as professoras do passado saibam que não estão esquecidas. Que as de hoje saibam que não estão sozinhas.

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

OBRIGADO, JL e JCV!

 Minha última crónica no JL:

Sou leitor fiel do JL- Jornal de Letras, Artes e Ideias desde o primeiro número, que já saiu há 44 anos. Recebi esse número por correio aéreo, pois estava a fazer o doutoramento na Alemanha. Lembro-me das extraordinárias capas dos primeiros números, da autoria de João Abel Manta (guardo esses números na minha biblioteca, embora já não tenha a colecção completa, dado o prodigioso volume do papel que foi impresso). E lembro-me do extraordinário leque de colaboradores, para além do artista gráfico. Se durante tantos anos foi publicado este jornal, único em Portugal, com a qualidade que é reconhecida por todos, isso deve-.se, sem qualquer dúvida, ao seu director desde o primeiro número, o jornalista e escritor José Carlos Vasconcelos (JCV), à frente de uma pequena, mas muito competente equipa. A ele devo também ter participado na escrita desta publicação, de início com crónicas ocasionais (lembro-me, em particular, de uma em 1996, não sei se foi a primeira, sobre António Gedeão, a quem chamei «o alquimista»). Mas, a partir de certa altura, e por um convite irrecusável do JCV, feito por via telefónica, passei a escrever regularmente na secção do jornal dedicada às ideias.

Não sei quantas minhas crónicas saíram. Mas sei que havia sempre um lembrete amável do director para evitar que eu faltasse com o costumado texto, coisa que, julgo, nunca aconteceu. Os temas tratados sempre foram de minha livre escolha, tendo eu estabelecido como linha de rumo unir as ciências com as letras e as artes. A ciência faz parte da vasta cultura humana e, no meu entender, seria bom que  a tradicional dicotomia entre ciências e humanidades se dissipasse, ou, pelo menos, que fosse um pouco aliviada. É o velho problema das «duas culturas», que o  cientista e romancista inglês Charles P. Snow abordou no final dos anos de 1950, talvez não da melhor forma. A ciência é, afinal, uma forma de humanismo, conforme fez notar Rómulo de Carvalho, o professor de Ciências Físico-Químicas que usava o pseudónimo de António Gedeão na sua produção literária e artística (sim, ele também desenhava para além de escrever).

Tenho acompanhado com mágoa as vicissitudes do grupo de publicações em que o JL se integra, da empresa Trust in New, não só devido à minha antiga relação com este jornal, mas também pela minha condição de leitor da revista Visão, um magazine que se seguiu ao  O Jornal,  semanário que acompanhei noa anos em que existiu. Estou bem ciente que os tempos são difíceis para a imprensa, dada a inexistência de um modelo de negócios que permita compatibilizar a edição tradicional com os modernos meios digitais que as ciências e tecnologias proporcionaram. O digital está por todo o lado e muitos ainda têm a ilusão que podem ter serviços noticiosos gratuitos. De facto, a concorrência que as redes sociais e a Internet em geral fazem ao jornalismo profissional é difícil de contrariar, mas há bons exemplos, pelo mundo, da complementaridade entre o papel e o digital, aproveitando as vantagens de cada um.

 Estou certo de que não sou só eu que desejo a continuação do JL. Mas dizem-me que parece não haver maneira, dada a situação do grupo e a necessidade de um grande investimento que salvaguarde o futuro da publicação com pelo menos a mesma qualidade que até agora.

O JCV comunicou-me que o JL que o leitor tem em mãos será possivelmente o último número do título. As coisas são como são e não com nós gostaríamos que fosse. Sinto uma amarga sensação de impotência. E, assim, pouco mais posso fazer agora do que agradecer. Agradecer ao JL tudo o que me deu e agradecer ao JCV por mo ter dado. Foram muitos anos, em que a leitura do JL me alimentava a mente. Sem ele, a cultura portuguesa, espalhada pelo mundo fora graças à difusão da língua portuguesa, fica mais pobre. Também eu, como outros, fiz, de vez em quando, críticas ao JL, pois julgava que aqui e ali podia ser melhor, que podia prestar mais atencão a este ou aquele autor ou  a este ou aquele assunto. Mas lembro-me de uma frase do meu amigo Onésimo Teotónio Almeida, que escreveu no JL durante bastante mais tempo do que eu: «Quando não houver mais Jl, então é que iremos ver a falta que ele nos fará». Por mim, dispensava perfeitamente esta verificação experimental. Imagino já a falta que me vai fazer pela falta que me fazia quando chegava atrasado pelo correio (nos últimos tempos demasiadas vezes, o que eu compensava com a compra no quiosque logo que lá via uma nova edição).

Foi o mesmo Onésimo que comparou o JL com o norte-americano New York Review of Books (NYRB). Leio os dois. Sei, por isso. que há grandes semelhanças e grandes diferenças entre os dois. Nas semelhanças destaco o facto de ambos tratarem a  cultura de um modo livre, abrangente e qualificado. Além disso, nos dois, as ciências são tratadas a par com as letras, artes e outras ideias (a ciência assenta obviamente em ideias, mas apenas as ideias para as quais hã um critério de validação, que é a correspondência com a realidade). Nas diferenças está o facto de o NYRB, escrito em inglês, ser mais internacional e constar maioritariamente de extensas recensões de livros, dedicando menos espaço às artes plásticas e às artes performativas. Cada vez que receber uma nova edição do NYRB (durante anos recebi-o em papel, mas agora contento-me com o digital, dada a enorme acumulação de papel), vou-me lembrar do Jl . Ainda não saiu o último número e já sinto saudades. Em todo o mundo lusófono vai haver saudades do JL!

SOBRE O GRANITO E A SUA ORIGEM, NUMA CONVERSA TERRA-A-TERRA.

Por A. Galopim de Carvalho Paisagem granítica na Serra da Gardunha. Já dissemos que não há um, mas sim, vários tipos de rochas a que o vulgo...