No percurso que, na segunda quinzena de Setembro, fiz até à universidade para chegar às primeiras aulas da manhã, encontrei sempre dois ou três grupos de praxe. Tentei, como em anos passados, não ouvir as ordens grosseiras, ofensivas dos estudantes mais velhos e os coros subservientes, servis dos que acabam de chegar. Não são as palavras em si que me incomodam é a situação: pessoas maiores de idade - adultos, portanto -, que humilham e se deixam humilhar. Estas pessoas hão-de humilhar outras que chegarão.
São pessoas que, estando entre os 18 e os 25 anos, se diz serem da "geração ansiosa", da "geração frágil", da "geração floco de neve". Por isso, as instituições de ensino superior desdobram-se em medidas destinadas a promover o seu "bem-estar emocional": são linhas de apoio psicológico e programas de promoção da saúde mental; são atendimentos e grupos de acompanhamento; são consultas individuais... Tudo para prevenir e intervir na depressão, na ansiedade, no stress. E ainda há os canais de denúncia anónima para, tal como o próprio nome indica, denunciar anonimamente as variadíssimas modalidades de que o assédio, a ameaça e afins se revestem.
Algo não bate certo. A praxe reúne muitos ingredientes que atentam contra o "bem-estar emocional" (seja isso o que for) de qualquer um. Portanto, diria que é preciso muita resistência ou indiferença "emocional" para se passar por uma experiência daquelas e não se ficar abalado. Não vejo ali gente frágil, ansiosa, que se desfaz ao primeiro sopro; vejo ali gente capaz de abdicar da decência mínima (já nem falo em dignidade) que deve reivindicar para si e para os outros.
É certo que nem todos os estudantes aderem às praxes e que muitos são críticos das mesmas (veja-se, por exemplo o artigo Praxe: a grande hipocrisia da geração universitária de Alexandre Pinto, estudante da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto), mas a verdade é que não conseguem fazer valer a sua posição.
O fenómeno é complicado, reconheça-se, pelo que tem merecido vários estudos assinados sobretudo por sociólogos. Elísio Estanque é um deles, note-se o livro da sua autoria que ao lado se identifica. Num artigo que recentemente publicou (O culto da subserviência) põe a tónica nas relações entre o que agora se denomina "agentes educativos": estudantes, dirigentes e empresas. Vale a pena tentar perceber essas relações (perversas, digo eu):
"O tema das praxes estudantis pode até parecer esgotado e merecer o desinteresse da opinião pública e publicada. Com efeito, há décadas [que existem] tentativas de regulação e controlo por parte das universidades. Os comportamentos gregários e tribais da atual juventude estudantil persistem em deixar-se confundir com a naturalização dos abusos: autoritarismo, sexismo, marialvismo, conservadorismo são algumas das formas de abuso de poder e de violência simbólica que se perpetuam entre as sucessivas gerações de jovens que ingressam nas universidades portuguesas.
No caso da Universidade de Coimbra (UC), que está na origem destes rituais académicos, as débeis medidas de contenção adotadas por algumas faculdades revelam-se até agora impotentes, senão mesmo inócuas, para debelar um fenómeno que, nos seus atuais contornos, constitui, a diversos títulos, uma perigosa perversão da cultura estudantil e até das próprias tradições académicas. De resto, a atitude de anuência por parte da UC não é alheia a toda uma mentalidade juvenil onde predominam o consumismo e a alienação. Em Coimbra a força dos patrocinadores de cerveja, por exemplo, é mais importante do que a força das ideias para a eleição de uma dada candidatura para as estruturas dirigentes do associativismo.
(...) Triste espetáculo de grupos de jovens “caloiros”, de ambos os sexos, perfilados em modo de formatura paramilitar e a gritar as mais incríveis obscenidades sob o comando dos seus colegas mais “velhos” que (...) os/as obrigam a manter-se de olhos no chão ou a rastejar ou a andar de quatro ou a mergulhar no lago, etc. No Jardim da Sereia, no Jardim Botânico ou no Parque Verde da cidade, é vê-los, eles e elas, numa berraria descontrolada, a despejar baldes de água ou até mesmo cervejas pela cabeça abaixo dos caloiros, dando corpo ao que podemos considerar um autêntico viveiro de imbecilização dos e das imberbes estudantes, onde o que mais se glorifica é o culto do autoritarismo e consequentemente do servilismo perante o poder do mais velho (...).
No caso da Universidade de Coimbra (UC), que está na origem destes rituais académicos, as débeis medidas de contenção adotadas por algumas faculdades revelam-se até agora impotentes, senão mesmo inócuas, para debelar um fenómeno que, nos seus atuais contornos, constitui, a diversos títulos, uma perigosa perversão da cultura estudantil e até das próprias tradições académicas. De resto, a atitude de anuência por parte da UC não é alheia a toda uma mentalidade juvenil onde predominam o consumismo e a alienação. Em Coimbra a força dos patrocinadores de cerveja, por exemplo, é mais importante do que a força das ideias para a eleição de uma dada candidatura para as estruturas dirigentes do associativismo.
(...) Triste espetáculo de grupos de jovens “caloiros”, de ambos os sexos, perfilados em modo de formatura paramilitar e a gritar as mais incríveis obscenidades sob o comando dos seus colegas mais “velhos” que (...) os/as obrigam a manter-se de olhos no chão ou a rastejar ou a andar de quatro ou a mergulhar no lago, etc. No Jardim da Sereia, no Jardim Botânico ou no Parque Verde da cidade, é vê-los, eles e elas, numa berraria descontrolada, a despejar baldes de água ou até mesmo cervejas pela cabeça abaixo dos caloiros, dando corpo ao que podemos considerar um autêntico viveiro de imbecilização dos e das imberbes estudantes, onde o que mais se glorifica é o culto do autoritarismo e consequentemente do servilismo perante o poder do mais velho (...).
Parece assim evidente que a leitura dominante na UC desaconselhe a
interferir demasiado numa matéria que, apesar de considerada “inócua”, é
muito conveniente para ajudar a manter o statu quo, seja no
associativismo académico, seja na Universidade e no seu governo (...)"
3 comentários:
É espantoso o entusiasmo em que muitas comunidades académicas aderem, e tanto mais quanto não têm tradição nenhuma - como nas universidades 'novas', privadas. Quando me lembro que no meu tempo eu e todos os meus colegas próximos detestávamos, odiávamos a Queima, coisa fascistóide e repelente ao serviço do regime. É presunção de velho pretender que a sua geração era melhor, mais isto ou mais aquilo que os de agora; mas nisto da Queima e das praxes, não tenho dúvidas: esta geração desce mais baixo.
Caro Leitor Mário Gonçalves, são as tradições acabadas de inventar! No desconhecimento histórico das instituições, no alheamento da sua missão, facilmente se resvala para um seguidismo cego e inconsciente, mas empenhado e empolgado. Como outras iniquidades, passamos ao lado. E neste passar ao lado uns têm mais responsabilidades do que outros: as reitorias e as direcções, antes de mais, mas também as coordenações e cada professor. Contudo, como professora, confesso que me vai faltando o ânimo. Cordialmente, MHDamião
Quando andei na Faculdade de Letras de Lisboa, na década de 80 do século passado, considerávamos essas coisas de praxes e trajes académicos um curiosidade arqueológica do pessoal de Coimbra. Nos meus 5 anos de Faculdade nunca vi uma praxe ou um estudante trajado. Ninguém deixou de se integrar mais ou menos rápida e pacificamente por causa disso. Quando passo pelas manadas das praxes em Lisboa, fico cheia de vergonha alheia!
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