Artigo de opinião meu e do David Marçal no Público de hoje:
Lemos os artigos que
se opõem à intenção do município de Lisboa de criar um museu evocativo dos
descobrimentos ou descobertas portuguesas e ficámos perplexos. Parece que não
existiram descobertas! Mas existiram: antes da América ter sido descoberta
ninguém na Europa sabia que ela lá estava. E sim, essa como outras descobertas
semelhantes partem do ponto de vista dos europeus, porque o ponto de vista não
pode deixar de ser nosso. As descobertas geográficas luso-espanholas, que
conduziram a descobertas de novas espécies, de populações e culturas
diferentes, abriram caminho para a Revolução Científica dos séculos XVI e XVII:
se era possível que existissem novas terras e novas gentes que antes não
conhecíamos, então também era possível, em geral, formular conhecimento novo. E
esta ideia, que hoje parece óbvia - sim, é claro que há coisas que não sabemos
e que podemos vir a saber - não era nada óbvia no século XV. .
Prevalecia a ideia
de que o conhecimento era tanto mais verdadeiro quanto mais antigo (ainda há
hoje terapeutas alternativos que assim pensam) e os filósofos recitavam e
reinterpretavam os textos clássicos, com pouco ou nenhum interesse pela observação
e pela experiência. Se houvesse discrepâncias entre Aristóteles e aquilo que
alguém via na Natureza, prevalecia a autoridade antiga. O francês Jacques Cartier escreveu em 1545 que o “simples marinheiro de hoje aprendeu o oposto dos filósofos através da verdadeira experiência”. Pensava-se, por exemplo, que as regiões do equador seriam demasiado quentes para que seres humanos aí pudessem viver. No entanto, os portugueses, na procura de uma rota oceânica para a Índia, passaram o equador em 1474-75 e descobriram que havia muitas pessoas que habitavam essas regiões. Santo Agostinho receava que a existência de povos nos antípodas implicasse haver seres humanos que não descendiam de Adão… Mas o Brasil estava nos antípodas de terras conhecidas a oriente e em breve se chegou aos antípodas das terras do Ocidente. O Padre António Vieira escreveu no século XVII: “Acerca da zona tórrida e dos antípodas ensinaram os pilotos portugueses ao mundo, sem saberem ler nem escrever, o que não alcançou Aristóteles, nem Santo Agostinho.”
A própria ideia clássica do cosmos como uma estrutura de esferas concêntricas foi demolida. Aristóteles estava em muitos casos errado, o que foi descoberto pela observação e experiência. Para dar outro exemplo: ele pensava que a mulher tinha menos dentes do que o homem, não lhe tendo ocorrido pedir à sua mulher para abrir a boca. As descobertas foram não só geográficas, mas em todo o conhecimento.
A própria ideia clássica do cosmos como uma estrutura de esferas concêntricas foi demolida. Aristóteles estava em muitos casos errado, o que foi descoberto pela observação e experiência. Para dar outro exemplo: ele pensava que a mulher tinha menos dentes do que o homem, não lhe tendo ocorrido pedir à sua mulher para abrir a boca. As descobertas foram não só geográficas, mas em todo o conhecimento.
Não temos qualquer
objecção à criação de um museu que conte a história da colonização e evoque a
memória da escravatura, que está longe de ser uma “invenção” do Ocidente.
Certamente que o visitaríamos com interesse. Nem sentimos nenhum fascínio pelos
mitos lusotropicais de uma “colonização exemplar”, em que colonos e colonizados
viviam em alegre simbiose. E também não subscrevemos a opinião irónica de João Miguel
Tavares de que “o branco de 2018 é culpado pelos actos do esclavagista de 1718
para que o negro de 2018 possa ser vítima da escravatura de 1718”. De uma certa
forma é mesmo assim, porque as desigualdades sociais se prolongam ao longo de
gerações. Dito isto: existiram realmente descobertas e essa ideia é importante.
A Câmara de Lisboa pode decidir fazer um museu sobre as descobertas ou sobre a
escravatura, ou pode ainda fazer um museu que inclua os dois aspectos. Mas faz
todo o sentido criar um Museu das Descobertas. A ideia nem sequer é original.
Há poucos anos esteve patente na Fundação Gulbenkian em Lisboa uma exposição
intitulada “360 Ciência Descoberta”, precisamente sobre os avanços no
conhecimento que permitiram as descobertas e conduziram à ciência moderna. A
nossa proposta seria um museu com um pé no passado, mas a olhar para o futuro,
pois há muito ainda para descobrir no mundo e em nós próprios, que fazemos
parte do mundo. Hoje a ciência é a base da descoberta e o conhecimento a nossa
chave para uma vida melhor e mais prolongada. Ah, e as descobertas também
continuam. Por exemplo, já se descobriram mais de 3700 planetas fora do sistema
solar, que orbitam mais de 2700 estrelas diferentes. Se um deles for habitado…
não poderemos dizer que descobrimos os ET?
David Marçal e Carlos Fiolhais*
*Cientistas e divulgadores de ciência
5 comentários:
As dicotomias são a forma mais estéril de discutir seja o que for.
Porque acantonam cada protagonista (ou cada grupo) interveniente na discussão no seu reduto, retirando-lhe a capacidade de aceitar as limitações das suas teses ou de ver as virtudes das teses contrárias.
Mas, neste mundo de fanatismos à solta por todo o lado, é cada vez mais difícil aspirar a uma discussão aberta, saudável, em que cada parte ouça a outra, rebata argumento contra argumento sem se servir, quase de imediato, da técnica de atribuir ao outro intenções escondidas que, às vezes, ele nunca teve.
E andamos nisto sem que se vislumbre a luz num qualquer orifício que nos aponte o caminho para o território da verdadeira Liberdade e Tolerância.
Concordo inteiramente. Uma coisa é denunciar as atrocidades, mesmo feitas num contexto histórico que as permitia, não deixam de ser barbaridades; outra coisa é querer apagar ou devalorizar as grandes aventuras da Civilização que permitiram revelar a todos um planeta rico e diverso, para além de progresso científico. Porque o facto e que nem africanos nem asiáticos vieram até à Europa "descobrir" o ocidente, o sentido da História foi "de cá" "para lá".
Agora, de forma infeliz, parece que o fluxo se inverteu, mas não é 'descoberta' , é outra coisa, vêm até nós aos milhares em navios comparáveis aos negreiros, por vontade própria.
Os senhores que atualmente mandam no mundo, quer dizer, os protestantes americanos de origem anglo-saxónica e os seus amigos judeus, nunca nos perdoaram a ousadia de, a partir do século XV, termos sido os primeiros a dar "novos mundos ao mundo". Respaldados por exércitos poderosos, com armas de destruição maciça suficientes para varrerem da face da Terra a espécie humana, enquanto o diabo esfrega um olho, esses senhores têm meios para fazerem lavagens ao cérebro tão eficientes que, por exemplo, em Portugal, a juventude está convencida de que o senhor cônsul Aristides, do tempo de Salazar, é um herói nacional que pede meças ao próprio Vasco da Gama, o descobridor do caminho marítimo para a Índia!
Por outro lado, convém esclarecer que a escravatura não foi inventada pelos portugueses!
Uma pessoa pode ser simultaneamente contra a escravatura e admirador dos Descobrimentos portugueses – são dois planos diferentes de uma mesma realidade histórica, que deve ser estudada e compreendida!
Os peles-vermelhas da América do Norte foram trucidados pelos ingleses e seus descendentes, mas os cow-boys a caminhar em direção ao pôr-do-sol longínquo continuam a ser os heróis de mais de meio mundo. Quem pode, manda!
"Se houvesse discrepâncias entre Aristóteles e aquilo que alguém via na Natureza, prevalecia a autoridade antiga. O francês
Não temos qualquer objecção"
Falta aqui qualquer coisa, por favor corrigir
O texto estava mal copiado para aqui. Peço desculpa, foi emendado o que estava mal.
Carlos Fiolhais
Enviar um comentário