Minha contribuição para uma conferência na Universidade do Algarve sobre as relações entre ciência e arte.
Esta e muitas outras (interessantes!) contribuições encontram-se no livro electrónico Arte e Ciências em Diálogo publicado pela Grácio
(que se pode adquirir aqui, lá encontra-se o meu texto sobre Einstein devidamente paginado com todas as figuras a cores que aqui se omitem)
Albert Einstein (1879-1955), físico suíço e norte-americano de origem alemã,
é considerado não só um dos maiores cientistas de todos os tempos como um dos
principais ícones do século XX. O artista
pop Andy Warhol fixou-lhe em 1980 o
rosto numa das suas famosas litografias (uma outra é de Marilyn Monroe) e a revista
Time elegeu-o no ano 2000 para “
Pessoa do Século”.
Deixo aqui um esboço da relação de Einstein com a arte, aflorando tanto a
relação da ciência que ele criou – focarei principalmente a teoria da relatividade,
proposta em duas versões, a restrita em 1905, e a geral, em 1916 – com várias
formas de arte do século XX como a relação de um grande criador de ciência com
a prática e a apreciação artística. Para um aprofundamento do tema, pode consultar-se [1].
A relação entre ciência e arte é bastante maior do que geralmente se crê [2]
nas duas actividades a imaginação humana desempenha uma função nuclear, embora
na ciência ela seja bastante menos livre do que na arte por se ter a natureza
sempre como referente. Declarou Einstein de um modo muito claro que a imaginação
é a fonte perene do conhecimento, estando obviamente a pensar no conhecimento
científico:
“A imaginação é mais importante do que o conhecimento. O conhecimento é limitado.
a imaginação dá a volta ao mundo.”
Esta resposta foi dada à pergunta “C
onfia mais na sua imaginação do que no
seu conhecimento?”, numa entrevista dada a G. S. Viereck [3].
E, tanto na arte como na ciência, embora tal seja menos evidente na ciência,
um ideal estético serve muitas vezes de fio condutor na procura de novos caminhos. Henri Poincaré (1854-1912), o matemático francês bastante mais velho do
que Einstein que esteve perto de chegar à teoria da relatividade restrita mais cedo
do que ele – sobrando-lhe a imaginação matemática faltou-lhe talvez alguma da
intuição física que sobrava a Einstein – escreveu, em 1908, no seu livro
Science et
méthode (Ciência e Método) [4], portanto já após a teoria de Einstein que revolucionou
as nossas concepções do espaço e do tempo, este trecho que expressa
bem o primado do belo na ciência:
“O cientista não estuda a natureza porque isso é útil, estuda-a porque tem prazer
nisso, e tem prazer nisso, porque ela é bela. Se a natureza não fosse bela,
não valeria a pena conhecê-la, e se não valesse a pena conhecê-la, não valeria
a pena viver. Claro que não estou a falar da beleza que atinge os sentidos, a beleza
das qualidades e das aparências, não que subestime tal beleza, longe disso,
mas não tem nada a ver com a ciência, estou a referir-me à beleza mais profunda
que vem da ordem harmoniosa das partes, e que uma inteligência pura pode
compreender. “
E, mais adiante:
“A beleza intelectual basta a si mesma e é por ela, mais talvez do que pelo bem
futuro da humanidade, que o sábio se condena a longos e penosos trabalhos.”
Albert Einstein, aprofundando a mesma linha de paralelismo entre arte e
ciência, escreveu em
Out of my later years [5]:
“Todas as religiões, artes e ciências são ramos da mesma árvore. todas estas aspirações
apontam para o enobrecimento da vida humana, elevando-a acima da
mera existência física e conduzindo o indivíduo à liberdade”.
E, noutra altura, em “
What I believe” [6], acrescentou:
“A coisa mais maravilhosa que podemos experimentar é o mistério. Ele é a raiz
da verdadeira arte e da verdadeira ciência”.
Portanto, para Einstein a ciência e a arte são ambições humanas que radicam
no mistério. as duas, cada uma a seu modo, tentam romper as trevas do desconhecido.
Vejamos como a teoria da relatividade restrita exerceu influências sobre a
arte. Para alguns autores é mais do que uma coincidência curiosa que tenha ocorrido
em 1905 uma revolução na ciência com a teoria da relatividade restrita, e
passados dois escassos anos, tenha havido uma revolução nas artes plásticas, com
a introdução do cubismo pelo artista espanhol Pablo Picasso (1881-1973), que foi
seguido logo por outros como o francês George Braque (1882-1963). O quadro de
Picasso
Les Demoiselles d’Avignon, de 1907 (Fig. 1), que hoje se pode ver no Museu
de arte Moderna de Nova Iorque (MoMa), representa um grupo de prostitutas
da rua de Avinhão em Barcelona mostrando cinco figuras humanas distorcidas,
com partes dos seus corpos como que vistos de diferentes referenciais. Mas é decerto
arriscado afirmar que a ciência de Einstein influenciou a arte de Picasso. talvez
Poincaré, que abordou as geometrias quadrimensionais, o tenha feito, por
intermédio de um actuário que pertencia ao grupo de amigos de Picasso em Paris.
O historiador de ciência Artur Miller descreve pormenorizadamente o assunto
no seu livro de 2002
Einstein, Picasso: Space, Time And The Beauty That Causes
Havoc [7]. ao contrário do que dá a entender uma peça de teatro contemporânea
(
Picasso e Einstein, do norte-americano Steve Martin, n. 1945, que foi representada
em tradução portuguesa no teatro da trindade em Lisboa, no ano de 2004
[8]), os dois nunca se encontraram. Mas o certo é que havia na arte de Picasso
uma atitude conceptual muito diferente dos pintores impressionistas que o antecederam
que representavam a paisagem natural e humana de uma forma bem
mais próxima da realidade sensível. Picasso declarou uma vez como que auto-justificando-se:
“Pinto as formas como as penso, e não como as sinto”.
Isto é, Picasso representava o que via não com os olhos da face mas com os
olhos da mente. Precisamente como Einstein, embora os olhos da face e da mente
estejam em comunicação estreita.
A primeira obra de arte na qual há uma introdução de um elemento einsteiniano,
ainda que difícil de reconhecer, é da autoria da artista alemã Hannah Hoech
(1889-1978):
Corte com a faca da cozinha na primeira época da cultura de barriga
de cerveja de Weimar (Fig. 2), de 1919, que hoje se encontra no Staatliche Museum
de Berlim, na Alemanha. Trata-se de uma colagem dadaísta em que um dos
elementos da composição era a capa de uma revista germânica
(Berliner Illustrierte
Zeitung, de 14 de Dezembro de 1919), que exibia o rosto de Einstein, pouco depois
de ele ficar famoso com a confirmação da deflexão dos raios estelares pelo Sol
numa situação de eclipse observada no Príncipe no Brasil. O estilhaçar bem nítido
na colagem dadaísta é uma boa metáfora de uma Europa destruída pela Primeira
Guerra Mundial, que ia entrar numa fase conturbada antes de uma nova grande
guerra.
O dadaísmo viria a dar lugar ao surrealismo, lançado com o manifesto de
André Breton (1896-1966) de 1924, um escritor a quem as notícias vindas da ciência
não eram de modo nenhum estranhas. no surrealismo o primado era dado às
associações psíquicas automáticas, reflectindo o funcionamento da mente. Mais
tarde, o espanhol Salvador Dali (1904-1989), o grande mestre espanhol do surrealismo
que várias vezes se confessou influenciado pela ciência do seu tempo
[9], pintou
A persistência da memória (Fig. 3), de 1931, um quadro que também
se encontra no MoMa e que mostra relógios em fusão, que pode ser visto como
uma metáfora da relatividade do tempo: o tempo corre de maneira diferente para
diferentes observadores (o tempo “mole” e “variável” em vez de “rígido” e “uniforme”).
interrogado muito mais tarde pelo belga e Prémio Nobel da Química Ilya
Prigogine, Dali não reconheceu, porém, a influência einsteiniana: referiu simplesmente
a lembrança de um queijo camembert derretido ao Sol. O mesmo artista
voltaria ao tema ao pintar em 1954
A desintegração da persistência da memória
(Fig. 4), uma clara sequela da obra anterior que pode ser vista no Museu Dali, em
St. Petersburg, na Flórida, EUA, na qual o chão está agora dividido em blocos e
inundado.
A obra de Einstein haveria também de encontrar ecos no cinema como no
filme
The Day the Earth Stood Still (1951), uma obra de ficção científica de Robert
Wise (1914-2005) que conheceu uma revisitação cinematográfica recente, em que
um dos personagens é um cientista que se assemelha bastante a Einstein, e na
peça de teatro
Os Físicos (1961) [10], do dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt
(1991-1990), comédia em que um dos personagens, internado num manicómio,
julga que é Einstein. Praticamente não houve nenhuma forma de expressão artística
que tenha ignorado Einstein e a relatividade. Por vezes aconteceu mesmo que
a sua fórmula mais famosa,
E = mc^2, que expressa a equivalência entre massa e
energia, foi o mote para várias obras de artes plásticas.
Einstein encontrava o maior prazer na ciência, isto é, no desvendar do mistério
do mundo usando a lógica matemática sempre com a observação e a experiência
como guias. Mas o seu segundo prazer era a música, gozada tanto de forma
passiva como activa. é bem conhecida a sua paixão pelo violino, embora os seus
dotes de violinista estivessem muito aquém dos seus dotes como físico teórico.
Declarou um dia o cientista na referida entrevista a G. S. Viereck [11]:
“Se eu não fosse músico, seria provavelmente músico. Penso muitas vezes na
música. Vivo os meus sonhos diurnos com música. Veja a minha vida com base
na música... O maior prazer da vida tiro-o do violino”.
Os seus compositores favoritos eram Bach e Mozart, especialmente este último,
mostrando que se pode ser um criador de ciência moderna mantendo gostos
artísticos manifestamente clássicos. O mesmo se passou com o seu contemporâneo
e amigo Sigmund Freud (1856–1939) (os dois pugnaram pelo pacifismo).
Como nos conta Peter Bucky [12], com Allen G. Weakland,
The Private Albert Einstein
(Kansas City: Andrews and McMeel, 1992, edição original de 1933):
“A música de Mozart é tão pura e bela que a vejo como um reflexo da beleza interna
do Universo”.
Dos compositores do século XIX apreciava sobretudo Schubert. E o seu gosto
nunca foi além desse século. nunca apreciou a música que foi sua contemporânea.
De certeza que nunca teria compreendido a ópera Einstein on the Beach que, inspirado
nele, o compositor norte-americano Philip Glass (n. 1937) criou, tendo estreado
no ano de 1976.
Tal como Glass muitos outros artistas se inspiraram na obra de Einstein, alguns
mesmo em vida do sábio. O arquitecto alemão e judeu Erich Mendelsohn
(1887-1953) construiu em 1921 em Potsdam, nos arredores de Berlim um observatório
astronómico que ficou conhecido por Torre Einstein (
Einsteinturm) (Fig. 5).
há nesta obra de arquitectura moderna uma ligação profunda com a arte pois a
torre destinava-se mesmo a observações que permitissem confirmar a teoria da
relatividade geral de Einstein. Quando Einstein a visitou, inquirido sobre o que
achava da obra, respondeu que a palavra mais apropriada para o designar era “orgânico”.
Embora sendo uma apreciação sucinta, não estava mal como comentário
de um crítico amador a respeito de um edifício extravagante (já houve quem o
comparasse a um pénis), filiado na chamada arquitectura expressionista, cujo
autor tinha preferido as formas redondas às clássicas ou neo-clássicas construções
geométricas.
Outro arquitecto alemão e judeu, Konrad Wachsmann (1901-1980), construiu
para o físico uma casa de Verão em Caputh, um pouco a sul de Potsdam, que ele
teve de abandonar em 1933 tal como a sua residência principal em Berlim para
fugir à perseguição que os nazis moviam na época aos judeus. Einstein haveria de
passar o resto dos seus dias numa pequena vivenda em Princeton, enquanto a Europa
era varrida pela guerra. a torre Einstein foi, em parte, destruída.
Foi em Princeton que Einstein recebeu em 1946 o famoso arquitecto francês
de origem suíça Le Corbusier pseudónimo de Charles-Édouard Jeanneret-Gris (1887-1965), que se tinha deslocado aos Estados Unidos para participar no
projecto multinacional do edifício das nações Unidas em nova iorque. Le Corbusier
estava muito entusiasmado com a definição matemática da harmonia na arte,
que encontra expressão na famosa
“razão dourada”, a proporção que muitos querem
ver em obras de arte como fórmula superlativa de beleza que vão do Parténon
de Atenas ao
“homem de Vitrúvio” de Leonardo da Vinci. Sobre este assunto ancestral
Le Corbusier escreveu o livro
Le Modulor [13], saído originalmente em dois
tomos em 1948 e 1955 e do qual há uma tradução portuguesa recente. Mas, discutindo
a razão dourada com Einstein, este deu-lhe uma resposta lapidar:
“O senhor está à procura de uma maneira de tornar o belo fácil e o feio difícil”.
Trata-se, forçoso é reconhecer, de uma tarefa difícil, se não mesmo impossível.
O belo, porque subjectivo, escapará sempre a qualquer definição matemática,
ou, em geral, científica, que procura centrar-se em elementos objectivos. aí reside
a grande diferença entre arte e ciência
Para distinguir ciência e arte pode-se dizer, embora simplificando, que a ciência
procura a verdade enquanto a arte procura a beleza. a verdade parece mais
objectivável que a beleza. Mas as coisas não são assim tão simples pois verdade
e beleza estão ou pelo menos parecem por vezes estar relacionadas. Um antigo
aforismo latino afirma
Pulchritudo splendor veritatis, que significa
A beleza é o esplendor
da verdade. Na mesma linha desse dito, o poeta romântico inglês John
Keats (195-1821) escreveu, no final de
Ode on a Grecian Urn (1819), estes versos
[14]:
“Beauty is truth, truth beauty, - that is all
Ye know on earth, and all ye need to know”.
que se podem traduzir por;:
“A beleza é a verdade, a verdade é a beleza – e isto é tudo
O que sabemos na terra e tudo o que precisamos de saber.”
Em 1954, um ano antes de falecer em Princeton do rompimento de um aneurisma,
Albert Einstein confessou, num registo auto-biográfico [15], que também
ele emparelhava a verdade e a beleza, acrescentando a bondade a esses dois
ideais de vida, para compor um triângulo perfeito:
“Os ideais que guiaram a minha vida, e repetidamente me deram nova coragem
para encarar alegremente a vida têm sido: Bondade, Beleza e Verdade.”
Referências:
[1] Peter Galison, Gerald Holton and Silvan Schweber (eds.).
Einstein for the 21st Century. His legacy in
science, art, and modern culture, Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2008.
[2] C. Fiolhais, Imaginação, ciência e arte,
Biblos VI (2.ª série) (2008) pp. 3-16.
[3] G. S. Viereck, “What life means to Einstein”, S
aturday Evening Post, 26/October/1929, reimpresso
em G. S. Viereck, Glimpses of the Great, new York: Macauley, 1930, p. 447).
[4] Henri Poincaré,
Science et méthode, Paris: Flammarion, 1924 (o original é de 1909).
[5] Albert Einstein,
Out of my later years, Philosophical Library, new York, 1950.
[6] Albert Einstein,
What I believe, in Forum and Century 84 (1930), 193-194 (transcrito em Rowe and
Shulman, Einstein on Politics, Princeton: Princeton University Press, 2007, pp. 229-230).
[7] Arthur Miller, Einstein, Picasso:
Space, Time And The Beauty That Causes Havoc, New York, Basic
Books, 2002.
[8] C. Fiolhais,
Curiosidade Apaixonada, Lisboa: Gradiva, 2005.
[9] J. Wagensberg
et al.,
Noves Fronteres de la Ciencia, l’Árt i el Pensament, Barcelona: Generalitat de
Catalunya, 2005.
[10] Friedrich Duerrenmatt,
A visita da velha senhora e Os físicos, Lisboa: Portugália Editora, 1965.
[11] G. S. Viereck, “What life means to Einstein”,
Saturday Evening Post, 26/October/1929, reimpresso
em Viereck, Glimpses of the Great, new York: Macauley, 1930, p. 436):
[12] Peter Bucky with allen G. Weakland,
The Private Albert Einstein, Kansas City: andrews and McMeel,
1992 (edição original de 1933).
[14] Le Corbusier,
O Modulor: Ensaio sobre uma medida harmónica à escala humana aplicável universalmente
a arquitectura e à mecânica, Lisboa: Orfeu negro, 2010.
[15] C. Fiolhais,
Universo, Computadores e Tudo o Resto, Lisboa: Gradiva, 1994.
[16] Albert Einstein,
The World As I See It, publicado originalmente em
“Forum and Century,” vol. 84,
pp. 193-194; foi o vol. 13 da série
Living Philosophies; está incluído em
Living Philosophies,
pp. 3-7, new York: Simon and Schuster.