sábado, 18 de novembro de 2023

A DEGRADAÇÃO DO NOSSO ENSINO PÚBLICO

Por Galopim de Carvalho
 
Pode parecer que me repito, mas o problema é grave e parece não ter fim à vista. Tudo o que já se disse e escreveu tem de continuar a ser dito e escrito.
 
A par das minhas obrigações profissionais, sempre mantive estreita ligação com a escola pública e os seus professores. É com estes que sempre alinhei e continuarei a alinhar enquanto tiver voz. A luta dos professores, numa determinação e intensidade que não tinha sido antes vista, tem trazido, ao de cima, a degradação a que chegou este grande pilar de qualquer sociedade democrática
 
Não é demais lembrar que, à semelhança do que se passou com a Primeira República, a classe política, no seu todo, a quem os Capitães de Abril, há quase 50 anos, generosa, honradamente e de “mão beijada” entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se completamente de facultar conhecimento, civismo, cidadania, em suma, à sociedade que libertou. 
 
Entre os sectores da vida nacional que nada beneficiaram com esta abertura à liberdade e à democracia está a educação. 
 
E, aqui, a ESCOLA FALHOU COMPLETAMENTE. 
 
Se não mudarmos grande número dos paradigmas que têm sido os nossos, não merecemos os cravos que os militares de Abril nos ofereceram. A iliteracia cultural e científica, mesmo aos níveis mais básicos, de uma parcela importante da nossa população, a sucessiva e elevada abstenção em actos eleitorais, assim como a irracionalidade e violência associada ao futebol, são a prova provada desse falhanço.
 
É muito grande a parcela da nossa população, a quem a ESCOLA DEU DIPLOMAS, MAS NÃO DEU A EDUCAÇÃO, A FORMAÇÃO E A PREPARAÇÃO ESSENCIAIS A UMA CIDADANIA PLENA. 
 
Educação, formação e preparação, três grandes défices que o Dr. António Costa, em começos do seu mandato, como Primeiro-Ministro, há oito anos, disse serem sua grande preocupação. Preocupação que, infelizmente, pouco ou nada mudou. Verdadeiros défices na educação, na formação e na preparação para uma cidadania plena abriram as portas a um populismo, a que a democracia deu voz e que, usufruindo da liberdade dessa mesma democracia, nos procura arrastar para um modelo de sociedade que a História já mostrou que sempre nos amordaçou, com consequências funestas. 
 
No que respeita ao nível e exigência de ensino nas nossas escolas, não aprendemos nada com o ideal da Instrução Pública posto em prática na Primeira República. No preâmbulo do Decreto de 29 de Março de 1911, lê-se:
“Portugal precisa de fazer cidadãos, essa matéria-prima de todas as pátrias”. 
Reafirmo que considero os professores, incluindo educadores, os mais importantes elementos da sociedade e, uma vez mais, que é necessário e urgente conferir-lhes o estatuto, a atenção e a dignidade compatível com essa importância. 
 
Antes de me pronunciar por esta luta que, a todas as horas, nos entra em casa, através de todos os canais de televisão nacionais, detenhamo-nos na referida degradação, afirmando, desde já, que não estou aqui para agradar ou desagradar a quem quer que seja. Estou apenas a revelar a análise que faço de um problema nacional que sempre me preocupou.
 
A degradação do nosso ensino público é uma deplorável e angustiante realidade. Todos sabemos que se alargou a escolaridade obrigatória e gratuita até ao 12.º ano. E isso foi bom. Foi, mesmo, muito bom. No meu tempo, a escolaridade obrigatória e gratuita era a chamada 3.ª classe (actual 3-º ano). Todos sabemos que o parque escolar deu um grande pulo em frente, comparativamente ao de um passado que nos envergonhava. Mas a verdade é que não chega. Está “a léguas” de chegar. 
 
Com base nas classificações (os “rankings”, como se tem dito) oficialmente divulgadas, é para mim claro que escolas públicas más e alunos maus, em quantidade preocupante, são, entre nós, uma vergonhosa realidade. Uma realidade que põe a nu a muito pouca atenção que tem sido dada a este sector, por parte dos sucessivos governos do Portugal de Abril. Para vergonha nossa, estas classificações são cada vez mais preocupantes, mesmo contando com a desnatação dos programas e as facilidades nos exames. Percebe-se, assim porque é que continuamos na cauda da Europa. 
 
Estamos a assistir à destruição do futuro dos nossos filhos e netos e as causas não são difíceis de encontrar: 
1 - As dotações orçamentais têm sido e continuam a ser insuficientes para a importância deste sector na sociedade. Radica aqui a causa dos baixos salários de todos os profissionais de ensino, dos professores e educadores aos agora chamados «assistentes operacionais», passando pelos administrativos, e tudo mais que importa melhorar; 
2 - Entre nós, uns ministros fazem e outros, logo a seguir, desfazem. O drama é que a escola exige políticas estruturais continuadas. Não se planeia nada, resolve-se tudo na urgência e acrescenta-se cada vez mais burocracia e controle. Os titulares da pasta entram e saem, mas a poderosa e impenetrável "máquina ministerial" tem lugar assegurado até à aposentação, dominando, entre outros, a concepção e elaboração do que eram programas, que foram extintos, e de que restam umas indefinidas e genéricas «aprendizagens essenciais», e dos questionários dos exames nacionais; 
3 - A preparação de professores tem muito que se lhe diga e o sistema de avaliações, demasiado injusto, não ajuda a elevar o nível do ensino. Avança-se por quotas e não por mérito. Praticamente, nada avalia. Lembre-se que propostas de avaliações a sério têm sido rejeitadas por parte dos muitos que não querem ou receiam ser avaliados. Neste capítulo, os maus professores, que os há e não são assim tão poucos, os tais que recusam as avaliações a sério e veem na Escola um emprego assegurado até à aposentação, têm contado com o apoio dos sindicatos, que põem ao mesmo nível os bons e os maus profissionais; 
4 - O chorudo negócio das editoras produz e comercializa os manuais escolares, sem uma rigorosa supervisão científica e pedagógica, em disciplinas como geologia, por exemplo. São muitos os que se repetem acriticamente, com noções estereotipadas e, por vezes, com erros, tantas vezes denunciados;
5 - Os pais ou encarregados de educação que não estão à altura das suas responsabilidades. Pais e encarregados de educação, já instruídos e educados no pós-Revolução de Abril, a quem a escola deu, igualmente, muito pouco;
6 - As escolas empobreceram e os professores são contratados à hora. Os funcionários vêm do Instituto do Emprego e Formação Profissional e são precários e mal pagos. Deixou de haver equipas pedagógicas, com professores de apoio, animadores, psicólogos. Tudo é escasso. Voltou-se às aulas expositivas e às turmas numerosas. Tudo numa permanente política de poupança.
7 - A escola progressivamente mais empobrecida, deixou de ser uma "comunidade educativa". É o ministério que define tudo sobre objectivos, matérias e conteúdos. Os agrupamentos de escolas dispõem de uma mecânica que obriga muitos professores a correrem de umas para outras, sem trabalho em equipa. Os professores só se reúnem para dar as avaliações. 
8 - A carga burocrática que se abate sobre os docentes, em planos, arrevesados descritivos de metodologias e estratégias, «adaptações» de critérios de avaliação e obrigatoriedade de justificações que se traduzem em inflação de classificações para obter sucesso estatístico. Os "bons" professores fazem maravilhas, mas tudo está montado para trabalharem como lhes mandam. 
É urgente que o Governo de mãos dadas com os bons professores (os que não temem ser avaliados a sério, e são muitos) comece uma campanha poderosa, com base na verdade e no dever patriótico, que desmascare o que tiver de ser desmascarado e varra o que tiver de ser varrido
 
Trata-se de um imperativo nacional que os portugueses agradecem e hão-de premiar os que conseguirem levá-lo a bom termo. 
 
Pergunto muitas vezes que infelicidade caiu sobre uma significativa parcela do nosso povo, que rejeita, com o sorriso da ingenuidade ou da iliteracia, tudo o que convide a pensar, a reflectir sobre si mesmo e sobre o mundo que o rodeia
 
Um mundo, tantas vezes, nas mãos de políticos incompetentes e oportunistas de que a nossa sociedade está cheia, onde, de há muito, impera a corrupção, o vírus do futebol profissional e a promiscuidade entre a política, o poder económico e a justiça. Uma parcela que bebe toda a alienação que lhe é servida de bandeja por uma comunicação social, em grande parte, prisioneira de interesses ligados ao grande capital. Tenho pena do Ministro da Educação, ao vê-lo vaiado por multidões de manifestantes. Acompanho o seu desconforto no papel de escudo do seu próprio governo face à pressão reivindicativa de professores, pais e alunos. É por demais evidente que o Dr. João Costa vai para a mesa das negociações com os representantes dos professores, bem ciente das “linhas vermelhas” que não pode ultrapassar ou, melhor dizendo, que o ministro da Finanças lhe impõe. 
 
Mas o que me vem à ideia, é que ele as aceita, porque, caso contrário, já teria “batido com a porta”. É minha convicção que os temas ou pontos em debate, todos, sem excepção, não passam de remendos num edifício obsoleto, de há muito a precisar de ser demolido de raiz para, em seu lugar, surgir outro, concebido e levado a cabo, numa profícua colaboração entre governos e oposições, para durar três ou mais legislaturas e que envolva gente verdadeiramente capaz de o concretizar. 
 
Cada vez há menos interessados em seguir a profissão e os que nela labutam só esperam reformar-se logo que a idade o permita. Todos sabemos que há boas e excelentes escolas públicas, que há bons e excelentes professores, mas o essencial do problema que temos de enfrentar reside na quantidade preocupante de escolas más e de alunos maus e esse problema só se resolve com uma verdadeira e interessada política de Educação. 
 
É, pois, urgente olhar para esta realidade e haver vontade para promover uma profunda avaliação e consequente reformulação desta que é uma das mais importantes pastas da governação. 
 
Repito dizendo, uma vez mais, que esta reformulação tem de passar por um muito bem estudado programa, concebido para duas ou mais legislaturas e acordado entre governo e oposições. 
 
Quero acreditar, que uma tal política há de aparecer, mas, o drama é que não vejo, nem no PS nem nos restantes partidos, quaisquer pensamentos ou propostas políticas sobre Educação e Escola pública.
 
A. Galopim de Carvalho

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

DE PORTUGAL PARA PARIS: A NATURAL RECOMPENSA PELA FIDELIZAÇÃO OCDEISTA

O mais alto responsável pela educação escolar em Portugal será presidente do Comité de Políticas Educativas da OCDE

Sem surpresas para quem acompanhou a proximidade entre o ainda Ministro da Educação português e a entidade que, de forma mais ou menos expressa, regula a educação um pouco por todo o mundo, a partir, sobretudo, dos estudos comparativos que desenvolve para influenciar a adoção de “boas práticas" pelos países-membros.
 
Primeiramente como Secretário de Estado e depois como Ministro da Educação, João Costa foi ganhando destaque na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) tornando-se num dos seus mais fieis aliados. O elogio e aplicação das "orientações" e "recomendações" que a organização produz para mudar a educação em direção ao futuro é uma marca distintiva no seu mandato. Presidirá em breve ao Comité de Políticas Educativas, cargo para o qual foi “eleito por unanimidade”. Antecipando a libertação das funções executivas no atual governo, em pleno declínio, não deixou de assegurar o seu estrelato na política transnacional. 
“Este comité é responsável pela coordenação de toda a atividade da OCDE na área da Educação. João Costa é o primeiro português a ser escolhido para a função. O mandato, que tem a duração de três anos, inicia-se a 1 de janeiro de 2024 e terminará a 31 de dezembro de 2026”, conforme comunicado oficial do Ministério da Educação.

Cátia Delgado

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

LEITURAS ADOLESCENTES QUE DEIXARAM MARCA

Por Eugénio Lisboa
 
Tenho falado longamente de leituras que, na adolescência, deixaram marca em mim. Não foram só grandes autores, como Voltaire, Stendhal, Balzac, André Gide, Dostoiewsky, Tolstoi, Turguenev, Charlotte Bronte, Garrett, Camões, Régio e outros, de grande gabarito, que profundamente me afectaram. 
 
Tive já ocasião de referir livros como FAMÍLIA SEM NOME, de Jules Verne, ou OS DRAMAS DA INTERNACIONAL, de Pierre Zacone, que deixaram marca profunda. São livros que, depois de lidos, durante algum tempo, não nos deixam pensar em mais nada senão neles. É um erro pensar que só as grandes obras têm este poder. O dia em que, adolescente, li FÉRIAS, da Condessa de Ségur, ficou, para sempre, como um dia mágico. Só os snobs e os mentirosos não confessam estas coisas. 
 
Estes livros são aqueles que eu costumo classificar como clássicos menores. Mas são, efectivamente, livros clássicos. São pequenas estrelas que, para sempre, ficam a brilhar, no nosso firmamento. 
 
Entre estes clássicos menores, coloco sempre o romance histórico de Arnaldo Gama, O SARGENTO-MOR DE VILAR. Li, dele, nessa altura, quase tudo o que escreveu: UM MOTIM HÁ CEM ANOS, O BAILIO DE LEÇA, A ÚLTIMA DAMA DE S. NICOLAU, O FILHO DO BALDAIA, A CALDEIRA DE PERO BOTELHO, O SEGREDO DO ABADE e até esse longo folhetim, na peugada dos de Eugène Sue, O GÉNIO DO MAL, com a tenebrosa Matilde, cuja maldade tanto me fascinou. Porém, de todos os seus livros, o que mais me impressionou foi, aliás, o primeiro que dele li, O SARGEBTO-MOR DE VILAR. Os amores do fidalgo Luis Vasques com Camila, a filha do Sargento-Mor de Vilar, tendo como pano de fundo a invasão francesa de Portugal, a comando de Soult, e a descrição da resistência portuguesa ao invasor, “apanharam-me” completamente e na altura própria. Nunca mais voltei ao livro, com receio de se não renovar a magia. 
 
Nem todas estas marcas profundas se renovam, como seguramente se renova a magia de LE ROUGE ET LE NOIR, de RESSURREIÇÃO (Tolstoi), de ASSIA (Turguenev), de OS IRMÃOS KARAMAZOV (Dostoiewsky) ou de UMA GOTA DE SANGUE (José Régio). Estas são marcas que resistem à erosão do tempo. As outras, brilham no horizonte da nossa memória, mas tememos revisitá-las… 
 
Eugénio Lisboa

A FIGURA DO “DUPLOPENSAR” NA NARRATIVA DA EDUCAÇÃO DO FUTURO

A "narrativa" que apresenta e dá forma à dita "educação do futuro", integra múltiplas figuras retóricas que levam um leitor ou um ouvinte desprevenido a aderir, no imediato, à mensagem a veicular, a defendê-la, se for preciso. Não é de admirar: foi concebida - em geral, num plano supra-nacional - exactamente com esse propósito. 
 
Acontece que a educação escolar não pode dispensar o exercício da crítica que, nos moldes académicos, implica conhecimento escrutinado e honestidade intelectual. Na esteira de Karl Popper, não pode substituir o “racionalismo crítico” pela “aceitação dogmática”.
 
Por isso, temos estudado algumas das referidas figuras, sendo uma delas o “duplopensar”. Sim, o “duplopensar” de George Orwell: ardil da “novilíngua” que leva a aceitar duas ideias diametralmente opostas. A figura  requer especial habilidade no entrelaçamento de certa ideia e da sua contrária, de modo a ganharem-se adeptos que, por princípio, discordariam entre si
 
Sobre o assunto, e usando o exemplo da transição digital, escrevemos um artigo que foi publicado pela revista Sisyphus e que pode ser lido aqui. Eis o seu resumo:
"A transição dos recursos educativos do suporte de papel para o suporte digital está em curso em diversos países, tendo sido acelerada pela pandemia covid-19. Nos discursos de organizações internacionais e de instâncias políticas nacionais que a apresentam, é possível apurar uma dupla tendência: por um lado, fazem sobressair o imperativo da inovação tecnológica, na qual se reconhecem vantagens de diversa natureza; por outro lado, registam vários problemas dela derivados, sobretudo para a aprendizagem, que estudos dignos de confiança confirmam. É neste “duplopensar” que, no presente artigo, se analisa a dita transição, tendo sobretudo por referência a realidade portuguesa e europeia."
Maria Helena Damião e Cátia Delgado

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

O JUÍZO ESTÉTICO ANTECEDE O JUÍZO ÉTICO

Por Eugénio Lisboa 
A fealdade é uma forma de violência. 
Francine Noel 
 
Sempre me intrigou, quando a minha mãe me queria repreender, por qualquer mau comportamento meu, que fosse sistematicamente invocada uma razão de cariz estético: “O menino não faça isso porque é feio!” “O menino não coma assim porque não é bonito”. Não porque magoa o outro, ou porque suja a toalha da mesa, ou porque torna alguém infeliz. Não: pura e simplesmente, não se faz porque é feio. 
 
O estético antes do ético ou do moralista. Era talvez a melhor maneira de persuadir crianças ainda não maduras para outros conceitos de mais difícil absorção. Um argumento de fácil aceitação, porque ninguém quer ser feio. 
 
André Gide viria até a produzir um dos seus mais atrevidos aforismos, a este mesmo respeito, quando observou que a ética era uma dependência da estética. As pessoas, de uma maneira geral, mais se conseguem abster de um gesto suposto feio ou grosseiro do que eticamente reprovável. Serem acusadas de falta de sentido estético incomoda-as mais do que de insensibilidade ética. 
 
Oscar Wilde levava esta inclinação ao extremo, ao dizer que não há livros morais e livros imorais, há só livros bem escritos ou mal escritos, indo até dizer que ”nenhum artista tem simpatias éticas” e que “uma simpatia ética, num artista, é um imperdoável maneirismo de estilo.”
 
Há, nestas formulações wildeanas um óbvio e deliberado exagero, mas que indubitavelmente visa dar preponderância ao estético sobre o ético. A fealdade na natureza tem muito de repulsivo e tem sido fonte de inúmeras invectivas de grande ferocidade. 
 
Shakespeare, por exemplo, não hesitava em rogar, por via de um dos seus personagens: “Ajudai-nos a escorraçar a fealdade do mundo.” E um provérbio inglês sugere que “a beleza é à flor da pele, mas a fealdade vai até aos ossos.” Certos vícios de carácter – e dos mais odiosos – como a inveja, são tidos como particularmente repulsivos, por razões mais estéticas do que éticas: diz-se de alguém que ficou “verde de inveja”, sublinhando-se aqui a “fealdade” de uma pele humana verde; ou “roído de inveja”, uma imagem física de um feiíssimo corpo “roído” pelo verme da inveja.
 
Nisto tudo, o ético ou não entra ou entra em segundo lugar. O recurso à estética da fealdade, para iluminar melhor o que têm de repulsivo certos vícios (a inveja, o ciúme, o ressentimento), mostra-nos como o juízo estético pode ser muito mais eficaz, como arma de luta contra eles, do que o juízo ético. 
 
Porque o juízo estético vê-se melhor, impressiona mais, agride com mais força. Dizer que uma pessoa é feia por dentro e por fora ou que é bonita por dentro e por fora diz-nos mais do que o desfiar abstracto, não visível, das maiores virtudes. O gosto pode servir melhor o valor de certas virtudes, do que o exemplo dessas virtudes. Uma virtude bela é mais apetecida do que uma simples virtude. 
 
Eugénio Lisboa 

domingo, 12 de novembro de 2023

RETRATO DE MARIANA

Seu amor era feito de recato,
de dedicação, pequenos serviços,
total entrega e suave acato,
de sentimentos fundos mas omissos.

Omnipresença que se apagava,
fogo que ardia e não se via,
chama que, secreta, se atiçava,
silêncio que, tão alto, se ouvia.

Vida feita de gestos recolhidos,
sempre próxima, mas tão sossegada,
contendo sempre a fome dos sentidos.

Porém, quando a morte se fez chegada,
lançou-se à água, em aberto ostento
de amor que fora seu oculto sustento.

Eugénio Lisboa 

Mariana é uma das minhas personagens femininas preferidas.
Extraordinária criação de Camilo, num dos seus mais belos livros, Amor de Perdição.

A CORAGEM DE TENTAR SALVAR A ESCOLA PÚBLICA

Tomo a liberdade de transcrever excertos de um artigo de opinião publicado no passado dia 10 no semanário Expresso, assinado por um jurista

Presumo que não tenha diplomas em Educação porém, como pessoa comum, revela capacidade de olhar para a Escola Pública e perceber o que é notório: ela não está a cumprir a sua função. Contudo (e aqui está a importância deste texto), é preciso que cumpra.

Muitos "curiosos" e "especialistas" em Educação insistem em declarar a falência da Escola Pública, mas - aqui está a diferença - esta falência é considerada a partir dos interesses que representam. Divergem, no entanto, na solução; adaptar a escola a esses interesses, dizem uns disfarçadamente; acabar com a Escola e criar alternativa, dizem outros claramente.

Quem andou na Escola Pública e a reconhece como um espaço formativo para todos, não pode, mesmo reconhecendo os problemas que a devoram, colocar-se do lado de uns nem de outros, tem de fazer o que estiver ao seu alcance para debelar esses problemas. E falar deles é um passo, diria, corajoso.

"Sou socialista, por ideologia e militância. Sou também filho de professores e um produto da Escola Pública. É por causa desta origem, mas também por um básico desejo de justiça e igualdade, que sinto a obrigação de me pronunciar sobre a dramática situação da Educação no nosso país. 

Governar implica fazer opções e ter a coragem de assumir as suas consequências práticas e políticas. A escolha de muitos governos das últimas três décadas, vários deles socialistas, foi tratar a educação como uma questão terciária, um problema a ser procrastinado e nunca resolvido. E quais as consequências da atual linha política, que trata o professor como uma despesa e a escola como um depósito de adolescentes? 

O papel da Escola é cada vez mais residual, incapaz de assumir a dimensão formativa (...). Ao desvalorizar os professores e a sua autoridade social e académica, a cobardia das elites políticas desprotege a Escola do reacionarismo social. Os professores, exaustos e continuamente maltratados, [veem] a sua capacidade de moldar os seus alunos diminuir (...). 

A democratização da Educação é a principal responsável pela criação da classe média, pela elevação de milhões da pobreza, pelo progresso científico e social, pela criação da própria ideologia meritocrática que muitas vezes a ameaça. 

 A Educação Pública é a muralha contra o dogmatismo, os preconceitos e todas as formas de radicalismo, razão pela qual foi, e continua a ser, perseguida por fundamentalistas e autocratas. 

O atual sistema que enquadra e define a Escola está cansado e doente, ferido pela ignorância e pela apatia daqueles que dela usufruíram (...). Não nos equivoquemos: num mundo crescentemente desigual, onde abunda a falsidade institucionalizada, onde o intelectual e o profundo rareiam, e onde os pais são muitas vezes obstáculos à educação dos seus filhos devido aos seus próprios dogmas e contextos, é a Escola Pública a principal bala de prata da igualdade e da democracia. Acontece que a realidade política e social atual não permite que a Escola Pública cumpra estas missões por falta de pessoal, recursos e visão (...). 

Num mundo ideal, uma criança de uma família pobre, atacada por desespero ou fundamentalismo, sairia da escola mais tolerante e esperançosa no futuro, assim como uma criança de uma família rica, contaminada por excesso de privilégio ou arrogância, de lá sairia mais empática e consciente do seu papel na comunidade (...).

Não vivemos num mundo ideal, mas há muito que podemos fazer para caminhar na direção correta, começando por assumir a Educação como um desígnio nacional prioritário (...). Não se admirem que a depressão, a ignorância, a apatia e o egocentrismo se apresentem como flagelos que consomem as nossas crianças: afinal, é o que temos demonstrado com as nossas escolhas e ações. 

Essa é a realidade que elas encontram hoje, uma Escola de Sísifos, empurrando os seus rochedos colina acima, condenados a fazê-lo até as suas forças faltarem ou até a democracia falir, moral e civicamente. Está, pois, na altura de ter coragem, e esperar que não seja já tarde demais para salvar a Educação."

 Maria Helena Damião

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

O ACONCHEGO DAS CERTEZAS

As certezas confortam corações
inseguros e cheios de temor.
Buscam tudo, mitos, religiões,
regimes de dogma e de terror.

Tudo, excepto o desassossego,
que não temem os que sondam mistérios.
Eles preferem o doce aconchego
das certezas dos que têm impérios!

Acreditar, em vez de descobrir
é bem mais suave e sossegado.
Para quê passar noites sem dormir,

desvendando o segredo blindado,
em vez de se acomodar, tranquilo,
em silente postura de pupilo?


Eugénio Lisboa

terça-feira, 7 de novembro de 2023

MAIS PENSAMENTOS SOBRE A GUERRA

Toda a gente, quando a guerra anda no ar, aprende a viver com um novo elemento: a mentira.
Jean Giraudox 

Temos o poder de fazer, desta, a melhor geração da humanidade, na história do mundo – ou fazer, dela, a última.
John F. Kennedy

Mas, na guerra moderna… morrerás como um cão, por razão nenhuma.
Ernest Hemingway

A guerra existirá até ao momento em que o objector de consciência gozar da mesma reputação de que goza hoje o guerreiro.
John F. Kennedy

Eu lancei a frase – “A guerra para pôr fim a todas as guerras” – e esse não foi o menor dos meus crimes.
H. G. Wells

Desejamos lei mundial, na idade da autodeterminação – rejeitamos guerra mundial, na idade da maciça exterminação.
John F. Kennedy

A maneira de ganhar uma guerra atómica é fazer com que ela nunca comece.
General Omar Bradley

A paz é não só melhor do que a guerra, mas infinitamente mais árdua.
George Bernard Shaw

O que há de pior, logo a seguir a uma batalha, é uma batalha ganha.

Duque de Wellington (vencedor de Napoleão em Waterloo) 

Seleccionadas e traduzidas por Eugénio Lisboa

domingo, 5 de novembro de 2023

O PENSAMENTO LIVRE

Na continuação de texto anterior.
Por João Boavida
 
Os racionalistas chamaram a atenção para a enorme força libertadora que cada um de nós tem em si, e para a capacidade de alcançar os níveis mais elevados daquela faculdade – o pensamento livre. E ao fazê-lo abriram janelas para a humanidade, porque não só disseram que as pessoas eram capazes de pensar livremente como o deviam fazer sempre. Isto foi socialmente magnífico, representou uma extraordinária evolução política e social, e de tal modo que não podemos pensar em democracia sem ter em conta este pressuposto e esta condição.
 
É por aqui – pela possibilidade que os cidadãos têm de se expressar livremente – que se distinguem as verdadeiras democracias das que não são. E ao apelidarem-se muitas delas de democracias, não o sendo, e muitos tiranos quererem passar por democratas, só provam o valor que a democracia tem e quanto é necessário, portanto, defendê-la dos falsos amigos e dos que a minam por dentro. 
 
Mas os racionalistas não contaram, ou não avaliaram convenientemente, as forças que era preciso vencer, e mesmo as ínsitas na própria natureza humana, que tornam a coisa ainda mais difícil. A primeira, é de que o ser humano precisa de aprender a pensar, é-lhe indispensável chegar a certos níveis de desenvolvimento intelectual para ser capaz de pensar livremente. 
 
As crianças e os jovens têm de aprender a pensar por si próprias, têm de treinar essa capacidade; e necessitam de viver em ambientes onde o pensar livremente seja regra para usufruir desses modelos. 
 
Ora, todos nós sabemos que a educação foi, entre nós, até algumas gerações atrás, essencialmente repressora e inculcadora de regras e de ensinamentos, e que em muitas partes do mundo de hoje, sobretudo por razões políticas e religiosas, se está longe de dar as condições para as criança e os jovens desenvolverem essa faculdade e ganharem o hábito de a utilizar. 
 
O drama é que os próprios pais, muitos diretores e professores, bem como outros educadores e todo o ambiente em geral sofrem do mesmo, isto é, não chegam a aperceber-se da teia atrofiante em que estão presos e de quanto isso os embaraça e enfraquece. E, portanto, reproduzem, sem se aperceberem, as condições que impedem a libertação intelectual e moral de todos, perpetuando o mal. 
 
Alias, em termos religiosos, a liberdade sempre foi vista como um perigo a combater, como toda a gente sabe e, portanto, ela é ainda, em muitas regiões do mundo, o contrário daquilo que se devia desejar para todas as pessoas. E algo de semelhante se pode dizer de todos os regimes políticos não democráticos, que veem no pensamento livre dos cidadãos o grande inimigo e, por isso, nunca deixam de o proibir e castigar. 
 
Há, pois, uma imensa tarefa educativa a fazer. 
 
Difícil, mas não impossível. 
 
Muitas das sociedades atuais passaram, em poucas gerações, do estado de grande atraso e opressão para sociedades desenvolvidas, prósperas e tolerantes. E o que era até há pouco privilégio duma pequena minoria é hoje usufruído por milhões de indivíduos em condições de praticarem o livre pensamento e colaborarem ativa e livremente na sua sociedade. 
 
Mas, infelizmente, há muitos milhões de outros seres humanos que estão ainda longe de usufruir deste bem valiosíssimo. Uns, porque vivem em regimes opressivos onde a liberdade de pensamento e de expressão é proibida e perseguida, outros, onde as crenças religiosas são de tal modo inculcadas às crianças que, mais tarde, se torna impossível qualquer autonomia de pensamento. Frequentemente os dois males andam associados, reforçando o seu poder atrofiante. 
 
No meio disto tudo, o mais lamentável e até revoltante é o espetáculo daqueles que vivendo em sociedades onde o pensamento é livre e onde se podem expressar com toda a liberdade, usem esse poder e essa capacidade, (que adquiriram porque tiveram a sorte de viver em regimes que possibilitaram essa educação e essas práticas) para atacar e diminuir a sociedade onde eles foram educados e puderam alcançar esse nível de autonomia. 
 
Ora, sabendo que esse nível é sempre difícil de alcançar, que só se chegou a este ponto por uma longa e dramática evolução histórica, e à custa de imensas vítimas, é estranho que não percebam o perigo que este bem inestimável corre, e não se sintam incomodados com o serem objetivamente agentes dessa regressão.
 
Muitos transformaram-se em forças ao serviço do obscurantismo, tentando ver cada indivíduo não como um ser pensante mas como uma soldado ideológico ou um guerreiro pela sua (deles) causa, e que só serve para ser posto ao serviço das suas Cruzadas Ideológicas. 
 
É este, hoje, o calcanhar de Aquiles da sociedade ocidental.
 
O que está a acontecer em muitas universidades americanas é uma militância tão feroz por certas causas, que fazem do pensamento livre e autónomo a primeira vítima, sem perceberem que ao escorraçá-lo (assim como aos que o tentam praticar) estão a dividir a sociedade em duas partes antagónicas e irredutíveis, e a destruir a mais nobre e elevada capacidade humana.
 
Além disso, vão simultaneamente criando anticorpos em muitos moderados, que assim se vão radicalizando, por reação, e contra quem, depois, combatem ainda com mais energia ideológica, sem perceberem que, em grande medida, são culpa sua. 
 
Penso que já não há grandes dúvidas de que o sucesso de Trump, na América, e o radicalismo insuportável do Partido Republicano resulta, em grande parte, dos disparates acéfalos dos radicais de esquerda do Partido Democrático, entusiasmadíssimos com todas as questões fraturantes, e a cultura Woke, sem pensarem na incomodidade que causam e na aversão que provocam em grandes camadas da população. 
 
Quando o bom senso deixa de ser praticado, e ao outro nunca é reconhecida razão, estamos muito provavelmente a destruir princípios de honestidade intelectual e de moral, indispensáveis a qualquer sociedade evoluída e equilibrada. Se os outros se transformam em inimigos, a sociedade divide-se em dois campos e em cada lado se persegue o outro como alvo a abater. 
 
Quando toda uma sociedade começa a funcionar, a pensar e a sentir nestes moldes, e os que promovem este estado de coisas o fazem como missão “evangelizadora” só podem ser vistos como inimigos da democracia.
 
É evidente que os tiranos de todo o mundo olham regalados para o espetáculo ocidental, como urubus que, de cima, esperam que os dois pistoleiros em duelo, cá em baixo, na poeira, se matem para o banquete ser mais farto e sem interferências. 
 
João Boavida

FRASE DO DIA

"SE É PRECISO NA PAZ PREPARAR A GUERRA,
COMO DIZ A SABEDORIA DAS NAÇÕES,
INDISPENSÁVEL TAMBÉM SE TORNA NA GUERRA PREPARAR A PAZ."
ROMAIN ROLLAND

Eugénio Lisboa

"Faz tempo que a [nova] filantropia tem gostado bastante de tecnologia"

Na sequência do meu texto anterior.
Aos leitores que estejam interessados em perceber melhor como a "nova filantropia" se organiza para mudar a educação escolar, recomendo o livro ao lado identificado, assinado por Marina Avelar.
 
Obra de assinalável envergadura, inscreve-se numa linha muito consistente de investigação desenvolvida em alguns países da Europa e da América do Sul, cujo objectivo tem sido esclarecer a infiltração de entidades privadas nos sistemas de ensino públicos e as consequências que isso tem para as pessoas que nele estão integradas e para o funcionamento democrático das sociedades.
 
Em Portugal essa linha começa a ter expressão, mas ganhamos em nos informarmos da investigação realizada noutros contextos, até porque o modus operandi da infiltração a que me refiro é muito uniforme, não variando substancialmente de país para país.  
 
Para se antever o conteúdo do livro, reproduzo abaixo extractos de uma entrevista dada pela autora no contexto da pandemia, que não perdeu actualidade.
 
"Essas fundações geralmente têm uma visão de educação voltada para habilidades práticas e trabalhos, do mercado de trabalho, pensando em desenvolvimento econômico, pensando em um tipo de pessoa que depois vai ser útil para o mercado de trabalho.
E essa perspectiva tem uma coisa bastante individualizante da habilidade, que é o aluno saber fazer a conta, mas também saber se portar, falar, empreender, ser criativo, mas não o criativo social, que questiona os problemas sociais, e sim o criativo da solução de mercado, que consegue abrir uma startup...
E, dentro disso, a tecnologia cabe muito bem porque ela é vista como uma opção geralmente mais em conta. A gente pensa em ter um financiamento bem estruturado, mais robusto, políticas de formação e valorização profissional (...)  mas, de repente, do outro lado se fala em um aplicativo que vai melhorar a aprendizagem das crianças porque elas vão ter joguinhos. E isso se torna uma solução mais barata, que vai bem com a visão individualista e de austeridade que essas entidades têm de educação.
Internacionalmente, não só no Brasil, faz tempo que a filantropia como um todo tem gostado bastante de tecnologia (...). Você vê filantrópicas que têm seus investimentos (...) e que, por acaso, pode virar um mercado, pode ter os aplicativos que vendem, os computadores, os tablets...
Aqui no Brasil a gente teve, por exemplo, o caso [do programa] ‘um computador por aluno’, que foi uma solução dos anos 2000 que acharam que iria revolucionar a educação. ‘Vamos dar um computador para cada criança’. Teve empresas que ganharam muito dinheiro vendendo computador. No fim, as crianças usavam os computadores como quem usa um caderno, os professores usavam as lousas e os computadores para fazer anotações e não revolucionou nada porque se a gente não pensa a pedagogia (...) [a tecnologia] não cria muita coisa.
Um outro ponto sobre o qual eu queria falar é que (...) geralmente não cabe todo mundo na política pública. Geralmente, quando alguém ganha proeminência, alguém está perdendo espaço. O que tem acontecido, nos últimos anos, é que essas organizações têm ganhado espaço e quem tem perdido são as organizações de educadores, os sindicatos, os fóruns estaduais e municipais.
Antigamente, a gente via uma reportagem na Globo em que o especialista era o pesquisador, hoje em dia tem alguém de uma fundação.
Uma coisa que a própria Campanha Nacional pelo Direito à Educação tem falado bastante é que só os professores nos municípios, as escolas e secretarias poderiam estar pensando em soluções que também usariam tecnologia, mas que fossem algo decidido e acordado entre os profissionais da área para poder dar essa resposta.
E, lógico, também é preciso comentar que o próprio MEC está completamente ausente dessa discussão. E, nesse vácuo, as fundações têm entrado.
Mas você vê o silenciamento dos profissionais da área. O que se faz pelo professor é dar o plano de aula pronto (…).
Google, por exemplo, começou a ampliar a cobertura educacional, deixou os pacotes de graça. O próprio zoom, que era pago depois de 40 minutos de ligação, de repente passou a ser de graça, um monte de escola começou a usar o zoom. A Microsoft fez isso naquela época do ‘um computador por aluno’, a Intel pegou um pouco disso também... É uma criação de mercado e tem um tanto de marketing, de fidelização, a criança vê aquela marca desde sempre...
O mercado da educação é muito polpudo, tem muito dinheiro, principalmente estatal.
Quanto à relação entre, por exemplo, o Google e as fundações, eu acho que não tem competição. No Brasil essas fundações têm uma abordagem bastante cooperativa. Existe um trabalho demarcado: uma é mais voltada para o ensino médio, se é sobre competências socioemocionais é mais o Instituto Ayrton Senna, se é sobre desenvolvimento infantil, é outra... Eles não entram muito um no lugar do outro. E aí uma Google, até onde eu tenho percebido, consegue de uma maneira muito rápida entrar nesse mercado, ver os atores que já estão ali naquele país e abordá-los, fazer parcerias que não entram em competição.
Acho que foi em 2015, 2016, que a Fundação Lemann com a [Revista] Nova escola, fez parceria com a Google para ter uma plataforma com planos de aula. Então, a Google, quando chega aqui, não chega sozinha, mas com uma fundação influente. Um fortalece o outro".

 Maria Helena Damião

SOBRE A RESPONSABILIDADE DE EDUCAR NOS SISTEMAS DE ENSINO PÚBLICOS

A entrada de entidades privadas nos sistemas públicos de ensino - sobretudo empresas e suas fundações, mas também ONG -, na lógica do que se tem designado por “novo filantropismo”, chegou a Portugal em força neste século, sobretudo na última década. 
 
Agindo isoladamente ou em rede, e num alinhamento com as "orientações" de grandes organizações globais, como a OCDE, essas entidades têm uma atitude pró-activa, nomeadamente na angariação de fundos (públicos e privados) e na procura de parcerias estratégicas (com instâncias de poder político nacional e local, com instituições de ensino superior e centros de investigação, com escolas e centros de formação de professores, com os meios de comunicação social). 
 
Em resultado, e alegando a "responsabilidade social" traduzida na vontade de ajudar os mais desfavorecidos, em recuperar o país, em preparar o futuro, em garantir a sustentabilidade do planeta, em alcançar o bem-estar, etc., os parceiros, juntos num esforço comum, encontram modos de "ajudar" as novas gerações, os profissionais, o ministério da educação, a comunidade... Multiplicam-se em esforços, nomeadamente de produção de plataformas em que disponibilizam informações e materiais prontos a usar; de espaços "educativos" e "formativos", funcionais e agradáveis, paralelos aos escolares; de distribuição de recursos (em geral, tecnológicos).
 
Os seus mentores não se coíbem de teorizar sobre a educação escolar (o sentido que deve ter e como deve ser desenvolvida), fazendo conferências, dando entrevistas, publicando livros... Dizem aos estudiosos e profissionais da educação e da formação o que é desejável que pensem e façam.

Em suma, as entidades a que me refiro moldam os sistemas de ensino públicos aos seus interesses privados e usam-nos para conseguirem concretizá-los. Está bem de ver que os alunos servem esse intento. 
 
Depois de terem investido na América Latina, voltam-se para a Europa e Portugal não é excepção. Se o leitor olhar para o que se passa à sua volta constatará isto mesmo. 

Ainda assim, insisto, sendo da natureza das empresas expandir os seus negócios de forma a obterem lucros financeiros, a responsabilidade maior dessa expansão, nos contextos públicos que conhecemos por sistemas de ensino, é dos políticos, dos educadores e dos formadores, que acedem a colaborar com entusiasmo, alguns com muito, muitíssimo entusiasmo. Os "programas" e as "fotos de família" de eventos em que todos participam são um triste exemplo disto.
 
Digo isto porque é aos políticos, aos educadores e aos formadores que cabe o especial dever de cuidar das crianças e jovens que têm ao seu cuidado. A função para a qual estão mandatados, em democracia, é educá-los; não participar na sua manipulação.

 Maria Helena Damião

sábado, 4 de novembro de 2023

GENTE ZANGADA

Por Eugénio Lisboa
 
Se não formos autorizados a rir no Céu, 
não quero ir para lá. 
Martinho Lutero 
 
Há gente, talvez bem intencionada, com bons propósitos de querer salvar o mundo, mas que está sempre zangada. Talvez por estarem zangados consigo próprios, não conseguem estar de bem com quase ninguém. 
 
O notável poeta e crítico inglês, do século XIX, Matthew Arnold, era por toda a gente considerado uma excelente pessoa, mas estava sempre zangado com tudo e com todos, de modo que se dizia, dele, que, boa pessoa que era, iria com certeza para o céu, mas que não iria gostar de Deus. 
 
São pessoas que, em vez de se rirem com uma boa piada, se zangam. Querem salvar o mundo e os homens, mas, no fundo, não gostam nem do mundo nem dos homens que querem salvar. Parafraseando o pérfido e brilhante Wilde, diria que é preciso termos um coração de pedra, para não desatarmos a rir com tanta zanga. 
 
Lido com gente assim, há muito tempo. Visam a felicidade da Humanidade, mas são incapazes de a construir em casa. Não sabem rir, coisa perigosa. Mesmo, quando o fazem, como não foram formatados para isso, fazem-no com um rictus de sofrimento. 
 
Woody Allen dizia de si próprio: “A maior parte do tempo, não tenho muita graça. O resto do tempo não tenho graça absolutamente nenhuma.” 
 
Esta gente zangada de que falo vive sempre no resto do tempo de Woody Allen. Repito, são perigosos. Como não sabem rir, não são capazes de se rir de si próprios e, por isso, não sabem fazer autocrítica. Acreditam em projectos grandiosos, mas não são capazes de resolver pequenos problemas domésticos. Têm visões planetárias, mas tropeçam na primeira pedra que lhes saia ao caminho. E, normalmente, riem-se quando não devem. São gente para fazer grandes purgas, quando não se pensa como eles. Diga-se, de passagem, que “pensar” não é o seu forte. Não gostam de pensar e odeiam visceralmente quem pensa pela própria cabeça. Preferem receber “directivas” de autoridades reconhecidas. 
 
Bertrand Russell dizia, com imensa graça, que, quando nos cortam a cabeça, a nossa capacidade de pensar diminui consideravelmente. É o que se passa com esta gente zangada, que pulula nas redes sociais: andam por aí, dando pulos desorientados, como galinhas decapitadas. 
 
Eugénio Lisboa

28 países assinam declaração conjunta para atenuar riscos da Inteligência Artificial (IA)

Por Cátia Delgado


No culminar da “Cimeira de Segurança de IA 2023”, que decorreu nos passados dias 1 e 2 de novembro, no Reino Unido, com o objetivo de analisar os riscos da inteligência Artificial e debater formas de os atenuar, os 28 países representados endossaram a Declaração de Bletchley. Entre esses países contam-se os EUA, a China, a Austrália, a Suíça e o Reino Unido. 
 
Na declaração conjunta, reconhecendo “o potencial positivo transformador da IA”, fica patente a posição dos diversos governos internacionais, empresas líderes neste domínio, grupos da sociedade civil e peritos em investigação aqui representados: 
- “para o bem de todos, a IA deve ser concebida, desenvolvida, implantada e utilizada de forma segura, centrada no ser humano, fiável e responsável”; 
- “é necessário abordar a proteção dos direitos humanos, a transparência e a explicabilidade, a equidade, a responsabilidade, a regulamentação, a segurança, a supervisão humana adequada, a ética, a atenuação dos preconceitos, a privacidade e a proteção dos dados”;
- “Registamos igualmente a possibilidade de riscos imprevistos decorrentes da capacidade de manipular conteúdos ou de gerar conteúdos enganadores”; 
- “As capacidades mais significativas destes modelos de IA podem causar danos graves, ou mesmo catastróficos, intencionais ou não”;
- “embora a segurança deva ser considerada ao longo de todo o ciclo de vida da IA, os intervenientes que desenvolvem capacidades de IA de ponta, em particular os sistemas de IA que são invulgarmente poderosos e potencialmente prejudiciais, têm uma responsabilidade particularmente forte de garantir a segurança desses sistemas de IA, nomeadamente através de sistemas de testes de segurança, de avaliações e de outras medidas adequadas”.

UM PENSAMENTO PARA ESTA GUERRA

Por Eugénio Lisboa 

MORE THAN AN END TO WAR, WE WANT AN END TO THE BEGINNING OF ALL WARS, YES, AN END TO THIS BRUTAL, INHUMAN AND THOROUGHLY UNPRACTICAL METHOD OF SETTLING DIFFERENCES BETWEEN GOVERNMENTS 
(MAIS DO QUE UM FIM DA GUERRA, DESEJAMOS UM FIM DO COMEÇO DE TODAS AS GUERRAS, SIM, UM FIM DESTE MÉTODO BRUTAL, INUMANO E NADA PRÁTICO DE RESOLVER DIFERENÇAS ENTRE GOVERNOS.) 
Franklin D. Roosevelt

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

HOMENS E FORMIGAS

Os gatos, que eu saiba, não fazem guerras.
Só fazem guerras homens e formigas.
Os gatos, mesmo selvagens das serras,
só caçam ratos, fome a quanto obrigas!

Homens e formigas armam exércitos,
organizando arte de matar milhares.
Tanta gente que morre causa vómitos
e faz-te, em horrores, abismares!

A morte, organizada e calculada,
a morte fabricada e alinhada,
com vistosa matança conseguida,

é só própria de gente fratricida
ou de formigas muito bem treinadas:
guerreiras à loucura algemadas!

Eugénio Lisboa

O ACRESCENTADOR DE AZUL

 

Meu texto no último JL:

O escritor Mário de Sá-Carneiro escreveu em 1914 um conto de ficção científica, intitulado A Estranha Morte do Professor Antena, no qual faz um grande elogio da ciência: “Com efeito um grande sábio cria – imagina tanto ou mais do que o Artista. A Ciência é talvez a maior das artes – erguendo-se a mais sobrenatural, a mais irreal, a mais longe em Além. O artista adivinha. Fazer arte é prever. Eis pelo que Newton e Shakespeare, se se não excedem, se igualam.” É curioso que, no mesmo ano de 1914, tenha publicado a sua primeira obra de poesia, Dispersão, revista pelo seu amigo Fernando Pessoa, onde consta o poema “Quase”, que também fala em além: “Um pouco mais de sol - eu era brasa, / Um pouco mais de azul - eu era além.”

Pois foi esta bela expressão Um Pouco Mais de Azul que o editor da Gradiva, Guilherme Valente, resolveu adoptar para título do primeiro livro publicado pelo astrofísico franco-canadiano Hubert Reeves, que infelizmente acaba de nos deixar aos 91 anos. O livro, o n.º 2 da colecção “Ciência Aberta,” saído em 1983 com o subtítulo A Evolução Cósmica, conheceu um êxito estrondoso em Portugal, tal como em todo o mundo: vendeu globalmente mais de um milhão de exemplares em mais de 30 línguas. E foi um êxito bem merecido, pois o autor conseguiu, como poucos, apresentar a história do Cosmos – averiguada pela ciência – usando uma sedutora linguagem poética. O livro fez-nos sentir que somos parte do Cosmos. Os átomos de que somos feitos vieram, na sua maioria, das estrelas. Tanto quanto sabemos, somos a única espécie que consegue perceber a unidade na complexidade do vasto espaço sideral. Como bem explica Reeves, quando olhamos para as estrelas, estamos a olhar para as nossas raízes cósmicas. Depois de o lermos, ficamos com uma consciência mais alargada do céu, que associamos ao azul. Ele acrescentou, com esse seu livro, «um pouco mais de azul» nas nossas vidas.

Um Pouco Mais de Azul saiu no original nas Éditions du Seuil em 1981. O título francês – Patiente dans l’Azur – provinha não de Mário de Sá-Carneiro, mas de um outro grande poeta, Paul Valéry. Foi retirado do poema “Palme” do seu livro Charmes (1922). Em tradução livre o excerto poético diz: “Paciência, paciência,/ paciência no azul! Cada átomo de silêncio/ É a hipótese de um fruto maduro!” Na Introdução de Um Pouco Mais de Azul, intitulada “A montanha e o rato” (que ele explica assim: “A história do Universo é, grosso modo, a história da montanha que pariu um rato.»), diz por que se lembrou de Valéry: “Paul Valéry, estendido nas areias quentes duma laguna, olha para o céu. No seu campo de visão as palmeiras balançam lentamente, amadurecendo os frutos. Está à escuta do tempo que lentamente leva a cabo a sua obra. Esta escuta, podemos explicá-la e aplicá-la ao Universo. Com o correr do tempo desenvolve-se a gestação cósmica. Em cada segundo, o Universo prepara qualquer coisa. Ele sobe lentamente os degraus da complexidade.” E Reeves continua imaginando um Paul Valéry assistindo ao aparecimento dos primeiros átomos e das primeiras células. Comenta: “Para as primeiras células, teria composto uma ode”. Comos e vê, Reeves junta ciência e poesia de uma maneira singular. Porque, como Mário Sá-Carneiro intuiu antes dos modernos avanços astrofísicos, ciência e poesia estão mais ligadas do que se pensa. Tanto o cientista como o poeta precisam de uma grande imaginação. Poder-se-á pensar que o cientista tem uma imaginação limitada pela «imaginação da Natureza». Mas a Natureza tem revelado uma «imaginação» extraordinária, que nos desafia permanentemente.

Ler Reeves é penetrar na imaginação da Natureza. Um Pouco Mais de Azul, esgotado há muito, depois de se terem vendido todos os exemplares da 7.ª edição (de 2013), vai em breve estar de novo à disposição dos leitores nacionais, porque a mensagem do autor não perdeu de modo nenhum actualidade. Na colecção “Ciência Aberta”, que tenho a honra de dirigir desde o n.º 200,” Reeves é, devido ao continuado interesse dos leitores, o autor com mais títulos publicados. Depois do n.º 2, seguiram-se o n.º 13 (A Hora dos Deslumbramento), o n.º 43 (Malicorne, Reflexões de um observador da Natureza), o n.º 73 (Poeiras de Estrelas, ilustrado a cores), o n.º 78 (O Primeiro Segundo), o n.º 104 (Aves, Maravilhosas Aves), o n.º 155 (A Agonia da Terra, uma entrevista a Frédéric Lenoir), o n.º 163 (Crónicas dos Átomos e das Galáxias”, do n.º 185 (Já não terei tempo, as suas memórias, que incluem uma foto onde estou a seu lado, numa visita que ele fez a Coimbra em 1998) e o n.º 205 (Onde cresce o perigo surge também a salvação). Em breve vai sair, ainda na mesma colecção, o livro Eu Vi Uma Flor Selvagem. O Herbário do astrofísico, que dá conta do seu profundo interesse pelas plantas. De facto,  ele e a sua mulher compraram uma casa na Borgonha, no sítio de Malicorne, onde não só podia passear sob árvores centenárias como apanhar as flores que irrompem do solo. Escreveu no seu livro Malicorne: «Tenho uma grande paixão por estas árvores. Que me sobreviverão por muito tempo (sairei do túmulo para as proteger se alguém tiver a ousadia de querer cortá-las!) O facto de ser responsável pela sua existência dá-me um prazer infinito.»

Hubert Reeves é não apenas um apaixonado pelo Cosmos, mas também um apaixonado pela Natureza. Ele sabe bem que a Natureza veio do Cosmos. O físico com ar de poeta – calvo, de barbas brancas e olhos azuis – que nos encantou comas histórias do espaço é também um ecologista, que nos inquieta com a «agonia da Terra». Ele lembra-nos que somos – devíamos ser – a consciência da Natureza. Devemos respeitar a Natureza, cujo tempo é bastante maior do que o nosso. No seu livro Onde cresce o perigo surge também a salvação (verso do poeta alemão Friedrich Hölderlin), dedicado à associação Humanité et Bioversité, a que ele presidia, cita um velho provérbio chinês: «É em vão que bate nas pétalas de um botão de flor para o fazer florir mais depressa.»

Reeves morreu. Mas os seus livros continuam vivos. Leiam-nos porque ele, esteja onde estiver, ficará feliz por continuar a acrescentar azul às nossas vidas.

Não cheira a Liberdade…cheira a pús, necrose e excrementos.

 

Texto que nos foi enviado pela médica Isabel Marques:

É de conhecimento geral que o Cirurgião Geral, desde tempos imemoriais de Barbeiro Cirurgião, se move no meio dos humores: necessariamente pús, necrose e excrementos. Ainda há quem se disponha a fazê-lo com orgulho.

Sempre que necessário, estes médicos operários (operadores segundo doentes e ou colegas com menos escolaridade) realizam horário extraordinário no Serviço de Urgência e em outras valências (bloco operatório, consulta, internamento). São daqueles Médicos antiquados que operam os doentes e desejam acompanhá-los, observá-los no internamento, avaliar com as mãos, saber como se sentem, perceber o seu sofrimento, estar lá, falar a mesma linguagem. Olham mais para o doente do que para o relógio. Não ouvem o seu estomago roncar, não atendem impreterivelmente o telefone ao conjugue que o espera do outro lado. São estes seres sem limites, praticantes do desporto radical que é ser médico no SNS no século XXI.

Estes médicos ensinam e estão rodeados de aprendizes que raramente se preocupam excessivamente com o excesso incomensurável de horas extraordinárias realizadas. As horas extraordinárias são encaradas como solidariedade para com os colegas, com intuito formativo, e mesmo como dever devido a constrangimentos organizacionais tais como – a “impossibilidade” em dimensionar um Serviço de Cirurgia para garantir o número de médicos necessários para assegurar a qualidade de um serviço de urgência.

Estes médicos vão cumprindo com vontade e dedicação as tarefas que lhes são propostas, dedicam-se, como a generalidade dos colegas, com abnegação. Até que um dia param! Param para pensar, fazer contas às horas dedicadas para lá do humanamente aceitável e tecnicamente aconselhável. Param refletem e juntam-se ao movimento Médicos em Luta, sindicalizados ou não. Decidem entregar, em pleno exercício da sua liberdade, a recusa em realizar horas extra, em conformidade com o limite legal de 150 horas anuais, sob a forma de um documento escrito. As 150 horas anuais são rapidamente realizadas em cerca de três ou quatro meses. Um turno de urgência, para um Interno (em formação) é de 12h, contudo é habitual a partir do do 4.º de 6 anos fazer 24h; um cirurgião especialista tem em contrato 18h ou 24h normais, sendo que a jornada de trabalho na urgência é de 24h, ninguém faz 18h, por uma questão pragmática. A esta jornada desenfreada segue-se (não há muito tempo – foi um “direito” recente) de um descanso de 6 a 8h. Os blocos são de 6 a 12 horas de jornada contínua e numa tarde de consulta observam-se, na melhor das hipóteses, 20 doentes com consultas teoricamente de 15 minutos. Será legítimo pedir o mesmo a um senhor jornalista? A um carpinteiro? A um operário fabril? A um piloto? São estes os Médicos que no SNS recebem os acidentes de viação, às 5h da manhã, e que nesse momento com 22h acumuladas estão como equivalente a uma taxa rime de alcoolémia. Deseja isso par asi, para os seus familiares? Eu não!

Aqui começa o odor…. algum bafio mas que a generalidade de nós desconhece. É um cheiro que não se entranha nem nos pára, pois grande parte de nós nasce após 1974. Ingenuamente, democracia, liberdade, igualdade de género são dados adquiridos por esta geração de médicos obreiros, com grande reverência para com as gerações prévias que lutaram por estes direitos. Portanto, nós somos aqueles que sempre que encontramos um desvio a estes princípios - para connosco, um colega ou para a classe inteira – consideramos ter o dever de o denunciar e garantir que não se repita. Os desvios a estes princípios têm sido inúmeros e sinuosos, merecedores de queixas a entidades para tal indigitadas. Por vezes ocorre-nos se seria mais simples continuar a trabalhar todas estas horas, numa espécie de alienação coletiva: era mais prático, mais útil, meter a cabeça debaixo do jugo do carro de bois, mas paramos para pensar. Estamos exaustos, muito! Esta é a nossa vida, a nossa profissão a nossa luta. Vários Serviços de Cirurgia Geral estarão fechados à Urgência. Até quando? Não saberemos…

Talvez até deixarmos de ouvir um “SIM, MAS…” Uma ameaça velada a quem diz SIM diariamente, com orgulho e abnegação, a quem paga do seu (parco) bolso para publicar em revistas indexadas, a quem paga do seu (mediano) bolso cursos que custam milhares de euros (por vezes um salário inteiro), a que diz que sim, dando a cara e o seu esforço incondicional por todos os portugueses.

Isabel Marques

VIDAS PETRIFICADAS

 
Novo post de Galopim de Carvalho: 
 
Fósseis e fossilização 
 
Fóssil (do latim fossilis, que quer dizer desenterrado), é hoje um conceito amplamente vulgarizado, aprendido nos bancos da escola, nos museus de História Natural ou em séries televisivas, apresentado como todo e qualquer vestígio identificável, corpóreo ou de actividade orgânica, de um ser do passado, chegado até nós, conservado no seio de uma rocha, portanto, em contexto geológico. 
 
Os geólogos pioneiros davam-lhes o sugestivo nome de petrificados, dado que, na grande maioria dos casos, são vestígios de antigos animais e plantas transformados em pedra. Animais e plantas do passado, que constituem o objeto de estudo da Paleontologia (do grego palaiós, que quer dizer antigo, ontos que significa ser, e logos, que alude a estudo). 
 
O vocábulo “paleontologia” foi usado, pela primeira vez, em 1882, pelo zoólogo e anatomista francês, Henri Marie Ducrotay de Blanville (1777-1850), editor do Journal de Phisique
 
Em Paleontologia fala-se de somatofósseis (do grego soma, -atos, que significa corpo) sempre que:
(1) os achados correspondem à totalidade do corpo do ser, o que é relativamente raro,
(2) os apenas representados por partes ou restos maiores ou menores do seu corpo (ossos, dentes, concha, carapaças, troncos, folhas) o que é frequente, e ainda,
(3) os moldes desses corpos ou partes deles deixados na rocha que o envolveu.
São icnofósseis (do grego ichnós, que significa traço, marca) os vestígios da sua existência, como são as pegadas e outros rastos, as dentadas e perfurações em carapaças, os gastrólitos (pedras que ingeriam para ajudar a triturar os alimentos, no estômago, à semelhança da moela nas galinhas), os ovos e os coprólitos (excrementos fossilizados) e outros vestígios de actividade orgânica. 
 
Designam-se por macrofósseis todos aqueles que podem ser estudados à vista desarmada e por microfósseis os cujo estudo tem de ser feito lupa ou ao microscópio. Destes, uns são organismos de dimensões submilimétricas (foraminíferos, ostracodos, acritarcos, diatomáceas, carófitas) a nanométricas, como são os nanofósseis calcários (cocólitos de cocolitoforídeos). Outros são partes muito pequenas de organismos de maiores dimensões (e.g. espículas de esponjas e ascídias, otólitos de peixe, escamas dérmicas de seláceos). 
 
Entende-se por fossilização a passagem de um corpo de um ser vivo, ou parte ao respectivo fóssil. Para tal é necessário tenham ficado rapidamente protegidos contra os agentes destruidores, nomeadamente, o oxigénio do ar. Assim, é necessário que tenham sido imediatamente cobertos pelos materiais em sedimentação. Geralmente fossilizam com maior frequência as partes duras, esqueléticas, ou os seus fragmentos, como ossos, dentes, carapaças, conchas, escamas, etc., que são alvo de mineralização por certos elementos químicos, minerais, como carbonato de cálcio (calcite), sulfureto de ferro (pirite), fosfato de cálcio (apatite) ou dióxido de silício ou sílica (opala, calcedónia e quartzo microcristalino). Ficando mais resistentes, conservam-se melhor. Fala-se, assim, de calcitização, piritização, fosfatização e silicificação. Um exemplo particular de mineralização é a substituição da matéria orgânica dos tecidos lenhosos de plantas por sílica, quer sob a forma de calcedónia, quer sob a de opala (xilopala), de que são exemplos os troncos de árvores silicificados, de idade triásica, do Parque Nacional da Floresta Petrificada, no Arizona (EUA). 
 
Há, todavia, casos, embora raros, em que fossilizaram as partes moles. Esta ocorre quando o ambiente sedimentar é muito rico em matéria orgânica que, na ausência de oxigénio, permite que alguns órgãos ou partes não esqueléticas fiquem preservados no sedimento. Um exemplo é do contorno do próprio corpo do animal bem evidente nos ictiossáurios do Jurássico de Inglaterra). A mumificação corresponde preservação parcial ou total do corpo do ser, devido à sua inclusão em substâncias que impedem ou minimizam o processo normal de decomposição, como são os asfaltos, as resinas e o gelo. 
 
São conhecidos fósseis de rinocerontes mumificados, em asfalto, nos Cárpatos orientais e em La Brea (Califórnia, E.U.A.), de mamutes congelados no permafrost (solo permanentemente gelado ou pergelissolo) da Sibéria e de insectos e outros artrópodes aprisionados em âmbar (uma resina fóssil). 
 
A incarbonização é um tipo de fossilização, muito particular, que consiste no enriquecimento progressivo em carbono, relativamente aos outros componentes do corpo fossilizado, via de regra, vegetal. Esta transformação tem lugar ao abrigo do ar e nela participam bactérias aneróbias. Os carvões fósseis, como a lenhite, a hulha e a antracite, são exemplo de diferentes graus de incarbonização e atestam a importância deste processo ao longo da história da Terra.
 
A moldagem resulta do preenchimento interno das partes duras do ser vivo por sedimentos, ou da moldagem da face externa dessas mesmas partes. 
 
Conhecem-se fósseis que só ocorrem em rochas geradas em determinados ambientes ou fácies. Tal acontece porque os indivíduos que lhe deram origem ocupavam um habitat muito restrito. São os fósseis de fácies, particularmente úteis em reconstituições paleoambientais. Fósseis correspondentes a espécies de existência efémera, à escala geológica, têm grande utilidade em correlações cronológicas, em estratigrafia, pois estão confinados a intervalos de tempo muito restritos, e, portanto, com particular utilidade em datação de idade relativa por via da biostratigrafia, ou absoluta por via da biocronologia). 
 
São os fósseis de idade ou indicadores biostratigráficos e têm tanto mais interesse estratigráfico quanto maior tenha sido a expansão do respectivo ser, à escala global, e quanto melhor tenha sido a sua capacidade de fossilização, aspectos que determinam a sua abundância. 
 
Ao invés dos fósseis de idade, há outros de grande distribuição vertical (no tempo) e, portanto, sem grande interesse em geocronologia relativa. Correspondem a seres que se mantiveram praticamente invariantes ao longo dos tempos, alguns dos quais chegaram até nós. Entre outros, são exemplos o Nautilus (cefalópode), o Latimeria (celacanto), as baratas (Arthropleura) e a Ginkgo biloba (uma árvore). São as chamadas formas pancrónicas, cujos vestígios fossilizados recuam a muitas dezenas e, mesmo, a centenas de milhões de anos. 
 
Os mais antigos 
 
São conhecidos testemunhos de seres muito antigos, atribuídas a cianobactérias, identificadas em rochas sedimentares do Arcaico da Suazilândia, com cerca de 3000 Ma. Diga-se, a propósito que o Arcaico (do grego arkhé, principio ou origem) é o período da história da Terra com mais de 2500 Ma. 
 
Embora não tenham deixado fósseis, no sentido habitual do termo, outros seres rudimentares, geradores de estruturas afins, estão na origem de carbono orgânico em rochas sedimentares da Austrália, com 3500 Ma, e da Gronelândia, com cerca de 3700 Ma. A vida ao longo do Arcaico e do Proterozóico esteve confinada ao mar, representada, sobretudo, por bactérias e algas dificilmente fossilizáveis. 
 
Diga-se, a propósito, que o Proterozóico (do grego proterós, anterior, e zoo, animal), é o intervalo de tempo da história da Terra compreendido entre 2500 e 539 Ma 
 
A primeira e a mais célebre ocorrência do surgimento dos metazoários (animais pluricelulares) foi encontrada no Proterozóico superior dos Montes Ediacara, no sul da Austrália, de idade compreendida entre 635 e 539 Ma. De corpo mole e sem partes esqueléticas, a fossilização destes seres primitivos (medusas, penas-do-mar, entre outros) é um acontecimento raro e de grande importância. 
 
A grande raridade de fósseis no Precâmbrico, isto é, o conjunto do Arcaico e do Proterozóico (os primeiros 4028 dos 4567 Ma de idade do nosso planeta, ou seja, cerca de 90%), deve-se à inexistência de seres com esqueleto. As substâncias construtoras de esqueletos (quitina, carbonato de cálcio, sílica e fosfato de cálcio) só começaram a ser elaboradas a partir de um dado nível de oxigénio na atmosfera, estimado entre 3 e 7% do valor actual, o que aconteceu no início do Fanerozóico, (do grego “phanerós,” visível, e zoo, animal), há 539 Ma. 
 
Ao contrário das inúmeras dúvidas e incertezas relativamente ao Precâmbrico, os elementos paleontológicos dos tempos que se lhe seguiram são abundantes, permitindo uma informação mais vasta e segura. O Fanerozóico iniciou-se por uma explosão de vida onde já estão representadas plantas não vasculares (algas) e quase todos os grandes grupos de invertebrados existentes na actualidade, a maioria com partes esqueléticas susceptíveis de fossilizar. 
 
A vida continuava confinada ao meio marinho, iniciando uma caminhada evolutiva no sentido da biodiversidade actual.
 
Ao longo desta evolução, a biosfera sofreu diversos eventos de perturbação extrema, marcadas por extinções em massa à escala global, após o que novas espécies repovoaram os lugares deixados pelas que desapareceram. A Paleontologia tem por suporte o registo fóssil dos animais e plantas que nos precederam. Registo vastíssimo, que não pára de crescer, enchendo armários e gavetas de museus, centros de investigação, universidades e, não menos importante, coleccionadores. Complemento essencial da Geologia, a Paleontologia tem particular importância em Biologia e em Estratigrafia, a disciplina que lê nas camadas das rochas sedimentares como de páginas de um livro se tratassem.
 
António Galopim de Carvalho

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

GLOSA SOBRE O FANATISMO

O fanatismo embrutece
ou a estupidez fanatiza?
A burrice não me enternece
e o fanático barbariza.

O fanático tem certezas,
onde certezas não existem:
estão repletas de bichezas
que são nocivas e persistem.

A fé não é conhecimento,
pelo menos, até mais ver.
Transforma o mundo em turbulento
e estupora o bom viver.

Crê quem desiste de entender,
por isso o crente é perigoso:
quando não sabe convencer,
vira tirano afanoso.

O fanático não tolera
aquilo que não compreende:
torna-se logo uma fera,
filha bastarda de duende!

Eugénio Lisboa 

Dou isto à meditação dos actuais “iluministas”, totalmente embevecidos com os fanáticos que por aí proclamam, aos gritos, um óbvio desejo de hegemonização religiosa do planeta, para maior glória de um deus soturno e nada misericordioso, que veneram. Eles nem sequer escondem ao que vêm. E os “iluministas” acolhem-nos de braços abertos, decididos a serem, por eles, devorados. Já se tem visto e a História, afinal, repete-se. O fanatismo e a ignorância militante são os maiores inimigos actuais deste pobre planeta. E o bem intencionismo enviesado dos “iluministas” dá à catástrofe uma boa ajuda.

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

NOVIDADES CLASSICA DIGITALIA

Série “Humanitas - Supplementum” [estudos]

L. P. Romero Mariscal & R. Gutiérrez González (Coords.), What’s Hecuba to me? Personajes Míticos y Monólogos Dramáticos Contemporáneos para la Enseñanza Universitaria en Humanidades (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2023). 190 p. DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-2474-7

  

[Este libro reúne una serie de estudios sobre monólogos teatrales o sobre textos literarios que se prestan a la dramatización y teatralización pronunciados por personajes famosos del mito o inspirados en ellos. Cada capítulo está dedicado a una propuesta textual (y/o performativa) contemporánea concreta y de utilidad para el currículo universitario de cualquier estudiante de grado o posgrado de disciplinas de Humanidades, como los Grados en Estudios Ingleses, Filología Hispánica, Filología Francesa, Filología Clásica, Humanidades, Teoría de la Literatura y Literatura Comparada, Estudios de Asia Oriental, o Estudios de Género, entre otros.]


B. Antela-Bernárdez & M. Mendoza (Coords.), Historiographical Alexander: Alexander the Great and the Historians in the Nineteenth and Twentieth Centuries (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2023). 188 p. DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-2462-4

  

[A critical examination of the traditions in Historiographic Alexander allows to reconsider both our ideas of alterity and success, and how great can be a human being, or to what extent what was great in the past still has to be accepted as such in our present days. To sum up, to revisit Alexander from the eyes of the historians in the Contemporary Age offers a genuine opportunity to rethink History as such, and to evaluate how can we imagine new ways to explain the past in order to build a rich appreciation of the present in order to imagine brand new futures. The aim of the following pages is to review Alexander’s portraits and concerns in the works and scopes of the more recent historical traditions of the XIXth and XXth Centuries.]


Série “Mito e (Re)escrita” [estudos]

 

Maria de Fátima Silva, Susana Marques Pereira & Rui Tavares de Faria (Org.), Mito e drama: teatro clássico no seu tempo e no nosso (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2023). 487 p. DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-2493-8

  

[Este volume reúne um conjunto de textos agrupados em duas secções: uma Parte 1, focada ainda nos velhos mitos e na sua expressão no teatro antigo trágico e cómico, e uma Parte 2, que percorre uma variedade de reescritas dispersas pelas várias literaturas em debate. Além de regressar à análise específica de alguns mitos e temas clássicos, expande um conjunto de estudos sobre reescritas sobretudo contemporâneas, dispersas por diferentes literaturas do mundo latino, enquadradas em contextos históricos específicos que as explicam e justificam.]
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EM QUE ACREDITA O SENHOR MINISTRO DA EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E INOVAÇÃO E A SUA EQUIPA?

No passado Ano Darwin, numa conferência que fez no Museu da Ciência, em Coimbra, o Professor Alexandre Quintanilha, começou por declarar o s...