segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

ADEUS PROFESSORES, BEM VINDOS LÍDERES EMPRESARIAIS

Em 2015, foi enviada à comunicação social uma carta aberta assinada por pais de alunos do ensino básico na qual contestavam o doutrinamento dos seus filhos, em contexto escolar, na ideologia do "empreendedorismo". Clara Viana, jornalista do Público falou com alguns deles. O resultado foi o artigo abaixo identificado e que se pode encontrar aqui. Eis um extracto do mesmo:

“«Não fomos informados previamente, não nos pediram autorização, o que deveria ter sido feito dado o conteúdo gravíssimo deste programa, onde a sociedade é apresentada como sendo exclusivamente regida por relações económicas e que exclui tudo o que sejam relações de solidariedade» [isto] «vai contra o que tenta ensinar ao filho» [e também contra] «os valores da escola pública» (…). «Não queremos que a escola pública obrigue os nossos filhos a serem empreendedores competitivos obcecados pelo sucesso». Contestam o que consideram ser «um programa altamente estruturado de formatação ideológica».”

Passados quase dez anos poderemos dizer que esta iniciativa, com respaldo na Constituição da República Portuguesa e na Lei de Bases do Sistema Educativo, foi atendida pela tutela, pelas autarquias, pelas escolas e, em última instância, pelos seus directores e professores?

De modo algum.

De então até ao presente, a escola pública escancarou as suas portas, janelas e postigos a esta entidade que continua imparável na sua marcha evangelizadora, a todas as empresas que declaram querer ajudar os "mais desfavorecidos", com especial destaque para os sectores de banca e das seguradoras, que andaram muito tempo associados. 

Disto tenho dado exemplos neste blogue. O que se segue é apenas mais um, ainda que represente maior elaboração em termos de abrangência e abordagem do que alguns anteriores: trata-se de um tipo de coligação que passou a ser frequente entre empresas, fundações e ONG, todas partilhando o interesse em chegar aos alunos e às suas famílias. No caso, segundo a notícia, ao lado identificada e que se pode ler aqui, a iniciativa partiu desta última entidade, bem estabelecida no sistema educativo com reconhecimento da tutela.

Mais uma vez, entidades não educativas e com interesses privados entram na escola pública para "dar uma aula". Ora, quem "dá aulas" são os professores! 

Abrirmos a porta a alguém - "líderes empresariais" - que ocupa indevida e ilegitimamente o nosso lugar. Alguém que ainda tem a veleidade de explicar que o "objectivo é o de valorizar o trabalho dos professores!

Leia-se a notícia (os destaques são meus):

A Teach For Portugal (TFP) lançou o desafio a líderes empresariais para darem uma aula a alunos do segundo ciclo em escolas que servem contextos desfavorecidos. O objectivo é o de valorizar o trabalho dos professores que trabalham diariamente para que todos os alunos tenham a oportunidade que precisam para atingir o seu máximo potencial (...) Os líderes empresariais estão a preparar aulas em conjunto com professores e mentores TFP, adaptando o conteúdo às necessidades e perfis dos alunos (...) vão partilhar a sua experiência directamente em sala de aula, promovendo uma conexão entre o sector empresarial e o educativo. Através desta iniciativa, os alunos terão acesso a uma aprendizagem prática e colaborativa, enquanto os líderes empresariais conhecerão de perto a realidade diária das escolas públicas portuguesas.

8 comentários:

Anónimo disse...

Mais do que o ouro ou a Ciência, que se podem comprar, a base da riqueza dos indivíduos e das nações são os negócios, lucrativos para nós, que celebramos com os outros. Vai daí, se queremos ficar ricos, nas escolas deve-se ensinar, sobretudo, a negociar. "O sonho comanda a vida" é poético, mas quem manda no mundo é o dinheiro! No século XV, guiados pelo antigo evangelho (boa nova), na versão católica, os portugueses descobriram novas terras e novas gentes, mas depois não souberam negociar, e agora ficaram tão "pobrezinhos" como a maioria dos alunos das nossas escolas EB + S. Como ultrapassar esta triste sina?
Desprezando o Evangelho dos católicos nas escolas EB + S e jardins de infância, e substituindo-o pelo Evangelho dos evangelistas americanos e pela filosofia ubuntu que enaltecem a posse de muito dinheiro.
Para rematar, basta substituir todos os professores por empreendedores económicos e alcançaremos a felicidade plena que só os empanturrados de dinheiro podem ter.

Carlos Ricardo Soares disse...

Talvez a melhor forma de não desejar nada seja desejar impossíveis. Talvez a melhor forma de não querer nada seja pedir tudo. Talvez a melhor forma de não fazer nada seja achar que já se fez tudo.
Os humanos são contrariados, frustrados, para não dizer traídos, por via da sua natureza peculiar de seres vivos, que praticam actos, conscientes, racionais, intencionais. Se compararmos o modo de proceder da IA, por exemplo, com o modo de actuar dos humanos, talvez seja mais fácil entender o que pretendo dizer.
No mundo da natureza “não viva”, incluindo o das máquinas e da IA, as causas e os efeitos têm uma relação mecânico-causal linear de simples precedência que faz com que seja possível conhecer, determinar e replicar essa relação. No mundo da natureza viva, mormente humana, tudo se passa de uma forma peculiar, contra-intuitiva e estranhamente “invertida”.
António Gedeão acertou na “mouche” e disse, na forma poética, “o sonho comanda a vida”, aquilo que eu digo com a minha teoria do “dever-ser” que rege o acto humano, seja numa situação de escolha lógica e científica, seja numa situação de escolha hipotética e de incerteza, mais ou menos relativa, quanto aos efeitos.

Anónimo disse...

Está tudo muito bem...
Mas Vossa Excelência é mais por uma escola EB 1,2,3 + S, dirigida para o conhecimento e a inteligência, regida por professores licenciados, de preferência, por universidades, ou é mais por uma escola EB 1,2,3 +S orientada para o mundo empresarial dos negócios, onde todas as criancinhas e adolescentes, principalmente os mais pobrezinhos, não percam tempo com subtilezas escolares inúteis e recebam diretamente de capitalistas milionários o segredo de fazer fortunas?

Carlos Ricardo Soares disse...

Excelentíssimo Anónimo, entre ser saudável, rico e amado, ou ser doente, pobre e odiado, não há escolha possível.

Anónimo disse...

Quer dizer, Vossa Excelência acredita que os professores devem ser substituídos por pais natais, quais autênticos nababos, para que todos os pobrezinhos, obrigados a ir à escola, fiquem obrigatoriamente ricos, no sentido de poderem vir a nadar em piscinas cheias de dinheiro vivo (notas e moedas) ?!

Carlos Ricardo Soares disse...

Não é difícil pensar num situação em que alguém trocaria uma piscina de dinheiro por uma piscina de água, ou em que o dono do oceano o trocaria por um copo de água, ou em que o rei se sentiria nu ao pé do roto, porque também a águia, quando sobe às alturas, é para poder ver o que está no chão e até os abutres o fazem.
O empreendedorismo tem a ver com acção, vontade, paixão, iniciativa, curiosidade, bravura, gosto pelo risco, e é intrínseco ao ser humano, às suas capacidades e condições político-económico-sociais e culturais, em geral. Quando penso que a IA transcende os humanos em muitos aspectos ligados ao processamento de informação e fá-lo de um modo vertiginoso, que nos deixa atónitos e atordoados, logo me ocorre que, entre os pontos fortes dos humanos, nos quais ainda somos imbatíveis, estão a capacidade de iniciativa, a curiosidade, a intuição, a memória dinâmica, a criatividade e a originalidade, tudo talentos gerados pela necessidade inelutável e constante de fazer escolhas, mesmo que se trate de escolhas arbitrárias, aleatórias, ou automatizadas. Ao pé desta grandeza humana, a IA não deixa de ser um objecto inerte, que não nos compreende, nem toma nenhuma iniciativa pensar, menos ainda de desejar e de ser a partir da ideia, que faz do que deseja, que desencadeia o processo de o alcançar.
Confesso que, como professor que esteve envolvido em atividades escolares, designadas jornadas de empreendedorismo, sempre fui muito crítico relativamente ao assunto e, mais ainda, ao modelo de atividade. Convidar empresários de sucesso para darem testemunho do seu percurso não me parecia mal. O que me parecia mal era o que alguns deles diziam, nomeadamente, acerca do sucesso e do empreendedorismo, como eles o entendiam. Algumas vezes senti-me na obrigação de os interpelar, porque estava com turmas de alunos e queria dar o exemplo, não fossem eles pensar que era por falta de coragem que eu não o tivesse dito no evento. Era azar que nos colocassem, a nós professores e alunos, na posição passiva, para mim muito desconfortável, de não empreendedores, ao mesmo tempo que se auto-elogiavam e promoviam. Por exemplo, uns diziam que “não se faz um empreendedor, nasce-se empreendedor” e eu perguntava “então estamos aqui a fazer o quê?”. Outros nem escondiam a satisfação com que diziam que tinham abandonado a escola e que davam emprego a muitos licenciados e doutores. Houve um que referiu Vasco da Gama como exemplo de empreendedor e que Camões, em vez de ter escrito os Lusíadas, que ele nunca leu, e de ter vivido miseravelmente, se fosse empreendedor, teria feito fortuna nas Índias, nem que fosse a entregar os Fortes ao inimigo a troco de dinheiro. Alguns, passado algum tempo, faliram ou foram presos.
Mas empreender é isso tudo e mais alguma coisa. O que não se pode negar, e menos ainda recusar na escola, é que o empreendedorismo é uma característica dos humanos e talvez a mais preciosa.
Quando deixamos de empreender deixamos de viver, ou é ao contrário?

Helena Damião disse...

Estimado Professor Carlos Ricardo Soares, agradeço o seu depoimento. Há palavras que caem em desgraça: "empreender" não tem na sua origem uma ligação directa ao negócio ne perspectiva neoliberal. Contudo, no presente é essa a sua ligação, de modo que o empreendedorismo na escola só se pode inscrever no que J. Dewey designou por "deseducação". O que pode um professor fazer em certas circunstâncias que lhe são impostas? Uma possibilidade é ter uma atitude crítica face a ceras afirmações e explorá-las com os alunos, desmistificá-las retomando o rumo educativo que se espera ser o da escola.
Gostaria de usar nas minhas aulas o que se refere abaixo, se me der licença para tal, identificando, naturalmente, a autoria. Cordialmente, MHDamião
"Confesso que, como professor que esteve envolvido em atividades escolares, designadas jornadas de empreendedorismo, sempre fui muito crítico relativamente ao assunto e, mais ainda, ao modelo de atividade. Convidar empresários de sucesso para darem testemunho do seu percurso não me parecia mal. O que me parecia mal era o que alguns deles diziam, nomeadamente, acerca do sucesso e do empreendedorismo, como eles o entendiam. Algumas vezes senti-me na obrigação de os interpelar, porque estava com turmas de alunos e queria dar o exemplo, não fossem eles pensar que era por falta de coragem que eu não o tivesse dito no evento. Era azar que nos colocassem, a nós professores e alunos, na posição passiva, para mim muito desconfortável, de não empreendedores, ao mesmo tempo que se auto-elogiavam e promoviam. Por exemplo, uns diziam que “não se faz um empreendedor, nasce-se empreendedor” e eu perguntava “então estamos aqui a fazer o quê?”. Outros nem escondiam a satisfação com que diziam que tinham abandonado a escola e que davam emprego a muitos licenciados e doutores. Houve um que referiu Vasco da Gama como exemplo de empreendedor e que Camões, em vez de ter escrito os Lusíadas, que ele nunca leu, e de ter vivido miseravelmente, se fosse empreendedor, teria feito fortuna nas Índias, nem que fosse a entregar os Fortes ao inimigo a troco de dinheiro. Alguns, passado algum tempo, faliram ou foram presos."

Carlos Ricardo Soares disse...

Professora Helena Damião, tem toda a minha licença para usar e explorar os meus textos, o que para mim é muito abonatório e realiza o principal objectivo para o qual me dou ao trabalho de os escrever aqui. Da minha parte, só tenho a agradecer-lhe os créditos que me der. Cordialmente, CRSoares

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